A bobagem em falar sobre empatia com adolescentes presos

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Acalmei o espírito e tornei a sentar.  Aí encontrei o elo que faltava nesta corrente espúria.  O elo da liberdade.  Estes jovens sabem que cometeram infrações, sabem que são rejeitados pelo seu comportamento, mesmo assim, não desistiram de sair livres, um dia, mesmo que demore o tempo em que suas vítimas ainda os culpem.

A professora caminhava logo à frente, como que preparando o caminho de nossa descida pelas escadas do prédio correcional, rumo às celas de adolescentes presos.  Aos poucos fui entendendo a sua preocupação: teríamos de chegar às salas de aula em segurança. Mas quem nos faria mal se estavam todos trancados?

Quando fui convidado para falar sobre minha pequena história de empatia e amizade em suas salas, sequer imaginava os cuidados e a quantidade de portas de ferro que separavam o ambiente prisional da rua.

À medida em que descíamos o seu interior, as portas se fechavam atrás de mim.  Não tinha respiração para olhar atrás e pensar em como seria minha fuga.  Portas que pareciam portões. Uma após outra, fechando-se, parecendo um caminho sem volta.  Como se eu mesmo estivesse ali, chegando para ficar, como novo prisioneiro em minha listinha de transgressões.

Os meninos estavam em suas celas, sentados à cama, e respondiam com entusiasmo aos cumprimentos dirigidos a eles. Uma simpatia incomum para quem pensava que seria esfolado vivo, por adolescentes que, em alguns anos apenas, não passavam de crianças.  O ambiente lúgubre e cercado de educadores, com portas forjadas a ferros e cadeados, não os intimidava em nada.

Aguardamos sua chegada junto à sala de nossas pequenas palestras e foram eles chegando aos poucos. Alguns tímidos, outros com sorrisos espertos e os demais, com feições de entristecer o mais otimista dos professores. Todos estenderam as mãos e, inesperadamente, mais uma porta se fechou, agora a da sala, justamente onde estávamos a sós. Não havia mais saída, portanto, e ninguém a nos salvar a partir de agora.

Distribuí o livro de minha história sobre a mesa e uma curiosidade tomou conta do grupo.  Ali sentados, ficava difícil começar a falar sobre uma planta rejeitada em meio a pátios, cujas árvores crescem em um chão de verdes escolhidos.

As palavras teimavam em não sair, porque diante destes olhares desconfiados e inquietos, uma história de rejeição não faria diferença alguma, em uma relação interminável de rejeições a que estes jovens estão expostos. Um deles, aliás, fixando uma parede branca parecia estar a milhares de quilômetros do local. Outro, mais falante, disse que gostava de ler e sonhava em ser engenheiro. E à minha frente, contudo, o menino mais educado, mais apreensivo e mais atento com a história que eu estava prestes a contar, como nunca vira antes.

Não havia alternativas.  Dizia a eles sobre como rejeições podem se transformar em aceitações, em como tolerância e respeito podem ser novos caminhos para acolhimento e amizade.

Não tinha como escapar, falando, ou calando, nada poderia mudar nesta sala, trancada que estava. Todos prisioneiros nesta tarde! Eles, por suas delinquências, pelo descaso com a sociedade que sequer os acolheu, eu, por outro lado, aprisionado pelo medo e indignação frente ao meu desafio.

Como falar em empatia, para quem não tem 5 metros a caminhar sem ser observado?  O que dizer sobre tolerância, com um menino de 15 anos, brutalmente trancado em uma cela pelos delitos que aprendeu com delinquentes maiores, ainda soltos pelas ruas, certamente.

Falar ou chorar ao seu lado?

O menor da mesa, interessado que estava, fixava seu olhar agredido em uma página do livro. Justamente nesta em que foi escrita uma parábola de uma planta que cresce, teima em crescer, escondida ao lado de uma torre, porque fora rejeitada em um pátio de muitas sombras, de possibilidades, mas que a ela não sobrara um palmo na terra, em um buraco qualquer, para dar seu primeiro passo. Mesmo assim, ela não desistira.

Pensei em sair correndo, bater no primeiro portão, gritar para que se me abrissem os outros quatro, ainda fechados, quando ouvi de um matreiro e falante na mesa, um dos “piores,”, e que dizia… _estamos aqui crescendo para a liberdade, professor!

Acalmei o espírito e tornei a sentar.  Aí encontrei o elo que faltava nesta corrente espúria.  O elo da liberdade.  Estes jovens sabem que cometeram infrações, sabem que são rejeitados pelo seu comportamento, mesmo assim, não desistiram de sair livres, um dia, mesmo que demore o tempo em que suas vítimas ainda os culpem.

Então tudo fez sentido.  Eles não vivem nesta pequena masmorra, apenas esperam.  Um dia após outro.  A sua liberdade em andar livres não lhes sai da mente.  Aproveitei a deixa: 

-Suportem estes dias para ficar ao lado dos seus iguais, troquem tolerância mútua, afastem-se de quaisquer julgamentos, aceitem seus colegas hoje, tais como o são, pois poderão ser seus amigos lá fora. A empatia, ainda não sendo uma palavra gasta, pode auxiliar a todos, ao colocarem-se no lugar do outro, afastando as condenações pelos erros de cada um. Cada qual aprenda a conviver e a perdoar-se mutuamente pelos seus atos. Uma amizade pode nascer neste doloroso caminho, e um novo olhar pode ser lançado sobre seu amigo, quem sabe, sobre seu inimigo, igualmente. Sem empatia, ali na frente, a liberdade poderá ser mais uma falsa corrente.

Alguns me olharam com olhos marejados, a Professora com seu rosto ainda mais sereno.  Pareceu ali que todos queriam prestar conta à sociedade.  Mesmo sabendo que as transgressões destes meninos de 14, 15 anos, são concebidas pela pedagogia de bandidos amadurecidos, que os admitem e os lançam a toda sorte de delinquência, na certeza de que em sua menoridade, seus crimes e penas serão amenizados.

Apertei com força as mãos destes garotos, lembrando das falsas oportunidades em que eu fora tentado na mesma idade, em suas aventuras ou fantasias. Alguém ao meu lado soube impedir, orientar.  A maioria deles, porém, não tem ninguém. E saber que o tráfico ainda os aguarda ao lado de fora dos portões desta clausura…

Rapidamente esqueci o medo, o preconceito, os julgamentos e pude sentir as suas vidas sendo devastadas por comportamentos que, em sua maioria, dizem estar arrependidos. Lembrei neste momento de emoção, das palavras de um quase amigo que me falou quando soube de minha missão: “esqueça esta bobagem de falar sobre empatia com estes adolescentes presos”.

A propósito, um pequeno que estava ao meu lado, assim que eu soube, fora cooptado pelo tráfico após sua Mãe capitular pelo consumo de drogas.  Deixado junto à calçada com dois irmãos menores, um com dois anos, não demorou para estrear em um mundo de crimes, de tamanhos variados.  Mas dizia que estava ansioso para sair, pois seus irmãos o aguardavam. Agarrou meu livro na hora, prometendo a sua rápida leitura.

Jamais, em momento algum poderia continuar em vida sem passar por estes portões.  Ao final, o liberto fui eu. Aprisionado em preceitos e conclusões, julgando e condenando estes jovens privados em sua liberdade, e por entender que aprenderam a se espelhar rapidamente em crimes adultos, fui salvo.

E deixando pelas escadas a última porta trancafiada, senti-me absolvido de toda a ignorância que aprisionava meu entendimento sobre suas vidas. De igual maneira, pedi absolvição pelo meu amigo, em sua incapacidade de entender que convivência não diz respeito a idade somente, nem a prisões ou liberdades. Pois onde duas pessoas convivem, pelo menos, devia saber sua mente obtusa, que sempre há de se escolher compaixão e empatia. É o que sustenta a humanidade.

Convido a pensar, aos que ainda têm seus conceitos cativos no preconceito e no medo, a trocar o seu silêncio e a ouvir o que adolescentes reclusos têm a dizer. A libertação pode ser mútua.

Autor: Nelceu A. Zanatta, autor da crônica: Quando morre uma mãe, : https://www.neipies.com/quando-morre-uma-mae/

Edição: A.R.

2 COMENTÁRIOS

  1. Impactante e emocionante experiência de humanidade, compartilha Nelceu nesta vivência. Exercer a empatia arrebatadora, de ir ao encontro de adolescentes infratores num presídio é de uma grandeza singular. Louvo o espírito do autor, que respeitou os meninos e os viu como vítimas de uma sociedade excludente. Vida longa ao autor!

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