Vidas negras importam e inspiram lutas

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Arthur Bispo é um militante social com atuação destacada na nossa cidade Passo Fundo. Em suas mais recentes atuações políticas, foi candidato a prefeito de nossa cidade e participou, ativamente, das manifestações contra o racismo e pela afirmação dos direitos e da identidade dos negros e negras a partir de nossa cidade, do Estado do RS, do Brasil e do mundo.

Bispo destaca-se pela clareza de suas ideias, pela serenidade e firmeza de suas ideias quando debate questões sociais. É um militante social forjado nas recentes lutas estudantis e sociais que aconteceram com protagonismo coletivo e social em nossa cidade. Atua, profissionalmente, como cobrador de ônibus da Empresa Codepas, em Passo Fundo, RS.

Nesta entrevista exclusiva ao site, Arthur Bispo fala de sua trajetória pessoal e social, fala de sua participação no pleito eleitoral de 2020 e fala do contexto do ano de 2020 com relação aos inúmeros “levantes” e manifestações da comunidade negra com relação ao combate ao racismo e a afirmação da identidade e história dos negros e negras.

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SITE NEIPIES: Como, quando e porquê surgiu em você o desejo de mudar o mundo através da militância social?

Arthur Bispo: Não recordo o momento em si, mas foi no contexto da minha atuação no movimento estudantil universitário. Em menos de um mês no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas já participava de reuniões estudantis, o pessoal queria formar uma chapa para o Diretório Acadêmico América Latina Livre e eu estava lá só ouvindo, quando foram compor a nominata, faltou alguém que fosse da filosofia e uma companheira que era da UJS na época me convenceu. Não imaginava que aquela decisão teria um impacto tão grande em mim, nos semestres e anos seguintes nós sacudimos a UPF e fomos além dos muros da academia. Quando estoura a luta contra o aumento das passagens em maio e junho de 2013 já me identificava como comunista e havia iniciado a militância no trotskismo, ali foi um momento dessa virada talvez, fui levado pelos acontecimentos a ocupar um espaço político que não almejava e nem me considerava preparado. Erramos muito nesse caminho, mas remamos contra a corrente e cumprimos um papel importante nas lutas da juventude e no combate às opressões.

SITE NEIPIES: Conte-nos um pouco de sua trajetória pessoal e política.

Arthur Bispo: Sou natural de Passo Fundo e filho de trabalhadores, já morei em mais de uma dezena de bairros, nós sempre moramos de aluguel então nunca me fixei muito num lugar. Minha mãe é enfermeira e de uma família de migrantes negros do interior da Bahia, sempre batalhou muito por nós e enfrentou o racismo várias vezes, é a referência pra mim e minha irmã. Havia trancado a faculdade de Filosofia anos atrás e retomei recentemente incentivado pela minha companheira Ana Vitória, é difícil conciliar tudo, mas ninguém disse que seria fácil.

Por muitos anos minha militância foi estritamente estudantil a partir do DAALL no IFCH que, literalmente, mobilizava mais estudantes que qualquer organização da UPF. Fiz parte da direção da Associação Brasileira de Estudantes de Filosofia onde conheci muitas regiões do país e organizamos o Coletivo Nada Será Como Antes que atuou como oposição ao DCE da UPF nas gestões ligadas ao Democratas e depois as do PCdoB.

Nesse meio tempo, tive muito contato com alguns sindicatos e partidos de esquerda. O PCdoB deve ter percebido que eu era trotskista antes de mim, pois questionava muito a militância deles e todo adesismo acrítico às políticas do PT na educação. Participava do Comitê Fora Yeda articulado pelo CPERS, dali discuti com várias das correntes do PSOL – quando o Plínio de Arruda Sampaio concorreu à presidência todos nós que atuávamos juntos fizemos até campanha – mas nas discussões ficava muito frustrado, parecia contraditório um partido socialista que parecia estar numa guerra pública entre si permanente e ninguém me convencia de que aquilo seria passageiro, tanto que segue assim até hoje.

Quando bati na porta do PSTU em 2012, foi tudo muito rápido, percebi logo que tinha que estudar mais o marxismo e que seria muito cobrado. Assumi a responsabilidade de reconstruir a juventude do partido e assim foi, na época, a luta LGBT estava explodindo em Passo Fundo com o Plural e nos pressionava a aprofundar o debate da luta contra a opressão e a exploração. De lá pra cá, houve um salto grande na minha convicção sobre a necessidade da revolução e de um partido de militantes que estejam minimamente preparados para esse momento.

SITE NEIPIES: 2020 foi um ano atípico. Para além do evento Pandemia do novo Coronavírus, que outros desafios foram enfrentados neste ano pelo conjunto dos trabalhadores brasileiros?

Arthur Bispo: Vai ser difícil falar de 2020 sem citarmos a pandemia (estou com a doença nesse momento) e todas as ações absurdas dos governos no nosso país. Essa crise sanitária, combinada com a crise do capitalismo que já se expressava fortemente sobre nós, piorou ainda mais a situação. O grande capital só pensa e age para manter seus lucros, foi assim que cortaram direitos trabalhistas e previdenciários. Nem mesmo os precarizados aguentam essa situação e foram à luta na greve dos aplicativos. Porém, 2020 também foi o ano em que o levante negro repercutiu no mundo, é cruel demais vermos que o genocídio da juventude negra não cessou nem mesmo em meio à pandemia. Desde 2013, em muitos momentos nos levantamos no Brasil contra o racismo e os assassinatos, quantos Amarildos, Claúdias e DGs foram tirados de suas famílias pela violência da criminalidade ou da polícia nesses anos? Os casos do Gustavo Amaral e, especialmente, do João Alberto foram apenas o estopim mais recente que tornou-se conhecido, a semelhança com o assassinato de George Floyd nos Estados Unidos é simbólica de como o racismo e o capitalismo seguem muito presentes no mundo.

SITE NEIPIES: Qual é sua avaliação da política no atual momento histórico?

Arthur Bispo: Estamos numa conjuntura defensiva da classe trabalhadora, mesmo que a situação seja de muita instabilidade no andar de cima. A esquerda institucional tem encarado a ascensão do bolsonarismo de forma muito superficial e sem reconhecer que a conciliação de classes com partidos burgueses por anos e anos nos governos do PT fortaleceram esses setores que estão no poder. Bolsonaro e todos associados a ele ou às suas políticas não merecem ter trégua alguma, são mais de 185 mil mortos no país e a maioria são de trabalhadores, negros, indígenas e pobres. Nosso desafio é destravar a luta nas ruas, para isso precisamos batalhar por um plano emergencial de vacinação para todos e colocar os interesses de classe trabalhadora acima das diferenças políticas da esquerda, construir a frente única pra lutar é difícil, mas é o único caminho. Quem aposta todas as fichas nas eleições burguesas em 2022 está iludindo-se ou, deliberadamente, iludindo a todos ao seu redor.

SITE NEIPIES: Participas de grupos de discussão e organização de questões étnicas e raciais. Qual é a importância destes grupos para a organização das minorias?

Arthur Bispo: Não somos “minoria” e é importante frisar isso. Toda forma de discriminação tenta deslegitimar o combate às opressões dando a entender que é uma minoria social que estaria tentando suplantar uma maioria, não é assim. Milito do Movimento Nacional Quilombo Raça e Classe, um movimento que retoma às origens da concepção que criou o Movimento Negro Unificado, onde a luta contra o racismo deve ser travada numa perspectiva de raça e de classe, junto aos trabalhadores e trabalhadoras negros e não negros. Na ação direta por Justiça para Gustavo Amaral e João Alberto forjamos um fórum antirracista “Vidas Negras Importam” que tem potencializado o debate em Passo Fundo. Além disso, tenho muito orgulho de ter estado junto com dezenas de ativistas LGBTs que possuem o Plural como referência, aprendi muito com todas e levo isso para qualquer debate sobre opressões.

No PSTU temos uma estrutura de secretarias que pautam junto com os organismos do partido o tema das opressões. Faço parte da equipe da Secretaria Estadual de Negras e Negros do Rio Grande do Sul, tem sido uma forma muito importante para o fortalecimento político da nossa coluna de militantes negros.

SITE NEIPIES: Como foi a sua primeira experiência como candidato a prefeito de nossa cidade, pelo partido do qual és militante, o PSTU?

Arthur Bispo: Foi um desafio que aceitei com certa contrariedade, uma semana depois era o mais animado com a ideia, a parceria com a professora Marli também me deu mais segurança. Nosso objetivo era propagandear o programa socialista e denunciar o regime capitalista, fomos bem nesse sentido, mesmo com todas as restrições impostas pela lei eleitoral. Muitos elogiaram nossas participações nos debates, eram oportunidades para expormos nossas diferenças e onde predominavam uns diálogos sofríveis entre os demais, criei em alguns momentos uma certa expectativa de que nossos adversários poderiam romper com o discurso pronto e falar à sério, mas não foi assim.

Fiquei três meses dedicado exclusivamente a pensar e discutir os problemas de Passo Fundo, isso me permitiu ter contato com muitas pessoas oprimidas e exploradas que vivem em condições indignas nos bairros e nas ocupações. Por mais que tenhamos um programa que expressa suas necessidades, foi impactante vivenciar com tantas trabalhadoras e trabalhadores que reivindicavam nossas ideias como suas, mesmo conscientes das nossas poucas possibilidades eleitorais. Saímos fortalecidos politicamente, com muitas novas parcerias com quem pensa como nós, como no movimento indígena, e com muitas pessoas nos ouvindo com mais seriedade as ideias socialistas. Sabemos que quem nos atacou nas redes são os fanáticos bolsonaristas que tiveram vários motivos para tal, somos aqueles que levaram o Fora Bolsonaro e Mourão para todas as nossas aparições na campanha e com muito orgulho disso.

SITE NEIPIES: Qual é a importância da política na vida de cada cidadão e na afirmação dos direitos de cada um e de todos nós?

Arthur Bispo: A política perpassa a tudo e a todos. Mas a consciência dominante é a consciência da classe dominante, mesmo que a burguesia seja a extrema minoria de milionários desse país. A única forma de virarmos a mesa é ganhando mais e mais trabalhadores que lutam pelos seus interesses de classe a compreenderem que isso é fazer política, a mais importante delas, forjada no calor da ação direta nas ruas. O capital, os burgueses, os patrões são muito organizados para nos retirar direitos e possuem dezenas de partidos para tal. A classe trabalhadora não pode apenas improvisar, temos de nos fortalecer, fortalecer nossas organizações e estar dispostos a elevar a luta concreta como prioridade para transformar radicalmente o mundo.

SITE NEIPIES: “Vidas negras importam”. Por que?

Arthur Bispo: Porque foi ao custo de milhões de vidas negras que o Brasil foi construído, temos tanto direito quanto qualquer outra pessoa a viver dignamente sem nenhuma forma de opressão. O racismo é uma ideologia que submete mais da metade da população brasileira, divide racialmente a classe trabalhadora e perpetua um sistema político baseado na exploração do homem pelo homem. O Estado brasileiro é historicamente racista e nenhum governo de plantão vai mudar isso, a revolução no Brasil será negra ou não será.

SITE NEIPIES: Na tua avaliação, o que acontece no Brasil e no mundo e que ainda revela tanto ódio, preconceito, discriminação e racismo?

Arthur Bispo: Segundo a Oxfam, o Brasil tem 42 bilionários que, juntos, tiveram suas fortunas aumentadas em US$ 34 bilhões. O patrimônio líquido deles subiu de US$ 123,1 bilhões em março para R$ 157,1 bilhões em julho. O imperialismo, fase superior do capitalismo, demonstrou nessa crise mundial devido à pandemia que não tem nenhuma intenção humanitária em resolver os problemas do mundo. A podridão desse sistema político e econômico necessidade do racismo, mas também do machismo, da lgbtfobia e da xenofobia para dividir os explorados e manter-se no poder. É impossível compreender tamanha discriminação sem relacionarmos com os fatos concretos, enquanto nós morremos de coronavírus e pela violência racista em 2020, a burguesia lucrou e muito.

SITE NEIPIES: Por que o racismo estrutural ainda é tão preponderante em nossa sociedade e quais são as saídas para sua superação?

Arthur Bispo: O Brasil não acertou as contas com o seu passado, nossa história é marcada pelo genocídio indígena e pela escravização de povos africanos. Muitos que negam o racismo afirmam que aqui todos são respeitados e que a miscigenação das raças seria resultado disso. Apesar de mais de 60% dos escravizados trazidos para as Américas terem sido homens, as análises genéticas apontam que uma grande parte dos genes de descendência africana vêm das mulheres vítimas de estupro pelos senhores brancos. A ideia de que vivemos numa democracia racial é apenas um mito criada por Giberto Freyre em Casa Grande Senzala, utilizada até os nossos dias para reprimir a afirmação da consciência racial negra de milhões de brasileiros.

Já dizia Malcom X, “não existe capitalismo sem racismo”. Precisamos que negros e negras da classe trabalhadora afirmem cada vez mais a sua consciência negra e de classe, somos a maioria e precisamos tomar o futuro nas nossas mãos, nada cairá do céu. Se para abolirem a escravidão foram necessárias milhares de rebeliões negras e quilombolas no passado, para dar um fim no racismo precisamos combate-lo desde já para termos forças para destruir o capitalismo e forjar uma nova sociedade onde o tom da pele, a identidade de gênero ou a orientação sexual não sejam motivos para a discriminação.

SITE NEIPIES: Uma frase, um pensamento ou uma ideia que inspira tua vida.

Arthur Bispo: “Não acreditamos que a melhor forma de combater o fogo seja com fogo; a melhor forma de combater o fogo é com água. Vamos combater o racismo não com racismo, mas com solidariedade. Dizemos que não vamos lutar contra o capitalismo com capitalismo negro, vamos vencer ele com socialismo. Vamos combater porcos reacionários e procuradores reacionários com todos nós nos unindo e fazendo uma revolução proletária internacional.” (Fred Hampton (Pantera Negra assassinado pela polícia de Chicago/EUA em 1969)

SITE NEIPIES: Que mensagem gostarias de deixar aos militantes sociais que como tu atuam socialmente por um mundo melhor?

Arthur Bispo: Não foi um ano normal para quem tem consciência política de que vivemos uma barbárie cotidiana. Espero que nós tenhamos saúde até que todos e todas estejam vacinados, sigamos vigilantes com a nossa segurança até lá.  Que possamos encher as ruas de Passo Fundo e do mundo em 2021 para afirmar a necessidade de um mundo sem opressão nem exploração, sigamos os passos da juventude chilena, o futuro nos pertence.

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