Astério, o cego

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Borges, na sua originalidade, criou uma história com algo diferente. O narrador é um Minotauro ciente de que o acusam de soberba, e talvez de misantropia, e talvez de loucura. Não admite que seja prisioneiro.

Impossível imaginar que Pablo Picasso (1891-1973), em 1934, tivesse se inspirado na figura do escritor argentino Jorge Luis Borges (1899-1986), para produzir a gravura do Minotauro cego, que integra a coleção suíte Vollard. E mais impossível ainda, nos parece, na atualidade, é admitir que, alguém consegue mirar a famosa gravura de Picasso, sem deixar de associar essa peça de arte com Borges.

Entre impossibilidades e concretudes, destaca-se, que, 1934, Borges não era cego e nem gozava do prestígio internacional que passou a auferir a partir do final dos anos 1960. A sua imagem, desde então, especialmente a do velho escritor cego, com um olhar singular, apoiado em um bastão e sendo guiado, quase sempre, por uma mulher, virou figura icônica inconfundível.

O Minotauro cego conduzido por uma menina à noite faz parte da coleção de 100 gravuras, produzidas por Picasso, entre 1930 e 1937, para atender encomenda do marchand e editor Ambroise Vollard.

Na citada gravura, sob iluminação tênue da Lua e de estrelas, o Minotauro cego, apoiado por uma vara e tomado pela mão de uma menina com rosto de mulher e com uma pomba de asas abertas no braço, avança vacilante pela noite. Dois pescadores em um barco e um jovem marinheiro de rosto adolescente, aparentemente assombrados com a bestialidade do Minotauro, observam a cena.

A imagem do Minotauro cego de Picasso tem se prestado a interpretações diversas, quando envolve Jorge Luis Borges. Desde psicanalíticas, trazidas à luz por Julio Woscoboinik (El secreto de Borges – Indagación psicoanalitica de su obra), ao tratar da obsessão do escritor por labirintos, até biográficas, como fez o jurista espanhol Eduardo Garcia de Enterria (La poesia de Borges y otros ensayos), que vê nela (na menina especialmente) a sombra frágil da estudante María Kodama, a segunda esposa de Borges, que acompanhou o escritor nos seus últimos anos de vida e mereceu dele a dedicatória de muitos livros, não obstante ser ela, arbitrariamente, relegada a papel secundário ou de vilã em algumas biografias do escritor.

A fascinação de Borges por labirintos deu origem, entre tantos textos, ao conto La casa de Asterión (incluído no livro El Aleph, 1949). Um relato breve, no qual o talento do escritor argentino se impõe desde o título até a última linha. No título, Borges não cita labirinto, usa casa, e nem Minotauro, faz referência a Astério, que era o nome usado em Creta. Na epígrafe – Y la reina dio a luz um hijo que se llamó Asterión (Apolodoro, Biblioteca, III, I) – antecipa, ao leitor razoavelmente atento, que se tratava de famosa lenda grega. E, no final, um desfecho que, a meu juízo, se mostra mais plausível do que o original.

A história da vingança de Poseídon, deus do mar, contra Minos, rei de Creta, é assaz conhecida. Idem sobre o menino, fruto da paixão da rainha Pasífae, esposa de Minos, pelo touro branco de Creta, que nasceu com corpo de homem e cabeça de touro.

A estranha criatura, o Minotauro, depois de adulta, acabaria levada para o Labirinto (projetado por Dédalo, pai de Ícaro), um lugar de onde ninguém conseguia sair. E, onde, a cada nove anos, como tributo da vitória de Creta sobre Atenas, sete rapazes e sete virgens, eram enviados para serem devorados pelo Minotauro. Até que, no grupo do terceiro tributo, Teseu, com a ajuda de Ariadne, filha de Minos, que lhe deu uma espada e um novelo de lã (o fio de Ariadne), penetrou no Labirinto, matou o Minotauro e, na companhia dela e de seus compatriotas, deixou Creta.

Borges, na sua originalidade, criou uma história com algo diferente. O narrador é um Minotauro ciente de que o acusam de soberba, e talvez de misantropia, e talvez de loucura. Não admite que seja prisioneiro.

Descreve o Labirinto como a sua casa e como vive nela. Ignora quem são as pessoas que entram no labirinto para que ele os liberte de todo o mal. Mas, lembra de que, uma dessas, na hora da morte, profetizou que, um dia, chegaria o seu redentor. Desde então, vivia, ansiosamente, esperando por esse redentor. E o derradeiro momento, na descrição de Borges, chegou: “El sol de la mañana reverberó en la espada de bronce. Ya no quedaba ni un vestigio de sangre. – ¿Lo creerás, Ariadna? – dijo Teseo – El Minotauro apenas se defendió”.

(Coluna originalmente publicada em O NACIONAL, edição de 19/08/2022.)

Autor: Gilberto Cunha. Também publicou no site a crônica “Um banquete, uma ceia e duas mortes”: https://www.neipies.com/um-banquete-uma-ceia-e-duas-mortes/

Edição: A. R.

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