Desqualificar educação pública é meta das reformas educacionais

Se não tomarmos consciência e reagirmos, a educação pública será destruída pela lógica do Empreendedorismo na escola, financeirização da educação e conformismo da sociedade e do “protagonismo juvenil”.

A educação básica no Brasil apresenta regressão e piora de vários indicadores. Esta condição do segmento não revela apenas uma crise e uma disputa pelo controle pedagógico, mas evidencia um projeto destrutivo. O país não somente abdicou de universalizar com qualidade social a formação das crianças e jovens – como prevê a Constituição Federal –, mas ataca a educação pública e implementa reformas educacionais de natureza privatista, financista e instrumental.

Desqualificar e privatizar a educação básica pública estatal, responsável por mais de 84,2% das matrículas no país, parece ser o objetivo principal das reformas educacionais em implementação nas escolas desde 2017, com as Bases Nacionais Comuns Curriculares (BNCCs) – da educação infantil e ensino fundamental, do Novo Ensino Médio –, bem como as BNCs – Formação Inicial e Continuada de Professores.

Educação Básica piora com as reformas educacionais

Para justificar as sucessivas reformas neoliberais, a educação pública foi sendo gradativamente atacada, desqualificada e deslegitimada junto à sociedade. Existem várias estratégias para atingir esta finalidade, como: sucatear mediante redução dos investimentos; destruir a carreira docente com contratos precários e temporários; descontinuar as políticas educacionais de estado; críticas e ataques sistemáticos a educação pública; negação do direito à educação aos estudantes; descumprimento dos Plano Nacional de Educação (PNE) e dos planos estaduais e municipais, entre outras.

Entre tantas estratégias praticadas, a educação pública sofre críticas sistemáticas e uma campanha constante de desqualificação protagonizadas pelos atores privados e diversos meios de comunicação (Jornais, TVs, Canais de Assinaturas, etc).

A título de exemplo, vejamos o que a pesquisadora da Faculdade de Educação da Unicamp, Thais Rodrigues Marin, identificou ao analisar 1.197 artigos de opinião e 145 editoriais publicados somente pelo Jornal Folha de São Paulo no período de 15 anos (2005–2020).

Na análise destas publicações, o que mais surpreendeu a educadora foi encontrar nos textos uma postura reiterada de desqualificação do sistema brasileiro de educação pública, com ataques que atingiram, também, os professores dessa rede pública. São recorrentes as expressões exageradamente negativas, catastróficas e mesmo grosseiras para caracterizar a educação pública, tais como “tragédia”, “desastre’, “fracasso” e “mediocridade’.

A pesquisa identificou e destacou seis narrativas que mais se evidenciaram. A primeira delas – “a mais expressiva”, é a da desqualificação da educação pública de modo geral no Brasil e a consequente necessidade de reformá-la. “Esse ideário de crise da má qualidade respalda as iniciativas de reforma da educação, ou reforma empresarial da educação, que temos hoje”.

A segunda narrativa, a do financiamento, defendendo não faltar recursos para a educação básica, mas faltar eficiência na gestão do Estado. A terceira, a de desqualificação dos professores da escola pública, descrevendo-os como acomodados, malformados e corporativistas. “Esse discurso coloca o professor como inimigo e nega sua condição de trabalhador”.

A avaliação educacional relacionada a mecanismos de vigilância do trabalho do professor e de mensuração em larga escala configura a quarta narrativa identificada na pesquisa. “Isso é reflexo do modo de funcionamento corporativo e meritocrático, de mensurar o trabalho com métricas, para premiar ou punir. A qualidade da educação passa a significar posições em rankings, e o professor é responsabilizado por esses resultados, desconsiderando-se problemas estruturais que também afetam o processo educativo”, explica Marin

A quinta narrativa versa sobre as parcerias educacionais, recorrente nos artigos, tendo relação “direta com a privatização” e fica até mais fácil de entender, porque coloca os atores não estatais como supostamente mais capazes para oferecer soluções e diz como eles são importantes para que a política educacional seja de melhor qualidade”

A sexta e última narrativa descrita pela pesquisadora trata das finalidades educacionais. “Essa narrativa resume-se a colocar na conta da escola a superação das desigualdades sociais e o desenvolvimento econômico, defendendo que a suposta má qualidade da educação seria a causa da perpetuação de desigualdades e do arrefecimento da economia. Isso é a teoria do capital humano alinhada ao discurso neoliberal”.

Tais narrativas endossam, legitimam e consolidam uma opinião pública contrária a oferta pública e favorável aos processos e práticas privatistas. Com a repetição, diz a pesquisadora, essas narrativas vão se tornando hegemônicas na sociedade e se naturalizando. A sociedade fica inerte e não reage na defesa da oferta de uma educação pública com qualidade que historicamente era a melhor no país, como ainda são as Universidades e Institutos Federais.

Por fim, a pesquisadora lembra que a educação escolar no Brasil já nasceu privatizada por intermédio da Companhia de Jesus, vinculada a igreja católica. Sempre houve um ator não estatal na política educacional brasileira. Porém, desde os anos de 1990, o Estado brasileiro vem sofrendo um processo de reestruturação e enxugamento e vem se abrindo a novos atores, que passam a participar, também, da política educacional”, descreve a pesquisadora.

Quando se examina a interferência da iniciativa privada na escola básica, nem sempre ficam inteiramente explícitos os conceitos e os princípios envolvidos na análise. Para o professor Vitor Henrique Paro (USP), a interferência do privado na escola básica – especialmente por meio dos pacotes e “sistemas” de ensino comercializados pela iniciativa, sonega dos educadores escolares o direito (e o dever) de planejarem, organizarem e executarem a aprendizagem em estreita colaboração com seus colegas e educandos. Ao invadir, assim, o espaço público, o privado não só reduz a universalidade da cidadania, mas, também, solapa o terreno em que se constrói o educativo.

Indicadores apontam retrocessos em vários níveis e modalidades

Conforme o Censo da Educação Básica de 2023 e a Pesquisa por Amostra de Domicílios (PNAD da Educação 2023) publicada em 22 de março/2024, a educação básica apresenta piora e retrocessos de indicadores em vários níveis e modalidades. Em 2023, registraram‐se 47,3 milhões de matrículas nas 178,5 mil escolas de educação básica no Brasil, cerca de 77 mil matrículas a menos em comparação com o ano de 2022. Essa leve queda é reflexo do recuo de 1,3% observado no último ano na matrícula da rede pública, que passou de 38,4 milhões em 2022 para 37,9 milhões em 2023, e o aumento de 4,7% das matrículas da rede privada.  A proporção de matrículas no ensino fundamental cai pelo terceiro ano seguido, sinalizando uma tendência estrutural.

O censo revela que foram registradas 26,1 milhões de matrículas no ensino fundamental em 2023. Esse valor é 3,0% menor do que o registrado para o ano de 2019. Nos últimos cinco anos, essa redução foi mais acentuada nos anos iniciais (3,9%) do que nos anos finais do ensino fundamental (1,9%).  O Ensino Médio apresentou 7,7 milhões de matrículas no ensino médio, uma redução de 2,4% no último ano.

Já na Educação de Jovens e Adultos (EJA), o número de matrículas diminuiu 20,9% entre 2019 e 2023 chegando a 2,6 milhões em 2023. A queda no último ano foi de 6,7%, ocorrendo de forma semelhante nas etapas de nível fundamental e de nível médio, que apresentaram redução de 6,9% e 6,3%, respectivamente.

Segundo a PNAD de Educação também de 2023, o Brasil tem 48,5 milhões de pessoas de 15 a 29 anos de idade e 15,3% deles estavam ocupadas e estudando, 19,8% não estavam ocupadas nem estudando, 25,5% não estavam ocupadas, porém estudavam e 39,4% estavam ocupadas e não estudavam.

A Pnad revelou que 9 milhões de estudantes não conseguiram terminar o Ensino Médio no Brasil, em 2023. Destes, 58,1% são homens e 41,9% são mulheres. A discrepância é maior entre a população negra. Cerca de 71,6% dos alunos que desistiram de estudar são pretos ou pardos, enquanto o cenário é de 27,4% entre os brancos. A mesma pesquisa mostra, também, que o Brasil, o analfabetismo resiste, ainda tem 9,3 milhões de pessoas analfabetas com 15 anos ou mais de idade.

Somente a modalidade da Educação Profissional (EP) apresenta indicadores de expansão, chegando a 2,4 milhão de matrículas em 2023, um aumento de 26,1% em relação a 2019. Porém, a EJA do ensino médio que teve um discreto declínio; a modalidade com maior incremento relativo foi a dos cursos de formação inicial e continuada ou de qualificação profissional (FIC), que apesar do baixo número de matrículas em termos absolutos, cresceu 71,9% no último ano.

Porém, as matrículas da EP estão principalmente concentradas na rede privada, representando 44,4%, seguida das redes estadual e federal, com 38,2% e 13,7%, respectivamente. De todas as etapas de ensino, a educação profissional é a que detém o maior número de matrículas na rede federal, alcançando 331.037 em 2023. A mesma rede apresenta o maior número de matrículas da educação profissional na zona rural (no campo).

Ainda, segundo dados da PNAD da Educação 2023, quase 400 mil crianças e jovens de 6 a 14 anos não estavam frequentando a escola em 2023. O número demonstra que 5,4% dos alunos abandonaram a escola no último ano. A parcela de crianças na escola começou a cair a partir de 2019. Daquele ano para 2022, o volume de alunos foi de 97,1% para 95,2%, refletindo, até então, os efeitos da pandemia de Covid-19, das reformas educacionais, da queda dos investimentos e da precarização das escolas.

Cabe lembrar que a educação pública há três décadas tinha suas vagas disputadas pelas juventudes que esperavam conseguir trabalho e mobilidade social com base em sua escolarização, hoje precisa oferecer recursos financeiros aos estudantes, como os programas Pé-de-Meia (MEC), Todo Jovem na Escola (SEDUC-RS) e Primeira Chance (Paraíba) para que a evasão não seja tão massiva. Essa mudança de posição da educação escolar, alerta Caroline Catini (UNICAMP), impõe a análise de outras contradições do sentido da escolarização, que não fique presa no argumento da garantia da permanência de estudantes mais pobres e que abandonariam a escola sem tal incentivo financeiro.

A ótica da financeirização e da privatização

Da ótica do empresariado e investidores, como comandam a reestruturação da forma e função da educação escolar, além de uma fonte direta de rendimentos, por meio de investimentos em ativos reais e financeiros e do controle sobre o orçamento estatal, a educação, antes de tudo, tende a ser reduzida a um conjunto de dispositivos voltados à divisão, fragmentação, seleção, discriminação, e controle sobre a juventude, seja na condição de trabalhadores a serem explorados, de consumidores a serem condicionados, ou de uma massa endividada e enredada nas teias da financeirização.

Não por acaso, prossegue a pesquisadora Catini, a educação financeira é componente curricular da BNCC, em vigor desde 2017, e em 2021 foi criada uma comissão para formar professores e professoras para abordar a temática em sala de aula. Além de calcular, poupar e investir, a educação financeira visa ensinar um conjunto de comportamentos para que os jovens façam escolhas mais “conscientes”. De fato, a educação financeira está ganhando cada vez mais centralidade nos currículos dos estados desde a educação infantil. Em São Paulo, por exemplo, desde o meio do ano de 2023, todas as disciplinas eletivas criadas com a Reforma do Ensino Médio foram substituídas por aulas de educação financeira. Chegaram a ser criadas mais de 1.500 disciplinas nos primeiros anos de implementação da reforma. O programa pretende atender 2,5 milhões de jovens, os mais pobres, do universo de quase 8 milhões de estudantes de ensino médio.

A educação superior seguiu esta lógica da privatização e mercantilização, com mais de 2/3 das matrículas pagas, onde cinco grupos educacionais respondem por 2,5 milhões de matrículas, a maioria na modalidade EAD. Esta lógica está sendo desenvolvida e aplicada à Educação Básica. É a lógica mercantil e financista do capitalismo adentrando os espaços de formação acadêmica e escolar. Trata-se da destruição da educação pública enquanto direito e espaço comum público.

Se não tomarmos consciência e reagirmos, a educação pública será destruída pela lógica do Empreendedorismo na escola, financeirização da educação e conformismo da sociedade e do “protagonismo juvenil”.

FONTE: https://www.extraclasse.org.br/opiniao/2024/04/desqualificar-educacao-publica-e-meta-das-reformas-educacionais/

Autor Gabriel Grabowski. Também já publicou texto “O Brasil é o terceiro país com menor investimento por aluno”: https://www.neipies.com/brasil-e-o-terceiro-pais-com-menor-investimento-por-aluno/

Edição: A. R.

O modelo de mensuração educacional e o desaparecimento da Formação

Suspeito que este processo limitado e instrumental de mobilizar a educação por meio das mensurações, compromete e danifica a formação mais ampliada dos estudantes, pois não é capaz de mobilizar o desenvolvimento de capacidades mais amplas para uma vida democrática cidadã.

Nas últimas décadas tem sido frequente um discurso inflamado de que a educação pública não tem qualidade e que só irá melhorar se implantarmos processos de avaliação rigorosos, medições eficientes, aplicação de provas de larga escala, utilização de padrões internacionais de avaliação e adotarmos a lógica empresarial para gerenciar o funcionamento da escola. Ana, Prova Brasil, Enade, Saeb, Enem, Pisa são algumas das siglas e nomenclaturas que tem povoado as escolas e as redes de ensino nos últimos tempos, com o firme propósito de que mensuração torna-se o projeto condutor que levará a medir a “qualidade educativa” no Brasil.

Certamente, devem haver boas intenções e boas razões, embora os principais proponentes venham dos setores empresariais da educação que tem transformado educação num bem de consumo, numa mercadoria que pode ser ofertada, comprada e vendida por dinheiro. Suspeito que este processo limitado e instrumental de mobilizar a educação por meio das mensurações, compromete e danifica a formação mais ampliada dos estudantes, pois não é capaz de mobilizar o desenvolvimento de capacidades mais amplas para uma vida democrática cidadã.

Segundo a filósofa Martha Nussbaum (2012, p. 40), as capacidades são “um conjunto de habilidades inter-relacionadas para escolher e agir, desse modo, a capacidade vem a ser uma espécie de liberdade: a liberdade substantiva de alcançar combinações alternativas de funcionamento”. Em consonância com essa ideia, destaca-se a necessidade de preservar a independência e de assegurar a capacidade do indivíduo de manter o pensamento crítico que lhe permita avaliar a coerência daquilo que lhe é dito e conceber alternativas para tudo o que lhe é oferecido (Ibidem, 2014, p. 78).

Nussbaum (2012) questiona a questão das medições em educação a partir de duas questões: o que as pessoas são realmente capazes de ser e fazer? E quais são as reais oportunidades de escolha e ação que a sociedade lhes oferece? A partir desses questionamentos, a autora realça, por meio da teoria comparativa de qualidade de vida demonstrada pelo economista indiano ganhador do Prêmio Nobel em Economia em 1998, Amartya Sen, de que a heterogeneidade impossibilita a medição de oportunidades e capacidades.

Ao evidenciar tal impossibilidade de medição, Nussbaum critica as abordagens que mesclam todas as esferas da vida e as transformam em um único dado mensurável, como o Produto Interno Bruto (PIB). A partir dessa perspectiva, podemos pensar os formatos de avaliação em larga escala que tem sido ovacionados pelos empresários da educação e pela mídia alinhada ao neoliberalismo, tendo em vista que estas medições avaliam os indivíduos de forma reduzida, a partir dos resultados de uma única medida numérica. Essa medida, por sua vez, acaba por desconsiderar as capacidades mais ampliadas dos alunos e as desigualdades existentes no processo.

Não existe avaliação justa quando são ignoradas as desigualdades do processo.

Nessa perspectiva, Almeida (2020) chama a atenção para as diferentes realidades dos educandos, relacionadas às esferas culturais, sociais e econômicas. Tais realidades, por não serem igualmente justas, acabam por desnivelar as chances que os alunos têm de obter o desempenho almejado; “desse modo, torna-se insólito equiparar, de modo ilustrativo, um aluno de uma escola cujo foco é a formação moral ou crítica-social com aquele que tem um ensino tecnicista, voltado para a resolução das questões do Enem” (Almeida, 2020, p. 417). Em consonância, Nussbaum (2015) evidencia a importância de considerar dois aspectos: o indivíduo e a situação. Além de se considerar a situação do indivíduo, deve-se considerar as diferenças individuais, pois as experiências influenciam os aspectos psicológicos de cada um.

Nesse contexto, podemos refletir acerca das medições, na medida em que “o raciocínio crítico e a imaginação empática não podem ser mensurados por meio de testes quantitativos de múltipla escolha” (Nussbaum, 2015, p. 134). Esse método de mensuração acaba por não contemplar o que o indivíduo é capaz de ser e fazer. Por meio dos avanços do processo de aprendizagem, dispostos no método de autoavaliação (e não nos formatos de avaliações de larga escala), seria possível o desenvolvimento crítico-reflexivo do educando a partir de uma avaliação mais ampla e globalizada. Tal avaliação ampliada estaria pautada pela educação como forma de desvincular e perceber as relações de poder, emancipação humana e desalienação, avançando, assim, para a construção de um saber autônomo e humanizador.

As capacidades que Nussbaum (2012) propõe visam a uma educação humanizadora e sensível, por meio das artes e das humanidades, a qual seria capaz de nos libertar de uma educação mecanizada e padronizada cuja única finalidade é fazer com que os alunos tenham bom desempenho em avaliações. Essa educação humanizadora seria uma forma mais correta de mostrar o que cada um realmente é capaz de ser e fazer, indicando o quanto um educando é qualificado e se está apto a ingressar na educação superior, por exemplo.

Quando a avaliação fortemente induzida pelas medições numéricas de larga escala vão se tornando o critério de aferir “qualidade na educação”, temos um processo limitado de escolarização e de formação, pois produz uma semiformação (Adorno, 2000) e um processo tecnicista padronizado de formatação dos estudantes. Perde-se o ideal humanizador da formação, quando a escolarização sucumbe à demanda do mercado de trabalho e ao consumismo alienado, que exige cada vez mais treinamento, eficácia, eficiência, subserviência e ausência de pensamento crítico e reflexivo.

Esse modelo de mensuração de avaliação proposto evidencia o que Bachelard (1996, p. 261) denuncia ao dizer que “medir exatamente um objeto fugaz ou indeterminado, medir exatamente um objeto fixo e bem determinado com um instrumento grosseiro, são dois tipos de operação inúteis que a disciplina científica rejeita liminarmente”.

Dificilmente teremos uma escola pública melhor e mais justa se continuarmos apostando nas medições como projeto norteador da educação de qualidade e na falácia da meritocracia.

O pensador François Dubet (2004, p. 542) reconhece que “a concepção puramente meritocrática da justiça escolar se defronta com grandes dificuldades e, mesmo que aceitemos o princípio, fica claro que ele deve ser ponderado”. Ele mesmo observa que “a Sociologia da Educação mostra que a abertura de um espaço de competição escolar objetiva não elimina as desigualdades” (Dubet, 2004, p. 542), e aqui estão em jogo tanto as desigualdades entre as pessoas quanto as desigualdades entre os sexos e os grupos sociais, sendo que os mais favorecidos têm vantagens decisivas. É falacioso dizer que a igualdade de oportunidades para o acesso escolar elimina as desigualdades escolares.

Dubet (2004, p. 542) também ressalta que “uma igualdade de oportunidades meritocráticas pressupõe, para ser justo, uma oferta escolar perfeitamente igual e objetiva”. No entanto, o que se vê e o que quase todas as pesquisas mostram é que “a escola trata menos bem os alunos menos favorecidos”, isto é, as equipes de professores são menos estáveis, não há suporte familiar aos alunos e as atenções destinadas aos estudantes são diferentes.

Nas palavras do próprio Dubet (2004, p. 543): “quanto mais favorecido o meio do qual o aluno se origina maior sua probabilidade de ser um bom aluno, quanto mais ele for um bom aluno, maior será sua possibilidade de aceder a uma educação melhor”. Nesse sentido, há “uma certa crueldade do modelo meritocrático”, pois “os ‘vencidos’, os alunos que fracassam, não são mais vistos como vítimas de uma injustiça social e sim como responsáveis por seu próprio fracasso”.

Essa condição de assumir a responsabilidade pelo próprio fracasso possui efeitos perversos na autoestima dos alunos, fazendo-os muitas vezes renunciar à escola e abraçar a violência. Ao impedir que percebam que seu fracasso pode ser decorrente das desigualdades sociais e de um conjunto de outras variáveis, a meritocracia reforça as desigualdades.

Outro problema igualmente relevante do princípio meritocrático acorado nas medições implica um conjunto de problemas no âmbito pedagógico. Como ressalta Dubet (2004, p. 543), “o princípio meritocrático pressupõe que todos os envolvidos na mesma competição sejam submetidos às mesmas provas”. No entanto, quando a competição começa, imediatamente vêm à tona as diferenças; “os que são incapazes de continuar competindo” desanimam, sentem-se impotentes, despreparados e mesmo “desanimam seus professores”; assim, passam a ser deixados de lado, marginalizados e esquecidos. Ao final, o sistema meritocrático reforçou as desigualdades que já existiam, com a diferença de que agora a vitória dos vencedores foi merecida.

Dubet (2004, p. 544) finaliza suas reflexões levantando alguns questionamentos sobre a virtude e a própria ideia de mérito: “O mérito é outra coisa além da transformação da herança em virtude individual? Ele é outra coisa além de um modo de legitimar as desigualdades e o poder dos dirigentes?”. E, seguindo os passos de John Rawls, ainda questiona: “o mérito realmente existe?”, “pode ser medido objetivamente?”, “pode ser aplicado às crianças e até que idade?”; “Se não somos responsáveis por nosso nascimento, como sê-lo por nossos dons e aptidões?”. Esses são questionamentos profundos, instigantes, provocativos e oportunos que convergem com o pensamento de Nussbaum (2015, p. 135), a qual afirma que, “nos Estados Unidos, o exame nacional […] piorou as coisas, como normalmente acontece com os exames nacionais”. Tais dimensões são completamente ignoradas em exames padronizados. No entanto, seriam essas dimensões que possibilitariam, por exemplo, que as crianças e os jovens se dessem conta das desigualdades sociais, de que a narrativa meritocrática é cruel e ilusória, de que a vida escolar pode ser mais intensa e criativa do que uma simples preparação para a realização de exames padronizados. Infelizmente, no caso do Brasil, estamos indo na direção contrária dessa possibilidade.

Em suma, o sistema de medição na educação carrega em si diversas limitações por considerar que todas as pessoas possuem as mesmas oportunidades e por não levar em consideração a natureza particular de cada sujeito.

Nussbaum (2014) considera a relação entre as humanidades e as artes um importante pilar de uma formação para a cidadania. Por conseguinte, as políticas educacionais, segundo a filósofa, devem cultivar tais áreas para que a democracia sobreviva (Nussbaum, 2014). Dessa forma, uma educação humanizadora pautada nas capacidades deve incutir no educando o hábito de questionar-se, principalmente sobre suas crenças e o que lhe é imposto. É por meio da inquietude do perguntar-se que equívocos, preconceitos e injustiças serão evitados.

Ao refletir sobre suas práticas atuais, o sujeito consequentemente modificará suas práticas futuras, pois tal reflexão, além de proporcionar o autoexame, provoca também uma mudança de atitudes, uma tomada de consciência e a responsabilização pelos próprios atos. O indivíduo torna-se, então, responsável pela própria liberdade, pela defesa e promoção de uma sociedade democrática e pela construção das condições de construir um mundo comum de convivência.

Para os que desejarem ampliar as reflexões apresentadas neste breve texto, indico o artigo “Critica as medições em Educação à Luz da Teoria das capacidades: a meritocracia que reforça a desigualdade”, que escrevi em parceria com Thalia Leite de Faria e Julia Costa Oliveira, publicado na Revista Internacional de Educação Superior (Riesup).

Segue o link de acesso: https://www.researchgate.net/publication/357860769_Critica_as_Medicoes_em_Educacao_a_Luz_da_Teoria_das_Capacidades_A_Meritocracia_que_Reforca_a_Desigualdade

Referências:

ADORNO, Theodoro. Educação e emancipação. 2 ed. Rio de Janeiro: Paz &Terra, 2000.

ALMEIDA, V. S. O Enem como instrumento de autoavaliação: um projeto não efetivado.

Revista Educação e Políticas em Debate – v. 9, n. 2, p. 407 – 420, mai./ago. 2020.

BACHELARD, G. A formação do espírito científico: contribuição para uma psicanálise do conhecimento. Tradução Esteia Dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996.

DUBET, F. O que é uma escola justa? Cadernos de Pesquisa. v. 34, n° 123, p. 539-555, set/dez, 2004.

FÁVERO, Altair Alberto; OLIVEIRA, Julia Costa; FARIA, Thalia Leite de. Critica as medições em Educação à Luz da Teoria das capacidades: a meritocracia que reforça a desigualdade. Revista Internacional de Educação Superior (Riesup), Campinas/SP, v.8, 2022. Disponível em: http://educa.fcc.org.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2446-94242022000100214

NUSSBAUM, M. Sem fins lucrativos: por que a democracia precisa das humanidades. Tradução de Fernando Santos. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2015.

NUSSBAUM, M. Educação e Justiça Social. Tradução de Graça Lami. Ramada: Pedago, 2014.

NUSSBAUM, M. Crear Capacidades: propuesta para el desarrollo humano. Barcelona: Paidós, 2012.

Autor: Dr. Altair Alberto Fáveroaltairfavero@gmail.com Professor e Pesquisador do Mestrado e Doutorado do PPGEDU/UPF. Também escreveu a reflexão “A construção de uma pedagogia da autonomia”: https://www.neipies.com/a-construcao-de-uma-pedagogia-da-autonomia/

Edição: A. R.

Tecnologia está gradualmente se integrando ao ser vivo

Livro visionário de Aldo Huxley, Admirável Mundo Novo inspira debates sobre o futuro da humanidade .

O livro Admirável Mundo Novo é um romance escrito por Aldo Huxley em 1932. Contendo 306 páginas e dividido em 18 capítulos, conta a história de uma nova organização mundial, onde a evolução da tecnologia possibilitou avanços em diversas áreas como a reprodução dos seres humanos, a clonagem em larga escala e a construção de castas sociais, geradas a partir do nascimento dos indivíduos pela engenharia genética. Também retrata a manipulação psicológica onde o amor não pode ser cogitado nem estimulado, mas em compensação, o sexo é banalizado e assume o protagonismo das relações sociais.

Segundo Bauman (1925-2017), “[…] a vulnerabilidade das identidades individuais e a precariedade da solitária construção da identidade levam os construtores da identidade a procurar cabides em que possam, em conjunto, pendurar seus medos e ansiedades individualmente experimentados e, depois disso, realizar os ritos de exorcismo em companhia de outros indivíduos também assustados e ansiosos.”

É assim, que em Admirável Mundo Novo presenciamos a quebra do princípio da identidade humana, onde o que hoje consideramos como direitos humanos, neste mundo de Huxley, não existe mais – as regras do jogo da vida mudaram. A vida não é gerada a partir do corpo da mulher, e sim desenvolvida em laboratórios e centros de pesquisa, onde são construídas e modeladas as identidades de cada ser, antes mesmo de “nascerem”. Portanto, a busca incessante pelo descobrimento das identidades aparecem com frequência no livro, especialmente quando Bernard Marx se questiona do porque não consegue se encaixar na sua casta, já que ele é diferente dos Alfa-Mais, os jovens, reunidos em grupos debatem sobre o que consideram certo e errado.

A “quebra” da inocência e do não descobrimento de que existem outras formas de viver em sociedade se dá quando, os jovens “evoluídos” visitam o campo dos “selvagens”. Lá, presenciam coisas que não conseguiam imaginar que existiam, pois era a forma primitiva de viver em comunidade.

Bauman nos diz que “a comunidade realmente existente” será diferente da de seus sonhos — mais semelhante a seu contrário: aumentará seus temores e insegurança em vez de diluí-los ou deixá-los de lado. Exigirá vigilância vinte e quatro horas por dia e a afiação diária das espadas, para a luta, dia sim, dia não, para manter os estranhos fora dos muros e para caçar os vira-casacas em seu próprio meio”. É isso que acontece quando saímos da zona de conforto e da bolha social que vivemos, conhecemos outras realidades e outros modos de conviver – quebramos a ideia de que determinado jeito de ser é o que deve ser mantido e passamos a questionar atitudes cotidianas.

A conscientização de que lá fora é diferente, desestabiliza e fragiliza a comunidade existente em nós mesmos, e, consequentemente nos faz querer sair e vivenciar novas experiências.

Outro fator desestabilizante é a vontade dos jovens de consumir o comprimido chamado desoma, que dá a eles a sensação de calmaria, paz e satisfação, impedindo-os de questionar ou mesmo sentir outros sentimentos que não fossem os pré-definidos para eles sentirem. É como se, ao verem a verdadeira realidade, quisessem tapar os olhos e voltar a escuridão – aos lugares que para eles eram mais cômodos de viver. É a típica história da caverna de Platão, onde o conhecimento e o questionamento são sufocados e mortos pelos ignorantes, que não deixam (e não querem) pensar de outros jeitos.

Aliás, o comprimido de soma – tão difundido no livro abre outro leque de questionamentos: o da dependência dos seres humanos à tecnologização. Atualmente vivemos em um mundo onde não nos imaginamos sem o uso de drogas e medicamentos (que de certa forma nos auxilia em diversos momentos), porém com a evolução da tecnologia e o desenvolvimento de novos tipos desses medicamentos, estamos caminhando para a realidade de Admirável Mundo Novo, onde basta tomar um comprimido de soma e os problemas estão resolvidos, não há tristeza, raiva ou descontrole. Já há medicamentos para controle da depressão, onde segundo a ADEB (Associação de Apoio aos Doentes, Depressivos e Bipolares), “atuam no cérebro, modificando e corrigindo a transmissão neuroquímica em áreas do sistema nervoso que regulam o estado do humor (o nível da vitalidade, energia, interesse, emoções e a variação entre alegria e tristeza), quando o humor está afetado negativamente num grau significativo”. No livro, eles atuam basicamente assim, mas de forma mais intensa e já estão inseridos na vivência cotidiana de todos os seres humanos – quase que estabelecendo uma interligação entre o corpo e o medicamento.

Massimo Canevacci (1942) vai nos dizer que esta interdependência pode ser considerada uma espécie de “bodycorps”, onde a tecnologia está gradualmente integrada ao ser vivo. É a fusão do objeto tecnológico com o corpo humano, criando uma simbiose – um processo de dependência, onde um não sobrevive sem o outro.

O Admirável Mundo Novo produz grandes e tormentosas reflexões sobre o futuro que nos espera enquanto sociedade. A reflexão sobre como e até onde utilizaremos a tecnologia é um dos pontos fortes do livro, tal como a visão futurística do autor, que já em 1932 conseguiu escrever esta obra pensando em questões que permeavam, mas ainda de forma primitiva os acontecimentos do mundo na época. É muito recomendável para quem deseja se aprofundar em questões ligadas à ética, tecnologia e psicologia, traçando um paralelo do que já está acontecendo em nosso mundo e do que ainda está por vir.

Autor: Anthony Buqui. Também escreveu crônica “Empresas de comunicação não sabem se comunicar com público mais jovem:  s https://www.neipies.com/empresas-de-comunicacao-nao-sabem-se-comunicar-com-publico-mais-jovem/

Edição: A. R.

As crianças das guerras

Tenho medo de um dia as crianças desaparecerem da face da terra. As crianças das guerras são vítimas do ódio de pessoas adultas que esqueceram de que um dia foram crianças.

Disse Jesus Cristo na sua passagem pela Terra “deixai vir a mim os pequeninos, pois deles é o meu reino…” Reino este que não temos visto aqui na Terra em meio a tantas guerras civis e militares que têm destruído lares, hospitais, escolas, hotéis e restaurantes. Lugares onde as crianças vão se esconder também estão sendo bombardeados.

Parece-me que o alvo são as crianças. Sim, são as crianças que estão sendo bombardeadas com uma mídia que impõe goela abaixo produtos que elas não podem comprar, com uma Internet que as intimam e muitas vezes as matam sem nem precisarem de armas nucleares.

O grupo terrorista Hamas degolou muitos bebês como pode ser visto a quem teve coragem de ver fotos nas redes sociais. Eu não tive essa coragem. Para mim toda criança devia apenas brincar até os seis anos de idade e nada mais. O mundo da criança é tão incompreendido pelos adultos! Elas querem ser ouvidas, fazem perguntas, choram, desejam coisas, mas sempre recebem um tremendo “não” a qualquer um dos seus pedidos.

As últimas guerras que temos acompanhado pela televisão bombardearam hospitais, lares e abrigos. A guerra da Ucrânia contra a Rússia e de Israel contra o Grupo Terrorista Hamas. Talvez o que mais passe na cabecinha das crianças desses lugares é por que tanto barulho e tanta gente morta perto delas.

Eu não sei direito o que se passa pela cabeça de uma criança em meio a uma guerra, mas sei que devem ficar muito assustadas, pois se nós adultos trememos de medo de enfrentar as bombas, os mísseis, as balas das metralhadoras dos soldados imagine uma criança de três ou cinco anos de idade acordar com a casa sendo bombardeada.

Devia existir um acordo mundial para que nenhuma criança fosse vítima nas guerras, mas como evitar isso se explodem seus abrigos, lares, igrejas, escolas e hospitais?

Tenho medo de um dia as crianças desaparecerem da face da terra. Não existirem mais bebês com essa onda de aborto sendo legalizada no mundo inteiro e discutida no Supremo Tribunal Federal – STF. Ninguém tem o direito de tirar a vida de outro. A vida é concebida desde o ventre da mamãe.

Vejo pela televisão as crianças chorando ensanguentadas nos hospitais, assustadas, sem a presença dos seus pais ou alguém conhecido, sem alguém que possa acalmá-las, sem seus brinquedos ou animais domésticos, sem nada. É triste. É doloroso. Crianças tendo seus membros amputados sem anestesias, sofrendo pelos corredores dos hospitais à espera de alguém que lhes diga quando tudo isso vai acabar, mas ninguém arrisca dizer por que ninguém quer mentir para uma criança em meio a tanto sofrimento.

Outro dia lendo uma revista de notícias vi a foto de uma criança correndo toda suja de poeira com medo das explosões no seu bairro. Ela chorava. Todos nós choramos quando estamos assustados enfrentando o inimigo que nem sabemos do que se trata porque ninguém nunca teve coragem de contar para a maioria das crianças que os homens brigam entre si e jogam bombas que destroem milhões de lares, escolas, hospitais e abrigos.

Eu só queria que as crianças fossem retiradas desses lugares em guerras e levadas para um lugar seguro onde tivessem brinquedos e pessoas sorridentes para lhes contarem histórias de princesas, bruxas e dragões.

Não matem as nossas crianças, peço pelo amor de Deus.

Deixem-nas longe das bombas, dos mísseis, das metralhadoras. Deixem-nas viverem. Elas não sabem o que são as guerras, elas não fazem ideia do que está acontecendo ao seu redor, elas veem pessoas mortas, pessoas chorando, pessoas ensanguentadas pedindo socorro e se sentem sem saber o que fazer em meio a uma multidão de gente que está morrendo perto delas vítimas de bombardeios.

Salvem as nossas crianças das guerras, eu peço. Não as deixem saber que existem pessoas capazes de mandar destruírem cidades e acabar com a vida de inocentes por problemas que poderiam ser resolvidos com conversas de ambas as partes.

A matança das nossas crianças é uma injustiça ao mundo da infância. Estamos matando as crianças por uma causa que dizemos ser necessária à humanidade. De qual humanidade falamos quando terroristas degolam crianças?

Tratam as nossas crianças como adultas quando nas favelas da cidade do Rio de Janeiro, São Paulo, Recife e outras mais que não preciso citar os nomes são feitas de “aviõezinhos” nome dado às que levam drogas para cima e para baixo no meio do tráfico. Crianças essas que deveriam estar brincando e estudando.

Não vejo nenhuma política federal, estadual ou municipal se preocupar com essas crianças, apenas vão aos noticiários lamentarem quando uma dessas é vítima de bala perdida ou violentada por um adulto. Falo aqui da guerra que as crianças brasileiras vivem todos os dias e que não movemos um dedo para tirá-las desses lugares.

As guerras não são somente as que usam bombas e mísseis, mas todas que afrontam contra a dignidade da pessoa humana como já se referia o filósofo do renascimento Pico Della Mirandola. Toda guerra começa com um simples desentendimento que vai crescendo e se tornando um problema maior.

Vivemos em guerra constantemente quando odiamos as pessoas ao nosso redor, quando apontamos uma arma para uma pessoa na rua, quando maltratamos as nossas crianças ou quando as deixamos nas mãos de pessoas violentas.

As crianças das guerras são vítimas do ódio de pessoas adultas que esqueceram de que um dia foram crianças.

Chorando ao redor do corpo do pai ou da mãe mortos sem lugar para onde ir e sem saber o que fazer a criança chama pelo pai à espera de que ele ou ela abra os olhos. Não sabe ainda o que é a morte, desconhece mais ainda o que é uma guerra feita por adultos que se intrigam e querem mostrar poder ao mundo.

Que mundo horrível este em que vivemos hoje em dia! Onde está o amor por Jesus Cristo?

Cadê os evangélicos que nessas horas se escondem e não protegem as nossas crianças dos traficantes, dos bandidos, dos soldados perversos. Onde estão os cristãos que mataram as bruxas e não destroem as armas que matam as nossas crianças? Armas essas que se misturam com gritos, palmadas, violências psicológicas.

O papa Francisco parece preocupado com as crianças das guerras, mas ele só fala e o momento é de agir e não aceitar ditadores nos cargos de ministros e presidentes de países em guerras. As milícias cariocas matam as nossas crianças oferecendo-lhes drogas e armas para guerrearem com os verdadeiros policiais que buscam a paz. Um soldado que aponta uma arma para uma criança e atira nela esqueceu completamente da sua infância.

Crianças são vítimas de guerras todos os dias. As guerras com os pais, as guerras com os avós, as guerras com os responsáveis que deveriam cuidar delas e ao invés disso as violentam cruelmente.

Não posso parar as guerras. Nenhum tipo de guerra das quais falo aqui neste pequeno ensaio, mas posso pedir as autoridades que olhem com mais carinho para as nossas crianças que andam assustadas com alguma coisa que não sabem nos contar, mas está as incomodando e elas entram em guerra contra esse inimigo invisível. A pior guerra da infância é não saber dizer o que está acontecendo consigo por medo da incompreensão dos pais.

Existem guerras em todos os lugares. Guerras cruéis por sinal. Guerras que matam nossas crianças todos os dias, que matam seus sonhos, suas esperanças, seus sorrisos e seus mundos imaginários. Qual criança em meio a uma guerra com bombas, mísseis, metralhadoras vai poder crescer saudavelmente? Quais adultos estamos formando para o futuro nesses países onde as crianças desde cedo já são treinadas para guerrearem e pegarem em armas pesadas para matarem outras crianças iguais a elas?

Para onde estamos indo que não enxergamos o mal que estamos fazendo às nossas crianças? Este é um reino de hipócritas e egoístas, pois o de Jesus Cristo ainda espera pelas crianças com flores e anjos à sua porta.

Outro dia estava lendo uma notícia no jornal da minha cidade e vi a triste história de que faltavam vagas para crianças nas creches. Ora, ora, pensei comigo. As nossas crianças se não têm escolas para irem como serão os seus futuros?

As autoridades estão mais preocupadas em construírem pontes, arranha-céus que está na moda em orlas marítimas, estradas e não em construírem creches e ampliarem o número de matrículas para que nenhuma criança fique sem acesso ao estudo garantido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA.

Parece que vivemos uma guerra grande em nosso Brasil e estamos “matando” o direito das nossas crianças pensarem criticamente e aprenderem a ler e a escrever na idade certa. Estamos com medo de formarmos cidadãos críticos e não termos mais a quem comprar votos. Talvez seja isso. Era para ter creches, parquinhos, quadras, brinquedos em cada bairro das cidades porque as crianças são o nosso maior tesouro. Serão elas que vão dirigir o país em breve. Elas precisam de amor, cuidados e carinho.

Para terminar eu concluo com uma música que acredito ser o resumo de tudo o que quis dizer acima, o nosso querido Gonzaguinha na canção “O que é, O que é” quando ele nos diz:

 “Eu fico com a pureza / Da resposta das crianças / É a vida, é bonita
E é bonita…”

Que a infância das crianças da Faixa de Gaza na Palestina ou as de Israel que foram degoladas, onde crianças estão morrendo todos os dias e a cidade do Rio de Janeiro onde crianças aprendem a pegar em armas todos os dias, possa ser dada com a pureza das crianças a clamarem no fundo dos seus olhinhos cheios de interrogações o que são as guerras e por que elas acontecem.

Eu não sei nada de guerras, mas sei um tanto que me importa e me faz chorar. A pureza das crianças é mais bonita.

Autora: Rosângela Trajano. Também publicou crônica “Por que esperamos das crianças o que não esperamos de nós?: https://www.neipies.com/por-que-esperamos-das-nossas-criancas-o-que-nao-esperamos-de-nos/

Edição: A. R.

Astério, o cego

Borges, na sua originalidade, criou uma história com algo diferente. O narrador é um Minotauro ciente de que o acusam de soberba, e talvez de misantropia, e talvez de loucura. Não admite que seja prisioneiro.

Impossível imaginar que Pablo Picasso (1891-1973), em 1934, tivesse se inspirado na figura do escritor argentino Jorge Luis Borges (1899-1986), para produzir a gravura do Minotauro cego, que integra a coleção suíte Vollard. E mais impossível ainda, nos parece, na atualidade, é admitir que, alguém consegue mirar a famosa gravura de Picasso, sem deixar de associar essa peça de arte com Borges.

Entre impossibilidades e concretudes, destaca-se, que, 1934, Borges não era cego e nem gozava do prestígio internacional que passou a auferir a partir do final dos anos 1960. A sua imagem, desde então, especialmente a do velho escritor cego, com um olhar singular, apoiado em um bastão e sendo guiado, quase sempre, por uma mulher, virou figura icônica inconfundível.

O Minotauro cego conduzido por uma menina à noite faz parte da coleção de 100 gravuras, produzidas por Picasso, entre 1930 e 1937, para atender encomenda do marchand e editor Ambroise Vollard.

Na citada gravura, sob iluminação tênue da Lua e de estrelas, o Minotauro cego, apoiado por uma vara e tomado pela mão de uma menina com rosto de mulher e com uma pomba de asas abertas no braço, avança vacilante pela noite. Dois pescadores em um barco e um jovem marinheiro de rosto adolescente, aparentemente assombrados com a bestialidade do Minotauro, observam a cena.

A imagem do Minotauro cego de Picasso tem se prestado a interpretações diversas, quando envolve Jorge Luis Borges. Desde psicanalíticas, trazidas à luz por Julio Woscoboinik (El secreto de Borges – Indagación psicoanalitica de su obra), ao tratar da obsessão do escritor por labirintos, até biográficas, como fez o jurista espanhol Eduardo Garcia de Enterria (La poesia de Borges y otros ensayos), que vê nela (na menina especialmente) a sombra frágil da estudante María Kodama, a segunda esposa de Borges, que acompanhou o escritor nos seus últimos anos de vida e mereceu dele a dedicatória de muitos livros, não obstante ser ela, arbitrariamente, relegada a papel secundário ou de vilã em algumas biografias do escritor.

A fascinação de Borges por labirintos deu origem, entre tantos textos, ao conto La casa de Asterión (incluído no livro El Aleph, 1949). Um relato breve, no qual o talento do escritor argentino se impõe desde o título até a última linha. No título, Borges não cita labirinto, usa casa, e nem Minotauro, faz referência a Astério, que era o nome usado em Creta. Na epígrafe – Y la reina dio a luz um hijo que se llamó Asterión (Apolodoro, Biblioteca, III, I) – antecipa, ao leitor razoavelmente atento, que se tratava de famosa lenda grega. E, no final, um desfecho que, a meu juízo, se mostra mais plausível do que o original.

A história da vingança de Poseídon, deus do mar, contra Minos, rei de Creta, é assaz conhecida. Idem sobre o menino, fruto da paixão da rainha Pasífae, esposa de Minos, pelo touro branco de Creta, que nasceu com corpo de homem e cabeça de touro.

A estranha criatura, o Minotauro, depois de adulta, acabaria levada para o Labirinto (projetado por Dédalo, pai de Ícaro), um lugar de onde ninguém conseguia sair. E, onde, a cada nove anos, como tributo da vitória de Creta sobre Atenas, sete rapazes e sete virgens, eram enviados para serem devorados pelo Minotauro. Até que, no grupo do terceiro tributo, Teseu, com a ajuda de Ariadne, filha de Minos, que lhe deu uma espada e um novelo de lã (o fio de Ariadne), penetrou no Labirinto, matou o Minotauro e, na companhia dela e de seus compatriotas, deixou Creta.

Borges, na sua originalidade, criou uma história com algo diferente. O narrador é um Minotauro ciente de que o acusam de soberba, e talvez de misantropia, e talvez de loucura. Não admite que seja prisioneiro.

Descreve o Labirinto como a sua casa e como vive nela. Ignora quem são as pessoas que entram no labirinto para que ele os liberte de todo o mal. Mas, lembra de que, uma dessas, na hora da morte, profetizou que, um dia, chegaria o seu redentor. Desde então, vivia, ansiosamente, esperando por esse redentor. E o derradeiro momento, na descrição de Borges, chegou: “El sol de la mañana reverberó en la espada de bronce. Ya no quedaba ni un vestigio de sangre. – ¿Lo creerás, Ariadna? – dijo Teseo – El Minotauro apenas se defendió”.

(Coluna originalmente publicada em O NACIONAL, edição de 19/08/2022.)

Autor: Gilberto Cunha. Também publicou no site a crônica “Um banquete, uma ceia e duas mortes”: https://www.neipies.com/um-banquete-uma-ceia-e-duas-mortes/

Edição: A. R.

A morte do Joaquim das letras vivas

Quando é mesmo que vamos ler mais os vivos que os mortos?

Ele caminhava a passos lentos porque sempre tinha em mãos um bocado de livros. E falava baixinho, reclamava, sussurrava, como que para ele mesmo; bem! se ninguém o ouvia mesmo… e continuava, de porta em porta, em escolas e afins.

Carregava consigo livros, debaixo do braço e ia socando em todas elas.

_É preciso bater em muitas portas, porque elas se fecham automaticamente, resmungava.  Imagina que se, para estes meninos lerem, bate-se forte nestas entradas, mesmo que comprem alguns livros, o que pensar se não os comprassem?

Joaquim era de outros tempos, naqueles em que as caligrafias eram parecidas.

_Letras de taxistas, alguns brincavam.  Muito bem escritas, todas as palavras cursivas, apreciava-se ler. E era do tempo em que liam mesmo, todos.  Guimarães Rosa, Machado de Assis, Jorge Amado e tantos que os esquecia de falar.

_Ninguém se interessa por ler mais nada, brigava.  Até a Bíblia evitam.  E lendo-a, não entendem.  É uma geração de 300 palavras, quando muito, 500.  Não sabem o que falam, tudo se torna pobre e vulgar sob este céu de anil.

Pensava que depois dos 60, somente uma rabugice criativa poderia mantê-lo na ativa: falar o que se pensa, escrever o que inspira, andar com quem se quer e namorar; a quem surgir a sua frente.  Os anos aumentam e o funil das oportunidades se estreita. É o caminho apertado das partidas.

Aposentou-se Joaquim no mundo das vendas, e, sabe-se lá o que vendia.  Mas atravessou os anos apreensivo pois foi-lhe tirada a missão de ensinar.  Um sonho antigo e que o desanimou, quando, em sala de aula, uma professora amargurada, triste e acabrunhada, desceu críticas a sua letra.  E outra, que o reprovou porque faltava aulas demais, metido que estava na política.  E perdeu a disciplina.  No seu tempo não havia cadeiras em se aprovar e as ‘matérias’ eram mais simples.

E saindo das portas feias e malcuidadas da previdência, feliz com sua contribuição encerrada, falou: _ vou escrever.  O mundo vai me conhecer.  Vou começar pelas crianças, quem sabe as distraio e as tiro da letargia e da omissão de seus pais, igualmente estranhos aos livros.

Joaquim era um homem inconformado com a vida, insatisfeito desde o berço e escandalizado com as injustiças.  Muitas e muitas vezes prendera-se em seu pensamento, na ideia de mudar de país, fugir, acantonar-se em uma esquina do mundo e viver de contar histórias e estórias para os que ali passassem.

Um homem de rosto escanhoado, de raros sorrisos, sempre com roupas simples, pois simples era sua relação com o mundo. Sandálias, uma calça larga, um par de óculos embaçado e, volta e meia, uma gravata desmaiada.

Entretanto, complexa era sua intimidade com as letras, livros, ensaios, crônicas, artigos e tudo o que era escrito. Porque sua respiração dependia do que lia. Jornais, nos tempos em que os lia, todos os dias.  Agora, jamais.

E como via o mundo?  Uma soma de todas as ignorâncias, feito de pessoas vulgares, iletradas e incultas, semi-educadas, caminhando somente sobre as calçadas de seus desejos.  Exagerado este Joaquim!

Então, escrito e impresso seu primeiro livro, saiu à cata de leitores.  Uma história simples de amor, compaixão e amizade. Como tem de ser o amor.

Conheça: www.neipies.com/arvores-nao-conversam-sinos-nao-falam-no-jardins-das-rejeicoes-tudo-e-possivel/

_Vai vender muito, falava baixo, quando sozinho pelas ruas de sua cidade. E ainda mais baixo, em salas de espera, recepções e audiências por reuniões que nunca resultaram em nada. Encontros e promessas de interesses vazios.

_Pois não, senhor? perguntou a secretária da diretora.  O que o senhor nos trouxe?

_ Trouxe uma pequena história, linda, onde fala do valor da amizade, das diferenças a serem superadas, por crianças e jovens, pela vitória do diálogo e do respeito e do amor possível, nas salas e pátios de escolas.

– Muito bonito disse ela.  Parece bom.  Alguém certamente vai gostar e comprar, o que não é meu caso.

_Mas as crianças adoram a história!  Insistia.

_As crianças adoram muitas coisas, mas como não sabem escolher, escolhemos por elas. É um perigo que cheguem a elas, contos e lendas que as desviam da verdade…e as tornam apáticas.

_Meu Deus, exclamou.  Fique com a posse da verdade porque eu vou ao outro lado da rua, ver a que outras mentiras hei de ouvir.

_Boa tarde senhor.  O que você quer realmente?

_Olha, como é uma escola religiosa, pensei que vocês poderiam comprar umas unidades deste livro; é amor e amizade em meio a natureza.  Fala de crianças, e até as árvores falam por elas. Há harmonia e a vida é leve e equilibrada.

_Muito bonita a sua capa.  Parece muito bom.  Olha, vai vender sim.  Alguém vai se interessar, o que não é o nosso caso.

Saiu o Joaquim com a sua caixa debaixo do braço.  Atravessou a rua e retornou à secretária da diretora.

_ Senhora.  Vamos fazer o seguinte? Eu dou os livros de graça, tome-os!  O importante é que seus alunos os leiam.  A caixa está pesada, não vou conseguir andar muito com ela.

_Aos alunos, a esperança de um anil melhor, murmurava.

E assim ficaram seus livros em um canto da sala, aguardando por mais poeira sobre seus ombros, como os demais ali estavam, imagina-se lá por quanto tempo.  Um pequeno cemitério em sua sala, dissolvendo em vida muitas palavras a contemplar.

Na semana seguinte, retorna o seu Joaquim.  Com ar de professor, andava com a coluna firme e os ombros rijos, imitando uma autoestima ausente.  A segurança que se vê, em almas desnudas e ocultas. Caminhava pela calçada, em suas pernas de ferro e barro. Qualquer tropeço, todavia, esborralhava.

_Bom dia Secretária, posso falar com a diretora?  É da educação né?  Sabe o que é; tive uma ideia. E eis que ela aparece sem querer.

_Pois não?

_Sra. Escrevi um livro em que as crianças adoram.

_Há, já vi seu livro, lindo.  Vai vender muito, mas tem que ter bastante apetite.  Alguém vai gostar muito, vai comprar, o que não é nosso caso.

Desceu o bom Joaquim escada abaixo e assim que chegou à calçada, sentou-se à moda dos índios e devorou o seu livro; página por página.  Começou pelos agradecimentos…e subiu, comeu o prefácio e assim que rasgava as páginas enchia sua boca. A contracapa foi a última a ser devorada. E voltou.

_ Sra diretora.

Foi direto.

_Veja só. Desci a escadaria junto à rua e comi todas as páginas.  A sua ideia foi excelente. Você acredita que é muito saboroso?  Mas comece pela conclusão e vai voltando aos poucos.  Pense em uma alface saborosa! Quer provar?

Não obrigado.  Já almocei.  O seu livro tem sabor, com certeza vai vender.  Alguém vai gostar, o que não é meu caso.

Joaquim desceu novamente e foi até o seu velho carro, de joelhos.  Pegou mais livros e veio trazendo-os à cabeça, equilibrando 100 deles.  E nenhum caiu. Mas ele sim, e bateu seu nariz em um poste. E sangrou.

Subiu de joelhos 54 degraus e entrou na sala da diretoria, onde se decide o futuro da educação.

-Sra. Diretora, veja!  Os livros têm leveza e harmonia.  Não caem, nem desalinham.  Quer tentar?  Quem sabe você compra apenas alguns e eu mesmo os levo, de joelhos, a todas as escolas.  Tudo vale a pena se a alma não desdenha, ouvi de alguém, algo assim.

Ele de joelhos, sangrando sobre os livros, era a paisagem de um amor incondicional pelo saber. E do desprezo, igualmente, em sua proporção direta.

_Obrigado Sr.  Já percebi que os livros têm magnetismo e parecem que se abraçam, uns aos outros.  Alguém vai comprar muito e vai se interessar, o que não é meu caso.

Então Joaquim saiu e caminhou até a praça próxima. 

 _Quem os lerá? O ferro velho? E então se avizinha o perigo; em se tratando de conselhos e precipícios, sempre tem alguém que acha que o fundo não é o bastante.

Ouvindo atentamente a sua história, logo veio a proposta desonrosa, de quem passou a madrugada com a testa de fora. Um mendigo invisível, errante pela praça principal, cheio de ideias escondidas.

_Por que você não os queima todos?

-Olha, respondeu o infeliz escritor, que ideia!

_Sim, você foi a escolas, livrarias, empresas, e agora, justo na Educação…queime todos. Não há mais leitores. Sequer os professores os lerão, falou o metafísico ambulante das pingas e das valetas.

Correu Joaquim no seu velho carro e apanhou todas as caixas.  Empilhando uma a uma, fez como que uma torre de livros, a Babel da degradação linguística, sob uma linda árvore. Galhada, de um verde intenso e folhas pontiagudas. Depois, soube-se que estava em extinção, rejeitada a coitada.  Antes de ir, assistiu sob seus pés a tragédia de um leitor, agora escritor, carcomido pela desilusão de suas páginas não lidas e desprezadas.

E chamou mais mendigos, pedintes, gente desgraçada pelas praças da cidade, todos, em um ajuntamento da miséria humana e sua cultura; o público certo junto à neblina que não nunca parou de baixar na mente coletiva: a indiferença.

E riscou o fósforo!

E as chamas subiram. Ao conselheiro das sarjetas tentou falar, mas nada se ouvia. A mendicância ria, feliz com seu epílogo.  Mas a árvore não aceitava o desacato.  De suas folhas começaram a escorrer uma seiva branca tentando apagar o fogo. Em vão.  As letras de seus livros começaram a pular e corriam desesperadas pela grama e sumiam. Muitas morreram e algumas frases, perderam-se para sempre.

As palavras, começando pelas maiores, desesperadas, saltavam pelo meio fio, em busca de água. Tropeçavam entre si em um emaranhado de termos incompreensíveis e sem sentido, clamando por ajuda, como velhos livros abandonados por seus leitores, lamentando por noites a fio em bibliotecas esquecidas.

E o inesperado aconteceu; Joaquim vendo seus livros ficarem sem letras atirou-se ao fogo como que querendo juntá-las todas.  E foi indo aos poucos, aos olhos dos seus futuros leitores; os invisíveis deste mundo. Derreteu a vida de quem sonhava ensinar. Nem queria muito, ele. Quis ele salvar suas palavras, mas perdeu-se em vida. Morreu abraçado aos livros, agora sem impressão alguma. O vazio e o nada.

O tempo passou e a árvore também não quis viver.  Nada nasceu no seu espaço. Sua história, soube-se depois, também fora contada em livro por Joaquim.  Mas ninguém soubera.  Claro, ninguém a lia…

Como é comum entre as pessoas, sentirem prazer na ignomínia alheia, falava-se do louco Joaquim, onde seus livros o tragaram para a morte.

Passados alguns anos, soube-se também, a diretora enforcou-se na sua biblioteca.  Subiu sobre uma pilha de contos infantis e chutou os últimos. Sua assistente enlouqueceu, parece, porque em uma tarde, no banco da mesma praça, distraída, via uma multidão de letras soltas, correndo aos seus pés, por entre as gramas, como querendo juntar-se umas às outras. Ficaram conhecidas como as letras viúvas do seu Joaquim. Caminha em um sanatório, recitando em voz alta o livro rejeitado.

O ele vendeu horrores! E o mendigo metafísico das madrugadas mal dormidas, tornou-se um grande livreiro. Pensava muitas vezes em começar a escrever.

O céu é de anil, por aqui, mas no ar sente-se o odor da ignorância.

Morrendo o bom Joaquim, salvou seus livros. E cumpriu-se as escrituras; “assim como o homem imagina em sua alma, assim ele é”.

É que ele sempre falava:  _morro pelos livros!

Todo o cuidado com o que se pensa, portanto.

Quando é mesmo que vamos ler mais os vivos que os mortos?

Referências:

1.Parte do diálogo de Joaquim com a Secretária, foi inspirado no diálogo de uma filha com sua mãe, no livro de Judith Viorst, Perdas Necessárias.

2. O versículo citado é Provérios, 23:7

Autor: Nelceu A. Zanatta. Também publicou no site a crônica “Há cinquenta países que leem mais do que nós: o que nos atrasa?”: https://www.neipies.com/ha-cinquenta-paises-que-leem-mais-do-que-nos-o-que-nos-atrasa/

Edição: A. R.

“Empresas de comunicação não sabem se comunicar com público mais jovem”

Em média, os usuários no Brasil passam 29,2 horas por mês no TikTok.

Segundo dados recentes da DataReportal, o Brasil conta atualmente com a marca de 82,2 milhões de usuários com 18 anos ou mais na plataforma TikTok. Este número pode ser ainda maior, considerando que a maioria desses usuários está em faixas etárias mais jovens e mentem a idade ao criar conta na rede social.

Diante desse cenário, surge o questionamento sobre como o jornalismo, em especial os grandes veículos impressos do país, como a Folha de São Paulo, Estadão e O Globo, estão lidando com essa plataforma, que, vale ressaltar, foi lançada em 2014.

Inicialmente reconhecido como uma plataforma voltada principalmente para conteúdo musical, o TikTok evoluiu ao longo do tempo, incorporando mecanismos e algoritmos próprios que ampliam o alcance dos conteúdos compartilhados. Hoje, podemos encontrar uma diversidade de conteúdo de todos os tipos, e o TikTok tem se transformado em uma ferramenta de pesquisa quase tão utilizada quanto o Google, pois os resultados não dependem de leitura em texto da web e sim aparecem em segundos nos vídeos hiper editados e atrativos visualmente. A explicação sai na hora em poucos segundos.

No entanto, onde exatamente estão os jornais de maior circulação nacional nessa plataforma? Surpreendentemente, eles parecem estar sendo superados por perfis anônimos que se dedicam a fofocas, de forma informal e descentralizada. Por exemplo, perfis como “Choquei” contam com quase 3 milhões de seguidores e registram milhares de visualizações em cada vídeo diariamente, enquanto os três jornais mencionados anteriormente, juntos, não conseguem alcançar essa marca.

 Juntos, os principais “@s” do gênero somam mais de 150 milhões de seguidores. FONTE: METRÓPOLES.

É importante ressaltar que as diferenças entre um perfil focado em fofocas e os jornais que produzem jornalismo sério e consciente são gritantes. No entanto, a reflexão que se impõe é: por que empresas constituídas por profissionais qualificados em comunicação não conseguem atingir o grande público?

Onde está o erro na adaptação das linguagens para cada rede social? Parece existir uma certa falta de compromisso por parte do jornalismo como instituição social em buscar um público mais amplo, visível e nesta faixa etária, especialmente diante da crescente onda de disseminação de fake news nos últimos anos.

A ineficácia na comunicação é evidente, e não parece haver interesse por parte dos usuários do TikTok em acessar conteúdos jornalísticos, visto que muitas vezes são simples réplicas de outras plataformas. Talvez, uma das razões para esse fracasso seja o enxugamento das redações e a alta demanda de desempenho exigida dos profissionais remanescentes, aliada à sobrecarga de tarefas que antes eram mais bem distribuídas. Outro fator pode ser a falta de investimento na capacitação dos profissionais existentes para se adaptarem a essa nova realidade, ou até mesmo o desinteresse desses grupos em alcançar esses usuários.

A preocupação que persiste é: se essa população jovem usuária do TikTok não for orientada a consumir produtos jornalísticos de qualidade, ou se esses produtos não conseguirem alcançá-los, como poderemos combater o problema das fake news e incentivar a busca por informações precisas? São questões para as quais o jornalismo brasileiro ainda parece não ter respostas concretas.

Autor: Anthony Buqui – Jornalista, ativista, produtor cultural, videomaker, fotografo e captador de recursos. Também publicou crônica Ministério da Cultura se destaca no primeiro ano de governo de Lula 3: https://www.neipies.com/ministerio-da-cultura-se-destaca-no-primeiro-ano-de-governo-de-lula-3/

Edição: A. R.

Borrachas no passado, para tocar em frente, nunca mais!

Aprender e dizer todo dia, de novo, cada vez com mais força, “nunca mais”, é fundamental para que a caminhada da humanidade seja de humanização, sempre alerta e fazendo a denúncia de todas as formas de sua destruição, por menores que sejam, sabendo que “não queremos mal a quase ninguém” e que há o que simplesmente “não queremos mais”.

É preciso “passar a borracha no passado” e anistiar em nome da “pacificação”. Nada de ficar “remoendo”, é preciso “tocar pra frente”. Falas de dois personagens, que ainda que sejam antagonistas na política nos últimos anos, neste tema, que não é de menor importância, parecem convergir e concordar. Chocante que Lula tenha dito o que disse, ainda que seja esperado de Bolsonaro o que falou. Mesmo assim, igualmente inaceitável. 

Não haverá paz, nem nos cemitérios, enquanto não houver justiça. Os crimes contra a humanidade, contra a democracia, as violações dos direitos humanos, precisam fazer “viver sobressaltado”, sem o que, tudo o que se propuser como saneador e restaurativo, pode não ser efetivo. 

sofrimento das vítimas não ficou no passado. Ele continua e pode significar revitimização e até produzir novas vítimas – seja por desqualificar aquelas do passado e as que poderão vir das repetições dele – se não for adequadamente enfrentado. A cura não passa pelo esquecimento da dor, mas sim por sua integração como parte das aprendizagens a levar para a vida, não somente como uma experiência pessoal, mas também como uma experiência coletiva. Aprender é parte do não “empobrecer” a experiência. 

História não é sinônimo de um passado congelado, ao qual se poderia retornar ou que nada tem a informar o presente e nem mesmo para orientar o futuro… até porque, em muitos aspectos, espera-se que o futuro “seja ancestral” (não arcaico e no sentido do tradicionalismo), e, em outros, que não repita o passado. Há passados ultrapassados, mas nem todos! E até estes hão de ser escrutinados. Fazer história é fazer memória, com verdade e justiça, com força crítica e criadora. Sem que estejam combinadas, podem abrigar e sugerir reproduzir “monstros”, aqueles típicos de fatalismos ou reacionarismos.

“Tocar pra frente” sem ficar remoendo o passado? Seria até possível se o tempo e a história pudessem ser entendidos como uma linha reta – uma seta irreversível – que progride sempre e só para o melhor, contendo a “decadência”… Nada mais falso… a história e o tempo se fazem combinando os mais diversos movimentos e sentidos, diversas temporalidades, em fluxos turbulentos e politemporais. Abrigar-se numa ideia assim de progresso é legitimar os “escombros”, ainda que se olhe para eles “angelicalmente” assustados. [Walter] Benjamin já sugeria que, em lugar de acelerar, talvez seja tempo de frear a “locomotiva”, não só por razões ambientais e climáticas, mas também por elas.

Aprender e dizer todo dia, de novo, cada vez com mais força, “nunca mais”, é fundamental para que a caminhada da humanidade seja de humanização, sempre alerta e fazendo a denúncia de todas as formas de sua destruição, por menores que sejam, sabendo que “não queremos mal a quase ninguém” e que há o que simplesmente “não queremos mais”.

A transição – travessia, que tem muitas margens, nem sempre totalmente seguras – para uma realidade reconciliada – desejável, ainda que difícil – cobra que se identifiquem as “maldades”, que aqueles que as tiverem praticado as reconheçam e estejam dispostos a se emendarem, que aqueles/as que as sofreram acreditem que seus perpetradores foram responsabilizados com justiça e com verdade, de modo que canais e caminhos sejam abertos para novas realidades. 

Não se trata de anistiar e nem mesmo de “passar borracha”. Também não se trata de pedir às vítimas que se calem ou que parem de “remoer”, pois, se o fizerem, “as pedras falarão”.

A justiça se pode exercer das mais diversas formas: retributiva, distributiva, transitiva, reparadora… e não se trata de escolher uma, mas de combinar aquelas que melhor forem capazes de “fazer justiça” às vítimas. Justiça que serve à opressão, de qualquer tipo, não é justiça…

FONTE: https://www.brasildefato.com.br/2024/04/01/borrachas-no-passado-para-tocar-em-frente-nunca-mais

Autor: Paulo César Carbonari, doutor em filosofia (Unisinos), membro da coordenação nacional do Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH Brasil). Contato: carbonari.paulo@gmail.com Também publicou no site crônica “O pensamento tornou-se cego”: https://www.neipies.com/o-pensamento-tornou-se-cego/

Edição: A. R.

O C a s c ã o   d e   A l h o

Morre, aos 95 anos, o homem mais sujo do mundo. Acreditava que a limpeza era a causa fundamental das doenças. Por isso, não tomou banho durante 75 anos.

A notícia acima pode não ser verdadeira, mas serve de pretexto para contar outra história similar e verídica, tanto que a vi com meus próprios quatro olhos. Conto tudo o que vi e ouvi dos vizinhos, que preferem o silêncio. O que não ouvi, inventei para ajudar a Literatura. Assim, movido pelo impulso de não me calar diante de criaturas tão singulares, encorajo-me a contar quase tudo o que cheirei, vi, ouvi e imaginei. Assim contribuo com Shakespeare para revelar que há mais coisas entre o céu e a terra do eu sonha nossa limitada filosofia.  

Tudo começou com a terrível guerra da fragmentação da grande Iugoslávia em seis pequenos países: Bósnia, Croácia, Macedônia, Eslovênia, Sérvia e Montenegro. Na ocasião, o Presidente russo Mikhail Gorbachev (1985- 1991) instituiu a famosa Perestroika, que significava reestruturação econômica.  

Além da ideia, ele tinha um mapa (mancha) na parte frontal da cabeça calva. Assim, como quase tudo tem um fim, a União Soviética começou a se desmanchar pelas beiradas. Foi daí que alguns voos chegaram à mãe gentil, que abriu as portas para acolher milhares de famílias de boa qualidade técnica.

Elásticus Nu Alius, que era um membro do exército sérvio, veio ao Brasil para se livrar das bombas lançadas pelos aviões da OTAN. Poderia morrer, pois era um espião a serviço do poderoso exército soviético.  Vendeu tudo o que tinha e pousou discretamente onde conterrâneos já tinham abertas algumas fronteiras profissionais.

Mais tarde, rumando mais ao Sul do Brasil, foi acolhido em uma grande empresa de eletrificação rural, onde ainda presta serviço de manutenção. E assim, como terceirizado, acredite quem quiser, aqui cravou o pé até quando der. Como uma discreta coruja, só trabalha à noite, nos finais de semana e nos feriados, preferindo andar pelas veredas escuras, enquanto a maioria da população dorme.  

Vindo de uma região muito fria, sempre gostou da Wodka feita com ameixas. Quando ébrio, na presença de certas pessoas, abre o lero, para defender fervorosamente a tese de que os humanos provêm da terra e da água. Depois de um certo tempo, a elas retornarão devagarinho, quer queiram ou não. Mas sempre carregadas de impurezas grandes ou pequenas.

Crê que a sujeira e a limpeza são muito relativas e que as causas de muitas doenças residem no fato do excesso de limpeza. Se viemos do lodo, lodo devemos carregar, não nos sujeitando aos enganosos produtos químicos que contaminam corpos, rios e mares. Sabão, sabonete, xampu, cremes, perfumes contêm elementos prejudiciais à saúde. Por isso as alergias e as endemias.       

Assim, há mais de duas décadas, prefere banhos de chuva, fontes naturais e cachoeiras, quer seja verão ou inverno para tornar o corpo resistente. Gosta dos extremos, tanto que no verão usa casacos grossos; no inverno, bermudas, camisetas para desafiar o corpo, tornando-se resistente a quaisquer oscilações climáticas.

– É, pois é! Suspiram alguns admiradores de Elásticus Nu Alius.

Somado à coerência de seus princípios e atitudes, usa um emplastro que o protege de todos os males do corpo e da alma. Alho in natura e em cápsulas. In natura, tipo dentes de alho nos bolsos, bolsinhos e no porta-luvas. Em cápsulas, nas viagens, fugindo do controle sanitário. Confessa que jamais ficou doente e que nunca se vacinou contra Covid, Dengue, Malária, Chikungunya e outras males.

Dependendo das pessoas com que se depara e prega seus princípios, recebe severas críticas, com exceção de poucos e raros simpatizantes que perderam o faro por força da Covid. Sempre que pode, indica a leitura do livro As Academias dos Sábios de Sião, que trata sobre a Teoria da Conspiração. Nega que é um livro Fake. Mas que existe, existe. Sugere consultar o Dr. Google para obter algumas informações adicionais.    

Gaba-se por estar livre dos mosquitos, abelhas, carrapatos, pulgas, moscas, vermes, vírus e bactérias. Não higieniza a casa, não lava o carro e não usa quaisquer produtos de higiene e limpeza. Para não viciar o corpo com vários tipos de alimento, consome apenas um por semana, tipo só melancia, só peixe cru, só sopão de verduras. E assim vai.  Aos sem-leitura, recomenda Os Miseráveis, Macunaíma, O Tatu, Dom Quixote, Urupês e Memórias Póstumas de Brás Cubas. Adora o antigo personagem Cascão, da Turma da Mônica. No entanto, não fala do seu cheiro.

Elásticus Nu Alius já programou como e onde dará fim a sua vida regular para entrar conscientemente noutra sem sair do planeta Terra. Poupa-se de uma longa viagem ao céu ou ao inferno. Não será incinerado, nem enterrado na terra e nem jogado nas águas. Quando sentir que deverá decidir onde ficará seu cascão de alho, irá até os confins da Sibéria. Lá cavará sua sepultura no gelo, bebendo Vodka até atingir um profundo e longo sono. Não haverá choro, dores e nem ranger de dentes. Os vermes não o consumirão, podendo, no futuro, ser encontrado por cientistas e, quem sabe, recomeçar uma vida nova.

Então será o herói de um novo tempo, pois no antigo foi incompreendido. Será um Deus, pois terá superado a morte, um problema insolúvel até então. Usará a Inteligência Artificial para criar um emplastro à base de alho para livrar a humanidade do problema da melancolia. Se Brás Cubas não chegou a finalizar o plano, Elásticus Nu Alius terá resolvido dois grandes problemas dos terráqueos: a morte e a tristeza. Por onde passará, será louvado.

– Elásticus: Nosso Rei Nu Alius!

Autor: Eládio V. Weschenfelder. Também publicou no site a crônica “Por que (não) contar histórias: https://www.neipies.com/por-que-nao-contar-historias/

Edição: A. R.

As formigas

Penso felicidade, mesmo tentando mantê-la em área restrita. Brota em frestas. Às vezes coincide com o reaparecimento das formigas, às vezes não. A literatura, a ciência e a religião têm coisas mais importantes por fazer.

Há formigas invadindo a casa. Escarafuncham o encanamento elétrico, trilham azulejos, habitam um vaso, varrem a cozinha. Inócuos todos os conselhos: pó de café, pimenta, cravo e canela, alho, folhas de cinamomo. Pinga um pingo na pia e uma perninha assoma entre azulejos. Quase microscópicas, da cor das coisas, nem sempre posso vê-las. Se cochilo no sofá, percebo um estranho carinho. São formigas em revezamento quatro por quatro correndo entre a orelha e a nuca.

Ontem, decidi pela coabitação harmônica. Deixei uma mescla de migalhas e açúcar na área de serviço. Elas entenderam a mensagem. Hospedaram-se num velho xaxim ao lado da lavadora de roupas. Formigas são especialistas em diplomacia.

Não fale de felicidade nos círculos literários. Demonstre bom gosto. Finais felizes afastam a crítica. Um romance premiável precisa ter homens e mulheres dilacerados, sofrendo horrores, correndo atrás do amor ou de um sonho que nunca chega. Finais felizes são contos de fada ou, no máximo, literatura infantil.

As ciências humanas não estudam felicidade. Salvo em alguma tendência marginal da psiquiatria ou da psicologia, a felicidade não doutora. Procuram-se leis naturais, causas e efeitos, verdades, fenômenos previsíveis e estatisticamente demonstráveis.

A religião tampouco deseja pessoas felizes. O homem precisa de salvação. Felicidade, no máximo, para depois da morte, se não abusar dos prazeres mundanos.

Por essas e outras, eu e a felicidade vivemos um amor conturbado. Oscilo entre o ridículo e essas formiguinhas. Quando menos espero, brotam desesperadas num vão qualquer, galopam pela face. Despudoradas me desmentem entre os amigos das letras, colegas da universidade ou meus leitores crentes. Vexame certo.

Tranquilizei-me porque alguns pensadores sérios, para além de livretos de auto-ajuda, andam escrevendo sobre. E todos defendem a mesma tese estarrecedora: o consumo é inversamente proporcional à felicidade. Comprove lendo “Felicidade” de Eduardo Giannetti, “A Filosofia e a Felicidade” do filósofo francês Philippe van den Bosch e “Choosing Simplicity”(Escolhendo a simplicidade) de Linda Breen Pierce.

Em outras palavras, a economia capitalista poderá entrar em colapso com a felicidade em massa.

Se pessoas felizes não consomem, se o consumo é o azeite da máquina econômica, infelicidade e insatisfação são justas salvaguardas da humanidade. Sendo claro: ninguém está interessado na felicidade. Desestabilizadora, nociva, corrosiva. Sem consumo cai a produção, aumenta o desemprego, estagna a ciência… Um caos.

Assista também documentário “A história das coisas”: https://youtu.be/7qFiGMSnNjw?t=3

As formigas, como a felicidade, são teimosas e invasivas.  Sempre insatisfeitos, procuramos doçura em migalhas.

Penso felicidade, mesmo tentando mantê-la em área restrita. Brota em frestas. Às vezes coincide com o reaparecimento das formigas, às vezes não. A literatura, a ciência e a religião têm coisas mais importantes por fazer. A economia põe e depõe governos, inicia e acaba guerras, financia bibliotecas e escritores, ergue os templos e igrejas. O que não se pode fazer é, por causa da felicidade, acabar com tudo o que a humanidade construiu em milhares de anos.

Alguns amigos me dizem “precisas desinfestar a casa o quanto antes”. Acho uma solução terrorista. Por ora.

Autor: Pablo Morenno. Também publicou no site crônica “Receita para amar gente e bichos”: https://www.neipies.com/receita-para-amar-gente-e-bichos/

Edição: A. R.

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