O pensamento tornou-se cego

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O enfrentamento da “policrise” que marca a humanidade atual implica em retomar o caminho do conhecimento como superação destas “cegueiras” que levam a crer no que não é recomendável crer, seguir a quem não é adequado seguir, fazer o que se deve evitar seja feito.

Edgar Morin* afirmou o que está no título em artigo recentemente publicado constatando o que chama de uma “situação paradoxal” na qual se encontra a humanidade: “o progresso científico e tecnológico, que está se desenvolvendo prodigiosamente em todos os campos, é a causa dos piores retrocessos do nosso século”. Isto porque, “o progresso dos conhecimentos, multiplicando-os e separando-os criando barreiras entre as disciplinas, levou a um retrocesso do pensamento, que se tornou cego”.

A cegueira do pensamento resulta do domínio do cálculo, do exagero tecnocrático, da excessiva busca de poder, o que faz com que o conhecimento fique “incapaz de conceber a complexidade da realidade e em particular das realidades humanas”. Isso explica o “retorno aos dogmatismos e aos fanatismos” que “espalham os ódios e as idolatrias”.

A humanidade vive uma “policrise”: “é a crise da humanidade que não consegue se tornar Humanidade”. Para ele já teria sido ultrapassado o ponto de revisão e de retorno e “agora parece tarde demais”. Ainda assim, acredita que, mesmo que talvez já não haja esperança, o desafio é “passar para a Resistência”, visto que as experiências históricas apontam que ela pode existir quando já não há esperança e, talvez, servir de ativador para que seja restaurada.

O conjunto de posicionamentos deste grande pensador contemporâneo aqui brevemente resumido enseja comentários e reflexões, conforme segue.

A cegueira apontada por ele tem causas e consequências. Talvez seu apelo caminhe na direção do que sugere Jose Saramago no “Ensaio sobre a Cegueira”, no sentido de uma “cegueira branca” que toma conta e que não deixa ver o que “salta aos olhos”. E, diante dela, o desafio na hora do “vamos ver”, é de ter que “fechar os olhos para ver” o tanto de cegueira que está ao nosso redor visto ser o pior cego aquele que não quer ver, mesmo que possamos ter “a responsabilidade de ter olhos quando os outros os perderam” (1995, p. 241).

Há uma cegueira que não é nova e nem acomete subitamente a humanidade. Já foi denunciada por vários da Teoria Crítica e, infelizmente, parece imune dado estar vacinada pelo positivismo crasso que toma conta da “vida científica”. Suas exigências submetem ao “cálculo do suportável”, ao esvaziamento e ao “desencantamento”. Não há valores que possam subsistir, exceto aqueles que alimentam a “roda viva” das muitas repressões que roubam o desejo de “ter voz ativa” e de o “nosso destino mandar”, e carregam milhões aos cultos a mamon.

A grande sábia, a “doutíssima” Diotima, aquela que instruiu a Sócrates no “Banquete” de Platão, dizia que a “ciência do amor” estaria no “intervalo” intermediário entre entendimento e ignorância – um algo que está “entre estes dois extremos”. Tudo o que é “gênio”, como o amor, tudo o que e genial, como a ciência, está entre extremos: ali também estaria a ciência, estaria a filosofia, os que filosofam – o filósofo, assim como o amor, está “entre o sábio e o ignorante” (204 a, b, c).

Um dos problemas da “cegueira” é que ela “destrói este intervalo” e, dessa forma, impede o conhecimento.

Não há ciência se o que se sabe é um absoluto que faz desaparecer por completo a dúvida, toda a ignorância. É preciso que se preserve alguma ignorância, alguma dúvida, junto com algum saber, para que se esteja desafiado a saber, a conhecer, a fazer ciência, a saber ainda mais e melhor. Sempre que se agir para destruir esta possibilidade se estará fechando alternativas e dando vasão a dogmatismos e fanatismos, a ódios e idolatrias.

O enfrentamento da “policrise” que marca a humanidade atual implica em retomar o caminho do conhecimento como superação destas “cegueiras” que levam a crer no que não é recomendável crer, seguir a quem não é adequado seguir, fazer o que se deve evitar seja feito. E, acima de tudo, em encontrar caminhos que abram espaços para que o amor seja o gênio a fazer viva a ciência e a ciência processo de respeito, produção, reprodução, desenvolvimento, manutenção e cuidado da vida, de todas as formas de vida, da vida em abundância, sobretudo aquela que humaniza a Humanidade.

Que a resistência insurgente alimente estes processos e nos faça agentes desta insistente prática.

* Artigo publicado em Repubblica, de 24/01/2024, tradução de Luisa Rabolini para o IHU On Line, disponível em http://www.ihu.unisinos.br/…/636250-a-resistencia-do…

Autor: Paulo César Carbonari, Doutor em filosofia (Unisinos), coordenador nacional do Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH). Escrito no Carnaval de 2024. Contato: carbonari.paulo@gmail.com Também publicou no site “Ética e ciência: elementos para subsidiar reflexões”: https://www.neipies.com/etica-e-ciencia-elementos-para-subsidiar-reflexoes/

Edição: A. R.

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