Retratos de uma oficina: os pequenos contadores de histórias da Casa Drum

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O certo é que, contar histórias, produz efeitos positivos para todas as idades. Quem sabe não se encontra nessa formação de novos narradores um nicho de estímulo à leitura?

Na cidade de Passo Fundo, norte do Rio Grande do Sul, considerada a capital nacional da literatura, há uma jovem casa de cultura, pioneira em eventos e projetos culturais: a Casa Drum Música e Arte.

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Colaborador desde a sua fundação, fui desafiado a ministrar, no início do estrepitoso ano de 2020, uma oficina de contação de histórias para crianças, dentro das atividades da colônia de férias oferecida pelo espaço. Uma responsabilidade e tanto!

A minha jornada pessoal se confunde com a história do próprio espaço. Crescemos juntos, sendo lá o lugar onde pude expressar as inúmeras ideias e iniciativas na arte da narração oral.

Quando ocorreu a proposta de inserir a contação de histórias aos pequenos, não apenas como um espetáculo “engessado”, com o protagonismo exclusivo nosso, os organizadores, e sim como uma oficina onde os participantes pudessem experimentar a sensação de narra histórias, vislumbrei uma oportunidade única de fazer algo novo. A Casa e eu, mais uma vez, inovaríamos.

Contar histórias é, como expressa Ana Luísa Lacombe, um ato de importância atemporal, válida para qualquer época e situação. As narrativas são essenciais para que se possa compreender o mundo e também a nós mesmos. As histórias são elementos que nos contextualizam, oferecendo significado às coisas e dando sentido para estarmos no mundo[1]. Compreendendo essa ideia, recebemos mais de uma dezena de crianças para três encontros no mês de janeiro de 2020, ávidos para fazer despertar neles a ânsia por se descobrirem por meio do encanto narrativo.

O trabalho não foi fácil de imediato. Agrupar crianças com idades entre cinco e doze anos num mesmo espaço e as sintonizar na mesma direção é uma tarefa de alta exigência. Comandante dessa missão, comecei a oficina fazendo aquilo que mais gosto e melhor faço: contando histórias.

Escolhi a narrativa A macaca que perdeu a banana, conto popular cumulativo que envolve os espectadores em um divertido jogo de repetição. Extasiados com a narrativa, pediram outras. Segui narrando as histórias mais pertinentes, na minha visão, à abrangência do público.

Acalmados os ânimos partimos para um trabalho minucioso: a virada de olho[2]. Essa metáfora, desenvolvida pela professora contadora de histórias Regina Machado é um brilhante exercício para percebermos onde se escondem as múltiplas possibilidades narradoras no nosso cotidiano.

Pegamos objetos múltiplos e passamos a observá-los sob outra ótica. A imaginação fluiu de modo tão vigoroso, a tal ponto que aqueles inanimados utensílios se tornaram, para nós, reis, rainhas, chapéus, brinquedos, cavalos. Percebemos que tudo poderia ganhar vida, com outra roupagem, outras atribuições, desde que deixássemos seguir o curso natural da nossa vivência criadora. Para as crianças aquilo era normal; mal sabiam elas o que estava por vir.

Resolvi, então, dividir a turma em três grupos. Cada um teria como tarefa a criação de uma própria história, seguindo a exposição teórico-prática realizada naquele momento. Havia, portanto, uma clara intenção de inversão do jogo estabelecido até então. Retirava-me do papel de narrador e passava essa incumbência a eles. O protagonismo mudava de mãos; era agora dos pequeninos que, ansiosos, reuniram-se para decidir qual a narrativa trariam ao público. Uma centelha se acendia em seus olhos.

A posterior apresentação das histórias ao “grande público” foi divertida e reveladora. A imaginação fértil de cada grupo era tamanha que criaram narrativas com um sentido tipicamente infantil, baseadas em mistérios, aventuras, quase se aproximando ao contos de fadas e, ainda assim, profundas, com um embasamento crível, etapas bem definidas e finais criativamente elaborados.

O desempenho narrativo, com voz, gestos e olhares tinha certa densidade, ainda que necessitado de retoques. Uma missão, portanto, cumprida com êxito e que deixou tarefas para a aula seguinte: indagar, em casa, acerca das narrativas ouvidas pelos pais, avós, tios, padrinhos ou mesmo uma pesquisa nas histórias que mais chamavam a atenção de cada um. Era o prenúncio de uma semana plena.

As crianças, conforme a incumbência que lhes fora dada, imergiram no fantasioso mundo literário, atuando como coletoras de histórias e leitoras vorazes e curiosas. A partilha das narrativas, no momento adequado, teve dois pontos distintos: em um primeiro plano trabalhamos com o emaranhado de palavras trazido por elas e fomos formando uma rede ampla de histórias, cada qual com seus momentos especiais. Posteriormente colocamos a “mão na massa” e nos encaminhamos para o ato principal: narrar.

Os novos narradores orais, tão pequeninos fisicamente, mas tão grandes em postura e vivência imaginativa, foram expondo, individualmente ou em grupos, os seus modos de narrar. Juntos delineamos os melhores caminhos a serem seguidos, descobrimos novos meios de impactar o público, treinamos corpo e voz, superamos os próprios obstáculos. Um exercício verdadeiramente coletivo, plural, onde não havia mais professor e nem alunos, e sim aprendizes dispostos a partilhar e a aprender. Assim seguimos nesse e no derradeiro encontro, onde a centelha já havia se tornado fogueira incandescente, sempre contando e ansiando por novas e boas histórias.

O término da oficina produziu em mim um efeito melancólico; separar-me das crianças e suas criações não era fácil. Três semanas vivenciando novas experiências juntos era um tempo demasiado grande, com uma entrega tão profunda. Entretanto, ricas foram as considerações captadas por esse trabalho, e tão logo foi possível pensar racionalmente em tudo o que havíamos realizado, tornaram-se nítidas as ideias.

Em primeiro lugar é preciso considerar o caráter inovador desse processo. Normalmente as ações de formação de contadores de histórias são voltadas ao público adulto, não ao infantil. Pela primeira vez naquele espaço, portanto, buscava-se quebrar essa sequência, permitindo que as crianças também vivenciassem a experiência de serem narradores orais e pudessem demonstrar suas habilidades. Em segundo plano, a oficina permitiu constatar que os canais de imaginação e criação das crianças constituem uma fonte infinita de ideias, dotados de uma sensível verdade poética. Um cabedal de ricas possibilidades de trabalho educativo e lúdico não devidamente explorado.

Contudo, o que de mais impactante se pôde depreender desse trabalho foi a capacidade que a proposta teve de induzir as crianças à leitura literária.

Ao colocá-los como protagonistas da própria formação, ou seja, agentes cuja responsabilidade seria, a partir dali, a de trazer e narrar histórias próprias, produziu-se um efeito de aguçamento da curiosidade de conhecer mais, adentrar nos livros (quando já alfabetizados) e descobrir histórias boas para se contar, ou mesmo ouvir narrativas que poderiam ser interessantes perante os colegas. Mais que narradores, tornaram-se pesquisadores, leitores por excelência.

Quais são as lições a serem tiradas dessa experiência? São tantas e conduzem, na verdade, a ainda mais questionamentos. O certo é que, contar histórias, produz efeitos positivos para todas as idades. Quem sabe não se encontra nessa formação de novos narradores um nicho de estímulo à leitura? As possibilidades servem a essa função: instigar.         

Autor: Gabriel Cavalheiro Tonin


[1] LACOMBE, Ana Luísa. Quanta história numa história: relato das experiências de uma contadora de histórias. São Paulo: É Realizações, 2015 – p. 23.

[2] “O olhar que se dirige apenas para a utilidade das coisas é característico da nossa civilização ocidental. Precisamos nos lembrar da percepção flexível que tínhamos quando crianças porque, como adultos, nos habituamos a nos valer apenas desse tipo de olhar funcional, como se fosse o único de que dispomos. (…) Trata-se de uma posição que permite a experiência viva da conversa imaginativa porque não está presa a nenhuma visão preconcebida, fixa, na qual o que estou vendo apenas confirma o que já sei a respeito de determinado objeto. Ao contrário, a posição de flexibilidade imaginativa é antes uma disposição interna para encontrar algo que poderá ser o resultado de uma conversa que revelará qualidades presentes na interação dos elementos presentes naquele instante. Tais elementos são dados pelo objeto, pela minha pessoa e pela trama do jogo proposto nessa interação (MACHADO, 2004, p. 88).

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