Dormindo com o inimigo: a violência doméstica enraizada na sociedade brasileira

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As vítimas podem desenvolver problemas de saúde,
como depressão, distúrbios alimentares, toxicodependência,
além de se sentirem incapazes de voltar a
criar relações afetivas saudáveis.

A violência doméstica é um padrão de comportamento abusivo, onde uma pessoa constrange outra num contexto doméstico. Essa violência pode assumir diversas formas, tais como, abusos físicos, verbais, emocionais, econômicos, etc., e pode ser praticada por homem ou mulher contra qualquer membro da família. O perfil da vítima geralmente se assenta em crianças, adolescentes, idosos, portadores de necessidades especiais e mulheres.

Infelizmente, como a realidade nos mostra, a maioria esmagadora das vítimas de violência doméstica são mulheres. Nesse passo, registro, a Declaração sobre a Eliminação da Violência contra as Mulheres da Organização das Nações Unidas (ONU) afirma que a violência contra mulheres é uma manifestação da desigualdade histórica na relação de poder entre homens e mulheres.

O título do presente texto faz referência ao clássico filme americano “Sleeping whit the enimy” (Dormindo com o inimigo), de 1991, onde a atriz Julia Roberts, interpretando Laura, após o casamento, passa por situações repudiantes com seu abusivo marido, Martin, interpretado por Patrick Bernig. No suspense, Laura sofre com violência física e psicológica no lar do casal até que um dia resolve simular um afogamento, fazendo Martin acreditar que estaria morta, fugindo, então, das suas garras e abandonando o seu passado.

Embora o filme acima referido tenha sido produzido em 1991, ainda hoje é possível encontrar diversos casais que se encaixam no perfil abusivo proposto no seu roteiro, o que mostra que, por mais que a legislação tenha avançado, a cultura de opressão à mulher parece estar enraizada na sociedade brasileira.

Essa violência ocorre quando o abusador acredita que o seu abuso é aceitável, justificado ou improvável de ser reportado a terceiros. É nesse contexto, via de regra, que a violência doméstica se desenvolve. As vítimas ficam encurraladas e acabam por preferir o isolamento, seja pela “aceitação” cultural, pela falta de recursos financeiros, pelo medo, pela vergonha ou, às vezes, para proteger os filhos.



“E isso acontece pelo simples fato de que os homens acreditam que podem fazer o que bem entenderem conosco. Quando falamos de estupro temos que ter claro que não estamos falando de sexo: estamos falando de poder. Estamos falando de violência”.


Em outros casos, a própria vítima não percebe ou não compreende que está em uma relação abusiva. Acreditando que apenas a violência física configura a violência doméstica, as vítimas encaram como normal diversas formas de abuso psicológico, como ameaças, isolamento, humilhação em público, críticas incessantes, negligenciamento constante ou a manipulação psicológica.

São vários os reflexos negativos da violência doméstica. As vítimas podem desenvolver problemas de saúde, como depressão, distúrbios alimentares, toxicodependência, além de se sentirem incapazes de voltar a criar relações afetivas saudáveis. Outro reflexo negativo é o denominado “ciclo de abuso intergeracional” que, segundo especialistas, cria a imagem em crianças, submetidas a este meio, de que o abuso é algo normal e aceitável.

Uma característica comum entre os agressores é o fato de terem sido vítima ou testemunha de abuso durante a infância, reproduzindo esse comportamento na idade adulta. Quem cresce sendo abusado, ou presenciando o abuso, se tornará um abusador. A interrupção deste ciclo é tão importante na diminuição da violência doméstica do que as próprias medidas para gerir os abusos.

Quando uma relação abusiva é identificada sempre se faz a seguinte pergunta: “Mas por que ela não abandona o companheiro?” Já respondemos a esta pergunta antes, mas, com o perdão pela tautologia, vamos repetir: Na maioria dos casos, as vítimas ficam encurraladas, seja pela falta de recursos financeiros, pelo medo, pela vergonha ou, às vezes, para proteger os filhos.

Portanto, a resposta à pergunta acima não é tão óbvia quanto parece e quase que na totalidade dos casos, a vítima precisará da ajuda de familiares e de amigos ou, ainda, dependendo do grau de estresse a que estiver submetida, a vítima precisará da ajuda de profissional da área da saúde.

É necessário se ter muita compreensão com a vítima.

Para a responsabilização do agressor, na área criminal, deve a vítima procurar uma Delegacia de Polícia e relatar os fatos ocorridos, fazendo um “registro de ocorrência” e, se a agressão foi física, será preciso fazer um exame médico, o que será requisitado no ato do registro. A vítima pode comparecer sozinha para ao ato do registro que não possui custo algum. Não é necessária a presença de um advogado.

Ainda, se desejar, no ato do registro da ocorrência, a vítima poderá solicitar medidas protetivas de urgência (MPUs), descritas na Lei 11.343/06 (Lei Maria da Penha) como, por exemplo, o afastamento do lar do agressor e a proibição de manter contato, entre outras. Descumprindo essas medidas de proteção impostas estará o agressor sujeito à prisão, além de responder pela prática de novo crime.

Os países subdesenvolvidos, como é o caso do Brasil, são campeões nos índices de agressões contra grupos vulneráveis e, como o tema central do texto, é a violência doméstica contra a mulher, vamos nos reportar especificamente, agora, ao crime denominado na legislação criminal como “feminicídio”, palavra nova que se refere à uma prática antiga.

O feminicídio é definido na legislação penal como “o assassinato de uma mulher por razões da condição de sexo feminino”. A pena para este crime é de 12 (doze) a 30 (trinta) anos. Os estudos apontam que mais do que 10 (dez) mulheres são assassinadas todos os dias no Brasil, possuindo a 5ª maior taxa de feminicídios no mundo.

Neste contexto, a tipificação criminal do feminicídio foi apontada por especialistas como uma importante ferramenta para denunciar a violência sistêmica contra mulheres em relações domésticas. Na maioria dos casos, quando o agressor é íntimo da vítima, até chegar-se a uma violência fatal, a mulher é vítima de uma série de outras violências de gênero, tal qual referimos antes: violência física ou psicológica.

O feminicídio, por ser uma forma qualificada do crime de homicídio é considerado um crime hediondo, nos termos da Lei 8.072/90, assim entendidos como aqueles mais reprováveis e que, por conta disso, acarretam ao seu autor um grau mais severo de tratamento jurídico-penal.

Há que se estabelecer uma diferença conceitual entre “femicídio” e o “feminicídio”. Para esclarecer ao leitor (que não tem obrigação de conhecer o Direito), o que estamos tratando neste artigo é o “feminicídio” (o assassinato de uma mulher por razões da condição de sexo feminino), trata-se de um crime motivado pela diferença de gênero. Já o “femicídio” é o homicídio praticado contra mulher, mas não por esta condição, não se trata de um crime motivado pela condição de gênero.

Assim, o feminicídio não define o assassinato de todas as mulheres. Veja-se que, por exemplo, uma mulher que é morta após um roubo sofre o crime de latrocínio. De outra banda, uma mulher que sofre ameaças do companheiro – ou de um ex-companheiro – e que venha a ser morta por ele é uma vítima de feminicídio, pois o caso, ao que parece, envolveu discriminação à condição de mulher.

O feminicídio é a instância última de controle da mulher pelo homem: o controle da vida e da morte. Essa prática precisa ser combatida por toda a sociedade como um todo. Se você vê uma agressão e se cala, você é conivente com ela. Lembre-se que a violência pode estar em qualquer lugar, que não existe um perfil básico de agressor e que a culpa nunca é da vítima.

Infelizmente, vivemos em uma cultura punitivista onde parece que a maior preocupação é sempre a punição do agressor, mas a violência doméstica é uma questão muito mais complexa, estrutural, que não se resolverá pelo Direito Criminal pura e simplesmente. Todos os seguimentos da sociedade devem estar engajados contra a violência doméstica, de mãos dadas, como forma de transplantar essa cultura machista e do patriarcado, atacando o problema pela sua raiz.

Além da punição dos agressores é preciso investir em instrumentos de prevenção à violência doméstica, implementando políticas públicas contínuas e articuladas em rede, a fim de que ao menor indício de violência doméstica seja o casal acompanhado por profissionais técnicos preparados para atender e contornar o problema antes da “evolução” do cenário desvirtuado.

Seria interessante, nesse ponto, que os municípios implementassem “grupos socioeducativos” para homens autores de violência doméstica e “grupos de apoio” para mulheres vítimas, no intuito de evitar o agravamento do quadro e dando um tratamento especializado a todos os envolvidos (não esquecendo, logicamente, das crianças e adolescentes que eventualmente estejam suscetíveis a este meio).

Finalmente, friso, se você é vítima de violência doméstica procure uma Delegacia de Polícia para relatar o fato e saber sobre os seus direitos. E, se você é testemunha de violência doméstica, denuncie! Quando a causa é nobre, o ditado popular deve ser reescrito, pois, nesse caso, em briga de marido e mulher, se deve meter a colher. E, não esqueça: Se você vê uma agressão e se cala, você é conivente com ela.



Autor: William Garcez, Delegado de Polícia no Estado do Rio Grande do Sul. Pós-graduado com especialização em Direito Penal e Processo Penal. Professor de Direito Penal da graduação e da pós-graduação da FEMA. Professor de Direito Penal e Processo Penal do CERS/Ad Verum. Professor de Direito Penal e Legislação Penal Especial da Casa do Concurseiro.

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