Por que esperamos das nossas crianças o que não esperamos de nós?

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Diante de tantas exigências que nos fazem o mundo e a sociedade em que vivemos estamos sendo levados a exigir das nossas crianças que elas cresçam o mais rapidamente possível e passem a fazer coisas de adultos quando ainda são pequenas demais.

Uma vez existiu uma poeta chamada Cecília Meireles que nos criou uma poema intitulado “O menino azul” e nos seus versos ela nos diz

“O menino quer um burrinho / para passear. / Um burrinho manso, / que não corra / nem pule, / mas que saiba conversar.”

Que possamos oferecer um pouco de aconchego às nossas crianças sendo esse burrinho na sua imaginação ou sonhos.

Compreendendo que a criança que é ouvida consegue desenvolver o seu lado social muito mais rapidamente interagindo e perdendo a timidez diante das outras crianças. Um bom diálogo é sempre necessário para o crescimento espiritual da criança que se sente acolhida quando é ouvida sem esperar nada de quem a ouve.

E esperar para quê? A criança já sabe que tem afeto e cuidado de quem está a ouvindo, mas será que nós não estamos esperando dela que nos dê o mesmo? Sabemos lidar com os nossos sentimentos? Ou ficamos confusos todas às vezes que trocamos de parceiros ou precisamos tomar decisões em relação às nossas vidas?

As crianças gostam de brincar, pular, correr e fazer perguntas. Elas são curiosas por vida.

Na tenra idade, o brincar é a única coisa que a criança precisa fazer para ser feliz. Brincando ela descobre o mundo real e cria os seus mundos imaginários, passa a conhecer mais as pessoas ao seu redor e descobre novas coisas que despertam o seu pensamento crítico e reflexivo.

É necessário deixar a criança livre, ou seja, criar a sua autonomia e aprender que pode fazer muitas coisas sozinha como calçar uma meia, um sapato ou vestir um vestido. Coisinhas pequenas do dia a dia que são simples atividades devemos permitir que as crianças aprendam sozinhas a realizarem. Nada é mais gratificante do que saber que algo foi feito por nós quando vemos o seu resultado positivo. Assim, também se sentem as crianças.

Muitos de nós, adultos, exigimos demais da gente e nestas exigências acabamos esquecendo que estamos convivendo com espíritos ainda em formação, com uma gente miúda que não pode ser responsável pelos nossos erros, angústias, perdas e problemas. Muito menos devemos colocar sobre elas um peso maior do que podem carregar.

No mundo contemporâneo em que vivemos, nesta correria louca de trabalho e outros compromissos profissionais esquecemos que às crianças cabe tão somente a responsabilidade de estudar. Tendo o brincar como uma diversão que não pode ser tirada da sua vivência de maneira nenhuma. A criança que brinca descobre novos mundos, cresce mais rapidamente, seu pensamento cognitivo é desenvolvido com muito mais velocidade e os seus anseios são reduzidos.

O brincar acalma as emoções e distrai a criança das incompreensões do dia a dia.

Neste constante ritmo em que vivemos, no mundo da tecnologia e das mídias digitais, deixamos a criança se virar sozinha dentro de casa presos nos nossos aparelhos eletrônicos esquecemos de dar-lhes a atenção necessária para o bem-viver. A criança passa da hora de se alimentar, de tomar banho e até mesmo de dormir. Isso acaba criando hábitos não saudáveis à vida do pequeno espírito em crescimento.

Vivemos num mundo de intensas cobranças e a competitividade no mercado de trabalho cresce a cada dia. Só os melhores sobreviverão nas grandes empresas. Vemos todos os dias gigantes do mercado tecnológico realizarem demissões em massa. Mesmo os bons profissionais perdem seus empregos e precisam ir em busca de outros. Para isso é necessário que ele esteja preparado para enfrentar a concorrência.

Não existe mais aquela história de especialista em apenas uma área. O mercado busca agora profissionais que conheçam e caminhem por todas as áreas, que saibam três ou cinco idiomas, que saibam escrever e calcular com facilidade. As exigências são muitas.

Ficamos perdidos num mundo que nos cobra o tempo todo que estejamos estudando e fazendo cursos, assistindo palestras, reuniões e lendo revistas e jornais das nossas áreas e de outras também. Somos tomados pelas cobranças do mundo financeiro, econômico, político e social. Até mesmo nos templos religiosos precisamos nos renovar todos os dias para sermos bem aceitos entre os fiéis.

Com tantas cobranças ao nosso redor, acabamos angustiados e, muitas vezes, entramos em desespero caindo numa depressão ou ansiedade que não sabemos aonde vamos parar. Ficamos doentes, cegos e mudos em relação aos pedidos de socorro dos nossos corpos e almas. Vivendo uma vida cheia de compromissos e de cobranças, achamos que daremos conta de tudo mas, quando a conta chega, ela é alta e pagamos um preço muito maior do que esperávamos.

Diante de tantas exigências que nos fazem o mundo e a sociedade em que vivemos estamos sendo levados a exigir das nossas crianças que elas cresçam o mais rapidamente possível e passem a fazer coisas de adultos quando ainda são pequenas demais.

Sugestão: Vídeo sobre a importância das brincadeiras na formação das crianças.

Esperamos delas o que não conseguimos em nós porque sabemos que fraquejaremos uma hora ou outra, pois já estamos cansados de um mundo que só nos cobra e não nos oferece nada de graça.

Habituados a tantas cobranças e exigências tememos que as nossas crianças cresçam despreparadas e acabamos esperando delas o que nem mesmo esperamos de nós, ou seja, achamos que elas vão nos salvar qualquer dia desses. Dessa forma, as colocamos para estudar tudo quanto é disciplina e procuramos as melhores escolas para elas, exigimos que aprendam três ou mais idiomas, que pratiquem esportes, que toquem instrumentos musicais, que participem de competições e sejam sempre as vencedoras em tudo.

Ah, mundo difícil este que estamos oferecendo às nossas crianças! Dói saber que esperamos delas o que não podemos esperar nem de nós mesmos!

Muitos pais e responsáveis se animam ao verem a criança se destacar em uma arte ou disciplina qualquer e já começam a fazer mil planos para ela. Iniciam as exigências, a dedicação exclusiva, uma rotina de estudos pesada, sérias atribuições e esquecem que a criança só quer mesmo fazer as suas tarefas escolares e brincar. Que ela ainda é muito pequena para dar conta de tanta responsabilidade.

Não é à toa que consultórios de psicólogos e psiquiatras estão lotados com gente adulta e criança. Os adultos porque esperaram demais de si e tiveram seus sonhos e planos fraquejados e as crianças vítimas dessas esperas dos adultos acabaram adoecendo fisicamente e espiritualmente porque não souberam como lidar com tantas cobranças.

O que esperar de uma criança senão o riso e a vontade de ser amada? Esperar mais do que isso é tirania. É prender a criança dentro de uma caverna subjetiva que nós criamos para ela à nossa maneira e opressão.

É um mundo difícil o nosso. As batalhas que temos que vencer todos os dias são grandes. Chegamos em casa enfadados e cansados. Não damos conta sequer daquela pequena criança sentada no sofá da sala à espera de atenção, carinho e afeto. Já não temos mais tempo para contar histórias, fazer um desenho ou conversar com os nossos filhos. Parece que vivemos sozinhos dentro de uma bolha.

Estamos tão robotizados que já não pensamos criticamente. Não sabemos tomar decisões sem a ajuda de um profissional. Sempre pedimos a opinião de outras pessoas para termos a certeza de que não estamos fazendo a coisa errada, quando sabemos que estamos certos. Estamos cada vez mais indecisos, ansiosos e medrosos. Os homens fortes como Hércules, Davi e o sábio Salomão já não existem mais. Estes ficaram na história do tempo.

Baseados nestas histórias de heróis e super-heróis exigimos que as nossas crianças se tornem gigantes diante dos problemas e dificuldades, que enfrentem seus medos e angústias sozinhas e se “virem” para tomarem decisões que nós mesmos não saberíamos o que escolher ou fazer. Atualmente, esperamos que as crianças nos salvem do bicho papão.

Mundo cão, mundo devastador, mundo dos cronômetros e do tempo escasso. Da rapidez das informações e da pressa de ir e vir de um lugar a outro sem nem darmos conta das paisagens naturais e pessoas que deixamos para trás. Não seremos os próprios culpados desta crueldade que estamos fazendo conosco? Por que esperamos das nossas crianças o que não esperamos de nós? Acredito que é preciso pausa, o momento é de descanso, de um fôlego, de uma respiração profunda e um pensamento reflexivo sobre tudo isso que estamos vivenciando.

Não é certo que criancinhas sejam motivadas a competirem com os seus amiguinhos em tudo.

Sugestão: Vídeo sobre o direito ao brincar.

Esperar que as nossas crianças façam tudo certinho quando nós não conseguimos acertar em nada é exigir muito delas. Errar é necessário para o crescimento espiritual de todo ser humano. Quem erra é porque tentou. O segredo não está no que a criança vai ser quando crescer, mas no que ela é no presente, pois na sua vida adulta ela se lembrará de tudo o que lhe fizeram na infância e poderá sofrer distúrbios psicológicos com essa falta de cuidado que não recebeu quando era pequenina.

Não, não senhores pais e responsáveis por criancinhas. Não esperem que elas sejam o poço dos seus desejos. Que elas acertem os números da loteria ou salvem o mundo de grandes tragédias. Diante de tanta incompreensão, as crianças mal estão conseguindo lidar com os seus próprios medos e angústias. Elas não sabem mais o que fazer diante das suas dúvidas, pois não têm a quem recorrer. Os pais passam o tempo todo no trabalho e os professores devem cumprir as cargas horárias das disciplinas, dos diversos projetos que a coordenação pedagógica elegeu para aquele ano letivo.

Neste amontoado de atividades que a escola lança para a criança os professores não têm mais tempo para as ouvirem se não for para tirar dúvidas das disciplinas, conversas sobre seus medos, seus sonhos, seus desejos ficam para depois, amanhã, outro dia, nunca… e assim a infância vai passando com as diversas cobranças rondando o mundo da criança que não sabe mais o que fazer na solidão em que se acha dentro de casa e na escola com as suas dúvidas em relação a um mundo que não foi feito para ela.

O maior problema que encontro nas escolas por onde passei é o tanto de disciplinas que as crianças precisam estudar com material didático que nada tem a ver com os seus mundos. No meu tempo da infância estudei todas as ciências necessárias para o bom aprendizado, mas tudo estava dentro da língua portuguesa e da matemática.

Tive professores maravilhosos que ensinaram geografia com uma poesia, ciências com um conto de fadas, história com um cordel e por aí vai.  Por que as escolas estão enchendo de disciplinas escolares as grades curriculares das crianças? Não estão esperando demais delas? São apenas crianças dispostas a aprender tudo o que lhes ensinarem através do lúdico e da brincadeira. Esperar muito do outro acaba nos frustrando e frustrando o outro. É um jogo perigoso para ambos.

Sabemos da nossa missão de preparar as nossas crianças para um mundo diferente do nosso e dos nossos pais. Agora é cada um por si. O individualismo está cada vez maior, as pessoas já não se olham mais nos olhos, já não têm mais tempo para conversarem e muito menos ficarem sentadas nas calçadas conversando sobre as suas vidas. Nem calçadas existem mais nas grandes cidades. Isso não quer dizer que devemos exigir que as nossas crianças passem a se comportar como adultos desde cedo.

Como vejo nas minhas andanças pelas cidades do Brasil crianças adultizadas pelos seus pais com cabelos pintados, unhas pintadas, sapatos de saltos altos e meninos sendo estimulados a trabalharem e namorarem cedo demais. Que mundo é este que estamos oferecendo às nossas crianças, me digam? Eu temo que amanhã não existam mais crianças.

Se vimos uma criança acreditar em Papai Noel, bruxas, dragões ou fadas acabamos a ridicularizando e destruindo os seus mundos imaginários. Não estamos preparados para educar os nossos filhos, os nossos alunos, os nossos primos e sobrinhos. Somos ranzinzas e perdemos a doçura e inocência da infância que alguns adultos conservam dentro de si mesmo depois de tantos abalos e decepções.

Até mesmo Jesus Cristo se comportou como uma criança ao bagunçar e quebrar tudo o que havia no templo em que eram comercializados animais e mercadorias. No seu momento de raiva, Jesus Cristo virou mesas, espalhou moedas pelo chão, gritou com os mercadores e fez o que qualquer criança faz num momento de birra. Por que as julgamos sempre de mimadas? Será que Nossa Senhora mimou seu filho, também?

Deixemos de lado as nossas arrogâncias e queixos altos. Baixemos as nossas cabeças para ouvirmos as vozinhas das nossas crianças que só desejam um pouco de atenção. Não esperemos delas o que não esperamos de nós porque sabemos que o mundo é duro e mais tarde vai cobrar delas o que nos cobra todos os dias. Que possamos educá-las de uma forma que cresçam preparadas para lidar com as decepções, os medos, as incertezas e sempre confiando em si próprias.

Não podemos ficar sob a sombra das nossas crianças. Elas são árvores que precisam de cuidados. Elas não podem nos oferecer flores e frutos se não estiverem alimentadas com proteínas e carboidratos necessários para uma vida saudável. Até as árvores morrem de angústia quando esperamos que elas nos deem sombra e frutos da melhor qualidade quando não estão preparadas para isso.

Aprendamos que cada ser é único. Assim são as crianças. Elas não devem receber da escola um ensino-aprendizagem que não explore os seus pensamentos críticos e reflexivos, introduzindo-as no coletivo, mas cuidando do seu individual. Tratando-a com respeito e afeto no que concerne ao seu jeito de ser e compreender as coisas.

Que cada professor possa ter um tempo para com o seu aluno. Que o número de alunos em sala de aula seja reduzido para que os professores possam cuidar das nossas crianças com mais atenção, respeito aos seus limites e diálogos não somente sobre a escola, mas também sobre a sua vida lá fora. O nosso querido filósofo e educador Paulo Freire já rezava sobre este respeito ao conhecimento de mundo da criança.

Em tudo o que buscamos nas nossas crianças esteja o nosso aprendizado de que elas não estão preparadas ainda para nos salvarem das tempestades, mas podem enxugar as nossas lágrimas sem se darem conta do quanto é grande os nossos sofrimentos diante das suas inocências. Uma inocência que precisa ser mantida e alimentada. Não é feio falar de um duende para o vovô, vovó ou até mesmo para a professora assim como não é feio fazer cartinhas para o Papai Noel e pendurá-las à janela da casa.

A vida precisa de fantasias para se tornar melhor. Acreditarmos em coisas sobrenaturais é necessário. Quantas crianças não vão dormir todas as noites desejando que uma fada boa venha resgatá-las daquela casa onde ninguém as compreende, não recebe atenção e nem carinho? Já pensaram nisso, senhores pais?

A escritora Ruth Rocha em seu livro “O direito das crianças” já dizia “Toda criança no mundo / Deve ser bem protegida / Contra os rigores do tempo / Contra os rigores da vida.”

É assim que devemos proteger as nossas crianças contra esses rigores da vida que nos são colocados todos os dias e esperamos que elas se comportem como nem mesmo nós sabemos como nos comportar diante da dor e das adversidades que surgem na passagem do tempo.

Autora: Rosângela Trajano

11 COMENTÁRIOS

  1. Texto excelente que todo educador tem que ler. Eu costumo dizer aqui em casa qdo exigem dos pequenos o que ainda não pode dar: não apresse o rio, ele corre sozinho! Parabéns Rosângela pelo belo texto.

  2. Que riqueza de trabalho! Você é um espetáculo em tudo que faz! Não me canso de ajudá-la. PARABÉNS!!!🌹

  3. Um texto verdadeiro… E como psicopedagoga que sou, sempre deixei nas escolas onde trabalhei a bandeira da paz na infância, onde o brincar espontâneo deve ser prioridade em todo lar e também nas escolas, pois a criança não sente vontade de brincar apenas na sexta-feira, como faziam essas escolas, prática que extinguia da escola, e assim o brincar ganhava espaço todos os dias da vida infantil, porque a brincadeira estar para a criança, como o oxigênio estar para a vida na terra… as crianças precisam ter liberdade para brincar em qualquer lugar que esteja…
    Fátima Alves/Poetisa da Caatinga

  4. Excelente texto, bastante pertinente para qualquer eixos temáticos que se escolham pra iniciar o ano letivo da semana pedagógica municipal, a qual se iniciará rm março. Parabéns Rosangela Trajano.

  5. Graças á Deus os meus pais mesmo analfabetos, nunca me exigiram rigorosamente que eu deixasse de brincar paa estudar, a minha pessoa é que sempre brincava de estudar, na verdade, em meu subconsciente eu já dava aulas rsrs. Então não havia um SÓ dia em que não me vissem com um livro na mão, lendo ou escrevendo.Mas brinquei muito em minha infância. De tudo. Em relação a quantidade de alunos em sala de aula, é um sonho antigo essa redução.

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