Um pai contador de histórias

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Sermos pais, mães, tios, padrinhos, madrinhas, ou o que for, contadores de histórias, faz muita diferença. Experimentemos, nem que seja uma vez, dividir o tempo com um pequenino ávido por conhecer novas aventuras. Talvez a viagem imaginária também nos faça.

À beira da cama, sentado ao lado do filho, o pai narra. Não uma, nem duas, mas várias vezes, a mesma história. Sabe de cor cada passo de cada personagem, cada ação, cada movimento. Seria entediante narrar sempre a mesma aventura, se ele não fosse pai, e os pais, bem sabemos, são super-heróis em corpo de gente.

Essa pode ser a história de muitos, privilegiados meninos e meninas que possuem um abrigo para antes de dormir. É, também, a minha história. Eu fui uma dessas crianças apaixonadas por ouvir aquilo que o pai contava. Tinha, como de praxe, a narrativa favorita: a lebre e a tartaruga.

A fábula, tão antiga e difundida, prendia-me de uma maneira inexplicável. Hoje sei que não era exatamente o seu conteúdo que me deixava assombrado e sim o modo com o qual me era apresentado. Hoje sei que o fascínio vinha do modo com o qual o meu contador de histórias favorito narrava.

Dono de uma cadência invejável, meu pai saboreava as palavras e as me entregava numa sonoridade ímpar. Não lia; contava. Contava como quem conversa com um amigo. Contava num ritmo denso, mas sereno. Fazia as vozes dos personagens, dava ênfase nos momentos de êxtase, sussurrava quando havia alguma tensão. Eu o acompanhava, assoberbado, respiração suspensa. Pela minha cabeça passavam todas as cenas, os encontros e desencontros. Até o ponto final eu era todo ouvidos e encantamento. Ele era voz, corpo e gesto a serviço do narrar.

A dedicação empregada por ele fazia surgir seus efeitos. Como toda criança que recebe uma dose de encantamento imaginário, passei a estar, com frequência constante, visitando o “mundo da lua”, como dizem os adultos ou o “refúgio do coração”, nome poético atribuído por mim depois de já bem grande. Essas visitas me tornaram, pouco a pouco, um fazedor de histórias também. Não raro, punha-me a escrever em folhas de ofício dobradas ao meio os meus “livros”. A imaginação fertilizada por aquelas palavras paternas havia me jogado, impreterivelmente, no terreno da livre criação. Foi o princípio de uma das profissões hoje exercidas por mim.

O jogo de quem fala e quem escuta, pai e filho, amigos, enamorados das histórias, durou um longo tempo. Expandia-se por vários contos, fábulas, mas sempre voltava às peripécias de uma lebre espertalhona e uma tartaruga determinada. Talvez estivesse ali um pouco da essência de quem éramos. Certamente se encontrava naquela desventura de Esopo um pouco do que sou hoje: uma tartaruga insistente, obstinada a ganhar a sua corrida, fazendo seu trabalho, acima de tudo.

Hoje, quando percorro escolas, narrando ou dando oficinas para educadores, escuto relatos diferentes. Há muitas pessoas que nunca ouviram histórias com frequência na infância e há inúmeras crianças que também não possuem o hábito em suas residências.

Desabituadas ao contato mais próximo com o universo da fantasia, da imaginação, tornam-se desprovidas de um elemento valioso, fundamental na própria formação humana. Não é um impeditivo de que venham a buscar, futuramente, construir uma boa rede de leituras, vivências, contatos com a palavra. Todavia, o processo se torna, por vezes, mais longo, por falta de referências.

Inexiste um caminho seguro e correto, isso é fato. As diferentes exigências do cotidiano, por vezes, impossibilitam a realização de muitas coisas desejadas. O esforço, porém, é necessário. É em casa que criamos a primeira visão de mundo. É com a família que desenvolvemos as primeiras relações humanas. Povoar essa jornada de histórias, de compartilhamento de ideias e sentimentos, auxilia na compreensão daquilo que somos e seremos.

Sermos pais, mães, tios, padrinhos, madrinhas, ou o que for, contadores de histórias, faz muita diferença. Experimentemos, nem que seja uma vez, dividir o tempo com um pequenino ávido por conhecer novas aventuras. Talvez a viagem imaginária também nos faça.

Aliás, certamente nos fará bem. Afinal, nada melhor do que sair um pouco da órbita de nós mesmos e visitar espaços desconhecidos. Não sei se o Ministério da Saúde recomenda, mas, não custa tentar.

Pennac diria: “é preciso dar de farejar a uma orgia de leitura”. Monteiro afirmou: “um país se faz com homens e livros”. E eu vos digo: “salvem o prazer de ler!” Leia mais: https://www.neipies.com/salvem-a-leitura/

Autor: Gabriel Cavalheiro Tonin

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