Senhoras prefeitas, senhores prefeitos! (Cidades podem ser educadoras)

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Rubem Alves chama atenção às prefeitas e prefeitos que devem ensinar o povo a pensar em jardins, para que as cidades não se transformem em selva. Os jardins a que ele se refere é a própria cidade como espaço-corpo dos habitantes pois, se não pensarmos em jardins, fugiremos da selva que ela se tornará. Cidades podem ser educadoras.

“Senhoras prefeitas, senhores prefeitos: eu não sou político. Nada entendo de administração. Não tenho conselhos técnicos a oferecer. Mas ouso pedir que me leiam. O texto é curto. Não vai tomar muito tempo.

Ignorem minhas incompetências. Se o que vou dizer fizer sentido, ficarei feliz. Se não fizer sentido, é só esquecê-lo.

Jay Forrester, professor de administração do MIT (Massachusetts Institute of Technology), enunciou a seguinte lei das organizações: “Em situações complicadas, esforços para melhorar as coisas frequentemente tendem a torná-las piores, algumas vezes muito piores e, ocasionalmente, calamitosas”.

Essa mesma lei foi enunciada há quase 2.000 anos, de forma mais simples e poética: “Não se costura remendo de tecido novo em roupa podre. O remendo de tecido novo rasga o tecido podre e o buraco fica maior do que antes” (Jesus).

As senhoras e os senhores estão diante de uma situação complicada. O impulso administrativo é fazer coisas para melhorá-la. A roupa que têm nas mãos está podre e esburacada. O impulso administrativo é costurar remendos de pano novo no tecido podre. Forrester e Jesus profetizam: “Não vai dar certo”.

O livro sagrado do taoísmo, o “Tao-Te-Ching”, diz que estamos constantemente divididos: de um lado, a tentação de 10 mil coisas que demandam ação. Todas elas não-essenciais. Do outro lado está uma única coisa: o essencial, raiz das 10 mil perturbações.

Sabedoria é deixar o sufoco das 10 mil coisas não-essenciais e focalizar o essencial. Pergunto: estão enrolados pelas 10 mil coisas não-essenciais que demandam ação ou já se focaram no coração do bicho de onde nascem as 10 mil coisas?

Há algum tempo fiz um artigo com o título “Sobre política e jardinagem”. Gosto de jardins, de jardinagem. Os jardins são o mais antigo sonho da humanidade. As escrituras contam que Deus se cansou dos seus infinitos espaços celestiais e começou a sonhar. Qual foi o seu sonho? Um jardim: paraíso. E achou o jardim tão melhor que o seu céu que resolveu se mudar de casa: passou a morar no jardim. Gostava de caminhar por ele quando a brisa da tarde era fresca.

Uma das necessidades mais profundas do corpo é o “espaço”. O corpo precisa do “seu” espaço. Por isso os lobos e os cães urinam em certos lugares. A urina é a cerca que usam para marcar os espaços. Os pássaros marcam seus espaços cantando. Esse espaço é parte do corpo. Quando ele é invadido, o corpo estremece com a fúria que leva à luta ou com o medo que faz fugir.

Diferentes de lobos, cães e pássaros, não urinamos ou cantamos para marcar nossos espaços. Criamos símbolos. Para os homens, o símbolo que marca o espaço-corpo é o jardim. Quando esse espaço é destruído, a vida social é destruída.

Paraíso” deriva do grego “paradeisos”, que vem do antigo pérsico “pairidaeza”, que quer dizer “espaço fechado”. Jardim é um espaço fechado. Por quê? Para ser protegido, para ser nosso. Fora dos muros que fecham o jardim, está o espaço selvagem, ainda não moldado pelo desejo de vida e de beleza que mora nos seres humanos. Política é a arte de criar esse espaço. É a arte da jardinagem aplicada ao espaço público.


Deixando de lado as 10 mil coisas a serem feitas, digo que a missão das prefeitas e dos prefeitos é criar esse espaço necessário para que a vida e a convivência humana possam acontecer. Tudo o mais é acessório.


Como se cria esse espaço? A resposta mais óbvia é: fazendo as 10 mil tarefas administrativas que a criação de um jardim exige. “O que vem primeiro? O jardim ou o jardineiro?” É o jardineiro. O que é um jardineiro? É alguém que sonha com um jardim antes que o jardim exista. Um jardim assim não começa com 10 mil atos. Começa com um único sonho. O jardim começa na cabeça das pessoas. Começa com o pensamento. Se o povo não sonhar com jardins, os jardins não serão criados. E os que existem se transformarão em lixo.

Não há jardim que resista aos predadores. Os predadores dos jardins são os seres humanos que não pensam jardins.

A tarefa mais alta das prefeitas e dos prefeitos não são os 10 mil atos administrativos e as inaugurações que se lhes seguem. Sua missão mais importante é seduzir os habitantes das cidades a amar os jardins, a pensar jardins.

Uso a palavra jardim como metáfora para o espaço da cidade, que deve ser uma extensão do corpo das pessoas. Se as pessoas não sentirem que o espaço da cidade é uma extensão de seus corpos, então ele não será jardim, espaço protegido. Será o espaço selvagem de onde se deve fugir.

E cada qual se esconderá atrás dos muros, atrás das grades, atrás dos cães. E viverão no espaço pequeno de seus medíocres apartamentos, de seus medíocres condomínios, de suas medíocres mansões. E a cidade será um espaço morto, entregue à fúria dos carros e à violência das feras.

As senhoras e os senhores já pensaram que, mais importante que as 10 mil coisas administrativas que podem ser feitas, a tarefa essencial é fazer o povo pensar? Que o essencial é educar?

Cidades Educadoras. Assista Márcio Taschetto. https://youtu.be/J9_54JCJ0ME?t=81

O diabo sugeriu que Jesus tomasse providências práticas imediatas para resolver o problema. Jesus respondeu que o que realmente importava era a palavra.
“Sonho que se sonha só é só um sonho. Sonho que se sonha junto é realidade”, diria Raul Seixas.

É preciso que o espaço-jardim da cidade exista primeiro na cabeça das pessoas, para então se tornar realidade. Isso é o essencial”.

Assista também este texto lido e recitado: https://youtu.be/fMOTEnSi-wY?t=73

Autor: Rubem Alves, in memoriam (1933 – 2014)

Esta crônica foi retirada de livro Conversas sobre Política, Companhia Editora Nacional, 2018. Fez parte do PNLD (Plano Nacional do Livro Didático) e foi enviado às escolas públicas do Brasil

Edição: Alexsandro Rosset

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