Receita para amar gente e bichos

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Em qualquer espaço onde o coabitar seja entre pessoas, é preciso resgatar a emoção do cultivo, da criação e da paciência da espera. Necessário ir além. Animais também precisam de segurança para amadurecer uma relação afetiva, sem atropelamentos do tempo e na mútua renúncia.

Li nos jornais sobre petshops que oferecem “test drive” de bichos de estimação. O cliente chega, escolhe um gato, um cachorro ou porquinho-da-índia, deixa um cheque condicional, e o leva para casa por alguns dias. Se não pintar clima nem química entre dono e animal, permite-se que seja devolvida a mercadoria à loja, com a restituição do investimento.

A devolução por falta de clima é compreensível. Se o dono for quente demais e o animalzinho muito frio, ou vice-versa, clima não há. Aqui no Sul, só pintaria clima entre um gaúcho e um pinguim. No Nordeste, o clima só se daria com um lagarto do deserto que adorasse Sol.

Sem química, torna-se também justificável o fim do negócio. Com donos muito ácidos, os animais podem ter ataques histéricos. Essa tal de química entre as partes deve ser uma reação sem liberação de elementos cáusticos entre os envolvidos. Xixi na almofada libera gases incompatíveis com o perfume da dona, justo motivo para o fim do período de experiência.

Os bichos estão sofrendo as consequências desse péssimo hábito humano da descartabilidade. Há tempos venho observando que o consumo invade, sorrateiramente, o lar da afetividade.

Parece que perdemos a ternura do “cultivar” e do “criar”. Quando eram mais raras as lojas de animais, o homem exercitava-a cotidianamente. Um pé de alface levava meses para chegar à mesa; um cachorrinho, anos para ser o melhor amigo. Por isso, para quem cultivava, depois de tanto investimento, alface sempre era aproveitável, mesmo se pouco formosa, e tinha-se paciência com um cãozinho que mordia os sapatos, aguardando seu aprendizado no controle do instinto.

Entre as pessoas a descartabilidade é bem mais grave. Há poucos dispostos a “cultivar” vínculos afetivos, “criar” relacionamentos. A gente prova e tem que gostar logo, e o quanto antes, e em todos os sentidos. Se não pintar clima nem química, abandonamos o barco e partimos para outro – ou outra. Pensamos pouco em “aprender” a amar, em “construir”, em “criar”, em “crescer” nas diferenças.

O amor, a amizade, a simpatia só são válidos se automáticos, instantâneos e, se não acontecerem à primeira vista, descarta-se o objeto ou o sujeito. Se não pintar clima entre mim e minha “gata”, amanhã não a quero mais. Se entre mim e meu “tigrão” não acontecer a química, a gente “fica” só nesse fim de semana. Em qualquer espaço onde o coabitar seja entre pessoas, é preciso resgatar a emoção do cultivo, da criação e da paciência da espera. Necessário ir além. Animais também precisam de segurança para amadurecer uma relação afetiva, sem atropelamentos do tempo e na mútua renúncia.

Seres vivos, em geral, não são dignos de um “test drive”, mas, se você for adepto dessa ideia, já pode fazê-lo. Se não der certo, você entrega o bichinho na segunda-feira e pega seu cheque de volta. No caso de pessoas, como ainda não há lojas ou código do consumidor para isso, devolução do investimento não há. Perde-se algo valioso, mas como se trata de coisas sem preço, a gente dá pouca importância.

*Esta crônica compõe a obra Por que os homens não voam? Segue vídeo Proposta de roteiro de leitura da obra: https://youtu.be/eunUMVL6IXY?t=20


Autor: Pablo Morenno, do livro “Por que os homens não voam?” Physalis Editora, 2020. Também publicou no site a crônica “Afeto não fere”: https://www.neipies.com/afeto-nao-fere/

Edição: A. R.

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