O roubo do catavento verde-amarelo

2004

Até quando os pobres do país manterão os bancos,
o sistema de previdência e serão os culpados
pelos desgovernos dos governos? 
Até quando a justiça terá lado?

Não gostaria de decepcioná-lo ao dizer-lhe que minha consciência de pátria se deve a um cata-vento de infância. Tampouco quero escandalizar os amigos com minha proposição: “Um dia D é daqueles de fazer cata-vento e correr pela estrada”.

Meu passado de Forrest Gump, às vezes, aflora como um incontrolável espirro, para não usar outra comparação inadequada.

Ensino aos que não sabem, lembro aos que esqueceram: um cata-vento é um brinquedo construído de liberdade. O ar move as alas enquanto corremos contra o vento.

 Tinha sete anos. Era meu primeiro sete de setembro.  A coincidência do sete lembra plenitude. Soma do número 4 – pontos cardeais – com 3 – espírito, alma e corpo. Tinha sete anos, era meu primeiro sete de setembro consciente.

A aliteração também é mera coincidência deste número sete me perseguindo. O cata-vento tinha quatro alas verde-amarelas. Quatro do mundo, quatro pontos cardeais de minha pátria. E foi roubado antes do desfile.

Foi assim. Cada turma do colégio marcharia no sete de setembro com um símbolo diferente. Tive a ideia do cata-vento. Adorava correr pelas estradas com um de folha de ananás. A professora achou interessante fazê-lo com papel amarelo em um lado e verde no outro. 

O cata-vento, pagaríamos nós, como quase tudo em escola pública. Minha mãe vendeu feijão para me dar a primeira pátria. Foi a professora quem falou isso. “Imaginem-se levando a pátria nas mãos.” Eu acreditava em quase tudo. E acreditei que tinha uma pátria que ajudara a fazer.

Levei o dinheiro para a professora. Fiz o cata-vento.  Sentia-me  orgulhoso  de  minha  pátria.  Todas as florestas  verdes de um lado. Todas as riquezas amarelas no outro.

O cata-vento não tinha céu. Não precisava. Céu é infinito, não caberia no cata-vento-pátria. Testei, era bom e forte.  Corri pelo pátio, andei pelos corredores. Pátria girando nas mãos, coração alado. Feliz brasileiro eu, por ter uma pátria de feijão cultivado por meus pais.

Alegria de pobre dura pouco, diz o provérbio. A minha durou 24 horas. Fiz e testei o cata-vento no dia cinco. Para ensaiarmos a marcha, voltei à escola no dia seis, correndo ufano e altivo. Desfilaria com minha pátria entre as mãos, com o trabalho de papai plantando o feijão, de mamãe tirando o inço, do meu transformando o papel.  Corri para a pasta dos meus trabalhos. Surpresa! Meu cata-vento sumira. Desesperei-me, chamei a professora, gritei para os colegas: “– Roubaram minha pátria!”

Voltei angustiado para casa. Teríamos que vender mais feijão. Precisava de outro cata-vento. Graças a Deus, mamãe entendeu. A professora comprou papel, refizemos o brinquedo, outra pátria para minha pueril felicidade.

Sete de setembro, imponentes, desfilávamos.  Em raios fúlgidos, brilhou o sol da pátria no cata-vento de um colega. Vi, nas alas amarelas, o triângulo verde da bandeira da Inconfidência. Era minha senha. Apenas eu o desenhara.

Terminado o desfile, avancei contra ele, mesmo mais forte. Arranquei de suas mãos aquele símbolo em restos de papel sobrados da briga. Lembro tudo como o primeiro roubo da pátria que enfrentei. Nesses anos, infelizmente, muitos o sucederam.          

Até quando venderemos nosso feijão para refazer os cata-ventos? Até quando os pobres do país manterão os bancos, o sistema de previdência e serão os culpados pelos desgovernos dos governos?  Até quando a justiça terá lado?  Hão de roubar-nos sete vezes? Ou setenta vezes sete, Senhor?




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