A Valentina não vai fazer medicina!

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Não, não importava o que a Valentina gostaria, não importava se ela tinha um propósito ou uma certa aptidão pela profissão. Para aquela avó, parecia ser muito simples: escolha o que lhe der mais dinheiro. O contrário, pela sua feição, seria inadmissível.

Eu estava tomando um café, enquanto ouvia a conversa da mesa alheia (desculpe-me, caro leitor) eu entendo a tamanha indiscrição, mas, eu juro! é o tipo de estímulo auditivo que eu simplesmente não consigo ignorar.

Haviam duas senhoras, conversando sobre a vida da Valentina. Uma delas, parecia ser a avó e insistia indignadamente:

– A Valentina deveria fazer medicina, deveria, mas ela não quer. Quer fazer psicologia! Mas, ela deveria fazer medicina, pensa bem, se ela se formar em psicologia, vai ter que fazer uma especialização, um mestrado, doutorado… daria o mesmo tempo que fazer uma residência. A diferença é que ela estaria ganhando muito mais! (assim como metade da família médica, pelo que eu compreendi).

Naquela altura do campeonato, a minha vontade era simplesmente levantar e fazer um sermão! Eu não sou padre, eu não fazia ideia de quem era Valentina, mas sua autenticidade deveria ser defendida. Eu levantei… acovardei-me e fui para a casa… a verdade é que eu sou péssima em improvisos e aquilo não daria certo… por mais que vontade não me faltou!

Depois que partimos, fiquei pensando em como aquela simples conversa retratava um pouco dos “ideais” da civilização contemporânea, que pode muito bem ser traduzido por dinheiro, money, bufunfa, grana ou dindin.

Não, não importava o que a Valentina gostaria, não importava se ela tinha um propósito ou uma certa aptidão pela profissão. Para aquela avó, parecia ser muito simples: escolha o que lhe der mais dinheiro. O contrário, pela sua feição, seria inadmissível.

Para compensar a minha covardia, lembrei da vez em que eu criei coragem e fui mesmo brigar com o meu ex-psiquiatra. Eu defendia a ideia de que seria possível viver sem antidepressivos, mesmo após uma depressão e alguns episódios de ansiedade generalizada, e que achava aquela estória da falta de neurotransmissores uma conversa para boi dormir e para a indústria farmacêutica acordar, né, (claro, eu fui bem mais educada e técnica, mas no final, foi isso mesmo que eu quis dizer).

Enquanto que, surpreendentemente, em alguma etapa da discussão, ele me respondeu que tomava um antidepressivo de manhã e outra à noite, confessou-me que chegou em um momento da vida dele em que ele estava ganhando bem, mas, não via mais sentido naquilo que ele fazia. A resposta que ele encontrou pra si mesmo foi aquela que possivelmente ele aprendeu na residência? É questão de química!

O problema era o seu, e o meu, cérebro que não produziam neurotransmissores de modo suficiente e isso estava muito bem embasado, graças as teorias da época e ao seu histórico familiar. Era genético. Dentro dessas limitações, não havia o que ser feito a não ser aceitar e tomar o seu remedinho.

Eu lembro até hoje dele olhando para mim e dizendo: Ana, está vendo este óculos? Assim como eu o utilizo porque não enxergo direito, você também deve utilizar o antidepressivo, pois, não produz adequadamente a serotonina (um neurotransmissor). Na época eu preferi não discutir essa falácia, especificamente caracterizada como falsa analogia.

Eu compreendo que o intuito dele com aquilo era simplificar, o porém, é que é justamente esse o problema. Algumas “soluções” da medicina parecem simplificar o complexo jogo de nossas reações químicas, que derivam não só da genética, como da epigenética, conduzida pelos fatores ambientais, além de nossa estrutura cognitiva, comportamental e emocional.

É fácil resolver o problema enxergando desse modo, (aliás, enxergando mal e precisando de óculos) o problema é que… os antidepressivos resolvem mesmo o problema? Ou deveriam ajudar a resolver o problema?

Essa discussão ocorreu faz alguns anos… e aqui eu gostaria de fazer a minha primeira ressalva. Meu intuito com o texto não é fazer as pessoas fugirem dos psiquiatras. Pelo contrário, acredito que a psiquiatria tenha evoluído muito até o momento, e talvez até o meu ex-psquiatra, além disso, acredito também que novas abordagens estão sendo propostas. Deixo aqui minha total admiração aos profissionais que genuinamente buscam compreender a complexidade humana e restituir a sua saúde mental.

Feita a ressalva… como eu já confessei, eu não me dou bem em improvisos e na época eu estava com o meu sistema nervoso tão alterado que a única coisa que eu consegui pensar depois daquele desabafo foi: bom, se ele mesmo toma antidepressivo, ao menos quer dizer que pelo menos ele realmente acredita na teoria que ele aplica, isso é digno de nota e, no fundo ele é uma boa pessoa.

Eu segui a procura de respostas, não foi um caminho fácil, na busca por autoconhecimento, precisamos mexer dentro, e nos deparamos com muito sofrimento, medo e apreensão. Além da solidão, pois, quando contestamos uma teoria famosa, também nos sentimos sozinhos e sem apoio.

Perguntei-me várias vezes se estaria no caminho certo, encontrei respostas na meditação (leia de novo e devagar para não confundir com medicação), ou melhor, encontrei respostas em um exercício continuo de consciência sobre as minhas ações e só consegui superar as minhas crises quando eu genuinamente passei a conhecer a si mesma e com isso também reconhecer o meu propósito de vida, que, com essa história, não poderia ser algo diferente de Filosofia.

Hoje, sinto por aquele não ter sido o momento de dizer: com todo o respeito, considero que, talvez, o que lhe falte não são neurotransmissores, é um propósito. Sinto muito por você não conseguir perceber as consequências de não olhar criticamente para uma cultura fundamentada no lucro. Em que somos ludibriados e convencidos a escolher as nossas profissões prioritariamente por status e dinheiro. Até que depois de um tempo, começamos a perceber que isso não é suficiente para preencher o vazio que cresce dentro da gente a cada dia, alimentando-se da falta de sentido.

Talvez, ele estivesse na profissão certa, reconheço ser equivocado julgar sem conhecer. Não sei as motivações de sua escolha. O que eu sei, é que aquela teoria não parecia estar funcionando. E que se a tristeza batia em sua porta, com certeza ela teria um motivo de ser muito além dos seus neurotransmissores.

É por essas que a Valentina não vai fazer medicina! E seja lá onde você estiver, eu gostaria de dizer que eu torço muito por você!

. . .

P.S: É sempre complicado tratar de questões complicadas. Quadros de depressão e ansiedade são questões complicadas, sérias. Em função disso, acredito ser necessário algumas observações. Gostaria de dizer que não me oponho ao uso de medicamentos psiquiátricos, desde que sejam implementados com parcimônia, além de uma estratégia, clara e definida, e preferencialmente, visando um prazo determinado. Desde que eles não sejam a principal solução para os seus problemas, pois, acredite, eles não são!

Oponho-me a teorias reducionistas que limitam o ser humano a uma mera composição química. Oponho-me a uma sociedade acrítica, que não consegue enxergar o fato de que uma vida fundamentada no lucro, em que o dinheiro é fim e não meio, não só está nos deixando doentes, como também pode nos cegar a ponto de não conseguirmos enxergar os nossos principais motivos de ser e viver (e aí, você vai precisar de “óculos”!).

Oponho-me a tudo isso porque realmente acredito que perdemos muito do tanto que poderíamos ser e viver se compreendêssemos mais sobre nós mesmos, ao invés de procurar resolver os nossos problemas, apenas, tomando o nosso remedinho.

SUGESTÕES INTERESSANTES:

1.Se você tem interesse por um olhar mais crítico quanto ao uso dos medicamentos, recomendo o podcast “A Medicalização da Vida ”, do Ouse Saber, elaborado pelo curso de Filosofia da UPF, vale a pena conferir e refletir! https://open.spotify.com/episode/6I4LzvBFpYoHppfhLQRMSc

2.Se desejar refletir mais sobre o papel da dor, recomendo este vídeo que elaborei especialmente refletindo sobre isso: https://www.youtube.com/watch?v=C1SCyikywn0&list=PLxXkP7WbAeT_0jRaut5ULRNDWQIAq-7bN&index=7

Autora: Ana P. Scheffer

Edição: A.R.

3 COMENTÁRIOS

  1. Não, não importava o que a Valentina gostaria, não importava se ela tinha um propósito ou uma certa aptidão pela profissão. Para aquela avó, parecia ser muito simples: escolha o que lhe der mais dinheiro. O contrário, pela sua feição, seria inadmissível.

    • Olá, Agostinho! Agradeço pelo seu tempo dedicado a ler o texto, bem como pelo seu comentário! Fico feliz em saber que meu modo de se expressar lhe agrada e que de algum modo consigo repassar um pouco de minha energia tecendo as palavras. Um abraço apertado!

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