Um diagnóstico limitante

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Eis o problema de vestir um rótulo e ser depressivo, ao invés de se relacionar com a depressão como uma parte de você que precisa de atenção e apoio. Ou melhor, eis a diferença entre um diagnóstico limitante, e impor um limite para o seu diagnóstico.

Sabe, eu sempre achei interessante a necessidade humana de procurar saber mais sobre si mesmo, e mais interessante ainda é a necessidade de compartilhar isso com as outras pessoas, quase que como um processo de validação. Exemplo clássico daquela pesquisa fajuta do facebook que “revela” mais sobre você e você faz questão de compartilhar a resposta.

O segredo está em falar para as pessoas o que elas querem ouvir, com termos genéricos presentes em ampla escala na idealização do comportamento humano: amável, generosa, carinhosa, esforçada, perseverante… e a lista de exemplos é ampla. Falar mais de uma característica também é importante e mais assertiva, porque tendemos a relevar o que não faz sentido, e potencializar o que faz, o que nos identificamos.

As previsões astrológicas, especificamente os nossos horóscopos, fazem algo parecido. Tanto que, se a gente embaralhar a descrição dos signos e mostrar para uma pessoa que não possuir associação prévia entre a personalidade de cada signo, falando que aquilo revela mais sobre você, possivelmente ela vai se identificar, em algum nível, com a descrição.

E no final, somos nós tomando medicamentos para resolver o nosso problema que tem mais a ver com o nosso estilo de vida do que qualquer outra coisa (cadê a coesão textual, dona autora?).

Espera, já vamos entender. Digo isso pois, o que percebo que recorrentemente fazemos, é buscar respostas sobre si mesmos fora, enquanto que deveríamos busca aí.

– Aí aonde?

– Aí dentro!

É muito mais fácil procurar saber quem você é fazendo uma pesquisa de 3 minutos, ou recebendo o seu mapa astral, do que se perguntar: quem é você? O que você gosta de fazer? O que você não gosta? Quais aspectos do seu comportamento você reconhece que deveria mudar? E o que te impede de mudar?

Perguntas muitas vezes incômodas, com respostas nada exatas, que podem demorar um tempo considerável a surgir. Algo completamente contrário ao nosso fastmundo, alimentado com hambúrguer carne e queijo que de nutrição não tem nada.  

Eu não vejo nenhum problema em você fazer os questionários do facebook, muito menos o seu mapa astral detalhadíssimo. Acredito que, quando observados de forma consciente e sincera, reconhecendo o que verdadeiramente faz parte em nós e o que não faz, é um movimento que pode até mesmo contribuir em nosso autoconhecimento.

Qual é o problema então, dona autora? O problema é quando usamos esses elementos para financiar o nosso comodismo. É mais fácil tomar remédio para a sua diabete tipo II do que alterar os seus hábitos alimentares. Também é infinitamente mais fácil você usar o seu signo para justificar, e muitas vezes financiar, o seu mau comportamento, do que o mudar!

“aí meu signo é dinossauro, e é por isso que eu sou agressiva”, “aí, você está falando com uma unicorniana, e é difícil que eu consiga chegar na hora”.

Por vezes, eu tenho a impressão que o período moderno ainda vive em nós, e aquela mentalidade a lá Gabriela, persiste!

“Eu nasci assim, eu cresci assim, vou ser sempre assim…”

Minha tristeza aumenta quando eu percebo que esse mesmo movimento se intensifica na fase que intitulei como a fase “TAG”. Um tag é uma espécie de rótulo, mas o nome é bom porque nos lembra do transtorno de ansiedade generalizada, que também pode ser um diagnóstico rotulante, ou até mesmo pode ser um tag bônus pelo seu outro tag.

Você, querido leitor, já tem o seu? É depressivo, ansioso? bipolar?

Em verdade, observo que esse movimento vem crescendo em proporções significativas, ao acompanhar as mídias. Não é incomum encontrar vídeos com milhares de visualizações com um check-list de sintomas. E o detalhe, descrições muitas vezes genéricas e comuns a grande parte de nós, humanos. Por exemplo…

Recordo-me do último vídeo que eu assisti. Era de uma pessoa com determinado diagnóstico que começava assim “pode não parecer, mas, eu aprendi a mascarar” (1). Essa pessoa expunha o quanto para ela era difícil ser uma “adulta normal e funcional” (2). E o quanto ela possuía uma linguagem própria, mas que ela não conseguia traduzir (3). E com isso, alegava a sua dificuldade de se expressar, mas, se expressando muito bem no vídeo (4).

Vamos avaliar isso melhor:

Argumento 1: “pode não parecer mas, eu aprendi a mascarar”

Esse argumento pode revelar uma pessoa que parou para se conhecer melhor e constatar que suas escolhas de vida e seu jeito ser se orientavam mais pelo o que os outros iriam pensar do que por si mesmo. E como somos seres suscetíveis ao meio, não é incomum encontrar pessoas assim. Inclusive tem uma fábula linda que trata sobre isso e se intitula “O cavaleiro preso em uma armadura”, vale a leitura!

Argumento 2: sobre a dificuldade de ser uma “adulta normal e funcional”

Essa fala pode revelar o quanto somos iludidos pela ideia de que existe uma pessoa normal e funcional. Tipo aquela Barbie do mundo real igual a da caixinha. Meus queridos: de perto ninguém é normal (inclusive, tem um livro que trata sobre essa questão e se intitula “o mito da normalidade”) e o tempo todo, ninguém é funcional. É claro que em uma sociedade do desempenho, funcionalidade é um atributo muito valorizado, mas, às custas do que? De nossa saúde? Do tempo com as pessoas que amamos? Acredito que nesses casos, é essencial compreender o que verdadeiramente buscamos com isso. Porque muito além de status e dinheiro, está a nossa necessidade de conexão que se relaciona ao reconhecimento e a atenção que recebemos das pessoas. E podemos conseguir isso de formas muito mais leves.

Eu por exemplo, remodelei toda a minha rotina de trabalho, porque passei a aceitar a minha sensibilidade e reconhecer que está tudo bem não estar tudo bem o tempo todo. Foi um alívio. E assim, ao invés de insistir em me encaixar em uma caixa em que eu não cabia, eu criei coragem suficiente para despadronizar a minha rotina de trabalho. Olhando assim parece fácil, mas, tenta sair da caixa para você ver como dá medo. 

Argumento 3: “eu possuo uma linguagem própria que muitas vezes não consigo traduzir”

Bem, pode-se aqui revelar uma certa dificuldade de se abrir com o outro e se conectar. Isso envolve questões importantes como por exemplo, o quanto suas referências na primeira fase da vida foram relacionamentos seguros ou o contrário disso. Além de que, todos temos uma linguagem própria, e materializar com palavras o que estamos pensando ou imaginando nem sempre é uma coisa fácil, ainda mais dependendo da complexidade do seu pensamento.

Argumento 4: “a dificuldade de se expressar” ao meu ver, se expressando muito bem.

Aqui para mim ficou evidente o seu nível de cobrança ou perfeccionismo. Eu por exemplo, por vezes chego a cancelar várias vezes os meus áudios no WhatsApp porque alguma palavra não saiu como desejado (é por essas que eu amo escrever, porque me dá tempo para refletir mais). Mas, eu entendo que se trata de um nível de cobrança exagerado que quando bem calibrado, pode surtir efeitos positivos em nós! (Inclusive, se o perfeccionismo anda lhe causando prejuízos, convido você a me acompanhar no Instagram em @dialogosdaana, porque em breve pretendo lançar um curso sobre a arte de lidar com o perfeccionismo!).

Com essas considerações eu não quero passar a ideia de que o que essa pessoa está retratando é irrelevante, muito pelo contrário, é muito relevante, e dependendo das escolhas que ela fizer a partir dessas informações, ela poderá se tornar uma adulta mais segura de si, resiliente e preparada para encarar as adversidades da vida.

Isso porque, quando tiramos a ênfase nos sintomas e seu respectivo diagnóstico, passamos a compreender aquele ser humano em sua subjetividade. Elencamos com clareza seus pontos de fragilidade e isso abre espaço para que possamos investir em aprimoramento. Ou seja, não é uma condição imutável, mas uma condição ponderável.

O problema vem agora: quando esse discurso é colocado tendo como principal pano de fundo um diagnóstico, a conversa passa a ser outra. E na fala daquela pessoa, o que ficou mais claro foi o quanto ela mesma estava se limitando em função dos sintomas. É como se os fatores genéticos fossem a causa única daquela condição e ela nada tem a fazer a não ser aceitar.

Por exemplo, se você tem dificuldade de se relacionar com as pessoas, e atribui a causa dessa dificuldade para um diagnóstico, isso pode repercutir de tal modo que você nunca olhe para questões importantes de sua vida que vão muito além dele. Por uma questão de linguagem e otimização de energia, a sua mente não vai investir em um novo olhar para o problema, se você alimenta a ideia que para esse problema a causa é única e definitiva. 

Mas o que deveríamos fazer, então? Fingir que o diagnóstico não existe? Nada disso. Um diagnóstico, quando bem feito, pode nos trazer informações importantes sobre nós mesmos e auxiliar na identificação de nossos pontos, digamos, sensíveis. É com base nessa definição que somos possibilitados a procurar alternativas saudáveis de lidar melhor com nós mesmos. 

Mas cuidado. Quando a gente recebe um diagnóstico e apenas toma uma medicação, meio que renegando que parte da responsabilidade por essa condição também parte do que aconteceu com a gente, além das atitudes que escolhemos ter, ao invés da cura, a tendência é que isso cause mais dor, desconexão e incompreensão.

É o caso, por exemplo, de uma depressão crônica, tratada unicamente a base de medicamentos, com uma mísera resposta de melhora. As coisas complicam ainda mais quando a explicação se direciona unicamente para uma tendência genética e a pessoa passa aceitar aquela condição como um fardo que ela tem que carregar, ou de ser iludida pela ideia de que é o medicamento que não está fazendo efeito, quase como quem diz, o problema nem é comigo. 

Alimentação saudável, atividade física, rotina, meditação, conexão humana, terapia, filosofia, altruísmo… nada disso nem sequer chega a ser uma possibilidade que pode culminar no ciclo interminável da falta de vontade. Quando, por exemplo, a gente passa a misturar as coisas e adota a depressão como justificativa para algo que você deveria fazer para melhorar, mas, é incômoda e muitas vezes chata, e portanto, não faz. Eis o problema de vestir um rótulo e ser depressivo, ao invés de se relacionar com a depressão como uma parte de você que precisa de atenção e apoio. Ou melhor, eis a diferença entre um diagnóstico limitante, e impor um limite para o seu diagnóstico.

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Autora: Ana P. Scheffer. Também escreveu e publicou reflexão “Não está tudo bem”: https://www.neipies.com/nao-esta-tudo-bem/

Edição: A. R.

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