Que teremos para o jantar?

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Há filósofos que atribuem ao apetite humano a responsabilidade tanto pela nossa selvageria quanto pela nossa civilidade.

Eis uma pergunta (para muitas pessoas) trivial: que teremos para o jantar? Todavia, a trivialidade desse questionamento reside só na aparência de naturalidade com que é, na maioria das vezes, formulado.  Na sua essência, aquilo que o psicólogo e pesquisador da Universidade da Pensilvânia, Paul Rozin, chamou de “dilema do onívoro”. Ou seja, quando se pode comer qualquer coisa que a natureza pode nos oferecer, decidir o que se vai comer, racionalmente ou não, é causa de ansiedade. Especialmente porque alguns alimentos podem nos fazer mal ou, até mesmo, nos matar.

Nos dias de hoje, em que (para quem tem dinheiro) abundam alimentos como jamais visto na história da humanidade, o dilema do onívoro torna o ato aparentemente simples de comer em uma coisa complicada. A tal ponto, de muita gente necessitar ajuda de especialistas (médicos e nutricionistas, por exemplo) para decidir o que comer (a par do modismo de dietas, que duram até o lançamento do próximo livro).

A situação existencial de um onívoro contrasta radicalmente com a de um comedor especializado, para quem a questão do que comer na próxima refeição não poderia ser mais simples. No caso de um comedor generalista (onívoro) aquilo que pode ser uma aparente vantagem também se torna um desafio, especialmente para os humanos, em que entra em jogo a racionalidade e valores morais.

A nossa vantagem frente a outros onívoros não racionais (um rato, por exemplo) é a nossa cultura, que nos permite ter acesso a uma farta experiência acumulada em relação à comida. São muitas as regras de alimentação codificadas em tabus, rituais, receitas, costumes e tradições culinárias que nos eximem (ou eximiam) de reviver o dilema do onívoro a cada refeição.

Uma visada panorâmica nas gôndolas de um supermercado e, principalmente, uma leitura um pouco mais atenta das embalagens dos alimentos industrializados talvez não nos deixe tão seguros assim quanto ao dilema do onívoro ser algo do passado da humanidade. Somos todos vulneráveis, especialmente aos olhos dos marqueteiros, que percebem, na questão da alimentação, o dilema do onívoro como uma oportunidade de negócio.

Novos produtos (alguns com promessas milagrosas), em tese da propaganda, podem aliviar a ansiedade que sentimos frente aos nossos hábitos alimentares.

Na mesa de jantar ou no corredor de um supermercado, não é difícil nos defrontarmos, mesmo sem perceber e atentar para a denominação, com o dilema do onívoro: produto orgânico ou convencional? Peixe do mar ou criado em tanques? Alimento com ou sem gordura trans? Gado criado em confinamento ou sob pastagem? Devo virar vegetariano?  E se virar vegetariano, um do tipo moderado ou um vegano radical? Açúcar ou adoçante? É seguro comer um alimento que contém produto transgênico? Gordura vegetal ou banha de porco? Que significa “saudável para o coração”?  Que é TBHQ ou goma xantana? Afinal, para onde vão me levar todos esses questionamentos?

Possivelmente, a melhor maneira de enfrentarmos o dilema do onívoro desse começo de século XXI é o entendimento das cadeias alimentares que nos sustentam, desde o início do processo de produção do alimento, passando pelas fases de processamento industrial, armazenamento e comercialização até chegar à mesa na forma de comida.

Compreender o nosso lugar nessa cadeia alimentar e ter consciência que a nossa condição de onívoro moldou a postura que temos em relação ao mundo natural, particularmente frente às espécies que nos servem de comida.

As adaptações que o homem sofreu ao longo da evolução das espécies serviram para que conseguíssemos derrotar as defesas de outras criaturas e pudéssemos comê-las (inclua-se a capacidade de caça, a invenção da agricultura e o ato de cozinhar utilizando fogo, que permitiu tornar os alimentos mais palatáveis, digeríveis e eliminar toxinas).

Há filósofos que atribuem ao apetite humano a responsabilidade tanto pela nossa selvageria quanto pela nossa civilidade. Uma criatura para quem era possível comer qualquer coisa (inclusive outros seres humanos, que o diga o bispo Sardinha, deglutido pelos Caetés em 1556) necessita especialmente de regras éticas, costumes e rituais no que tange aos alimentos e à alimentação.

Comer talvez seja algo que nos define (o quê e como comemos). Por isso é muito mais que um mero “ato agrícola”. É, ao mesmo tempo, também um ato ecológico e um ato político. Não é outra a razão, que leva muitas pessoas a comerem como autômatos na extremidade da cadeia alimentar industrial: pensar no assunto pode estragar o apetite.

Autor: Gilberto Cunha

(Do livro Galileu é meu pesadelo, 2009.)

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