A dor se transformou em vida

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“Toda dor pode ser suportada se sobre ela puder ser contada uma história” Hannah Arendt

A vida é construída de retalhos. De dores que geram histórias. De histórias que povoam as pessoas. De pessoas que contam e compartilham um pouco de si mesmas com os semelhantes. De contos reais ou inventados que ajudam a preservar o grande tesouro humano: a memória.

A lenda da mãe preta é assim. Narrativa popular mais conhecida de Passo Fundo, surgiu da boca do povo. Como patrimônio oral de uma comunidade inteira, foi sendo contada e recontada; por vezes esquecida, exaltada em outros momentos. Para não se perder a sua essência, ergueu-se um monumento em sua homenagem. O concreto simbolizando uma história da tradição folclórica, que resiste firme, apesar dos pesares.

Resgatar, recontar, relembrar. É com esse intento que nasceu o projeto A lenda da mãe preta: resgate de uma Passo Fundo viva, pelo escritor e contador de histórias Gabito. A ideia surgiu de um outro projeto, intitulado Conta Gaúcho, que está levando a escolas municipais contações de histórias e exposição de artes visuais com temática regionalista. https://www.neipies.com/a-lenda-da-mae-preta-resgate-de-uma-passo-fundo-viva/

A narrativa, envolta em aspectos históricos, ambientais e até mesmo místicos, traz a saga de Mariana, escrava do Cabo Neves, um dos pioneiros na fundação de Passo Fundo. Mãe preta, dada a sua origem africana, tinha em seu único filho o grande tesouro de sua existência. Certo dia, porém, o menino fugiu para longe. Mariana, como toda mãe em desespero, chorou. Do seu pranto desconsolado nasceu uma fonte. A dor se transformava em vida.

É interessante notar os efeitos que um conto da tradição oral provoca sobre os ouvintes e as mensagens contidas nele. Usando quase sempre de um simbolismo metafórico, reporta consigo lições de vida, dramas, questões humanas essenciais, numa construção onde o mágico e o sobrenatural prevalecem. Essa forma de suportar a própria dor é o que oferece a segurança para continuarmos em pé. Narrar é, portanto, uma forma de sobrevivência diante do caos, do inesperado, do desconhecido.

O caso da mãe preta, cuja dor foi aplacada pelo próprio Cristo, segundo a lenda, exemplifica de maneira clara essa questão. Quando uma lágrima encharca o solo e, unida a um pranto sincero de saudade forma uma fonte, há uma mensagem explícita de resistência e de esperança. É a subversão da lógica, a negação da morte; não é o fim de uma mãe ferida pelo destino e sim o seu renascimento, a sua metamorfose. É também um ato de doação, onde a protagonista abdica de si mesma, afirmando: “e como lembrança quero deixar essa fonte. Assim, quem dela beber sempre retornará a esse local”.

Hoje, o projeto A lenda da mãe preta: resgate de uma Passo Fundo viva, busca recontar e difundir essa história.

Publicada em livro, a narrativa agora não estará apenas na memória de poucos, mas na mãos de muitos. Circulará entre jovens e adultos, será objeto de estudos e debates; há de se sentir orgulho dela. Pois a oralidade popular nada mais é do que um ato de protesto contra o fim. Quem relembra o percurso de seus antepassados, não se perde jamais. Quem conta suas histórias não morre nunca.

Curiosidades sobre os monumentos das duas mães de Passo Fundo: Assista: https://youtu.be/O7m4FSBp_sw?t=108

Fotos da Praça da Mãe Preta: obtidas do vídeo Nexjor UPF: https://youtu.be/O7m4FSBp_sw?t=91

Autor: Gabriel Cavalheiro Tonin

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