Três pandemias virtuais e uma real

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Um poderoso e pequeno vírus mostrou que há algo muito mais poderoso e amedrontador a se enfrentar: a luta pela vida saudável, tão medonho como as injustiças sociais e as guerras convencionais.

O empregado não saiu pro seu trabalho
pois sabia que o patrão também não tava lá.
Dona de casa não saiu pra comprar pão
pois sabia que o padeiro também não tava lá
E o guarda não saiu para prender
pois sabia que o ladrão, também não tava lá
E o ladrão não saiu para roubar
pois sabia que não ia ter onde gastar
. (Raul Seixas)

Nesse tempo de recolhimento compulsório da maioria da população mundial devido à pandemia do novo Coronavírus Covid-19, consolo-me, pois até o momento, ainda não tinha presenciado grandes tragédias que resultaram na morte de milhões de pessoas, como aconteceu nas I e II Guerras Mundiais, por exemplo. Pois é chegado o tempo.

Milhares de pessoas em todo o mundo estão perdendo a vida, levando-as a desejar ardentemente uma vacina salvadora. E o pior é que, por enquanto, ainda não há vacinas suficientes para contê-la o mais cedo possível, bem como ninguém sabe ao certo o que virá pela frente sendo que, no Brasil, já há quase 400 mil vítimas fatais (e sem previsão de número de vítimas até o final da pandemia) e outros tantos sequelados.

Pergunta-se então quais serão as consequências futuras da pandemia da Covid-19 no âmbito da saúde pública, da economia e principalmente no comportamento social?   

Os leitores podem não acreditar, mas como professor de Literatura, tive o privilégio de ler e viver três pandemias, isto é, sentir como três obras ficcionais abordaram as pestes em tempos passados, as quais também vitimaram milhões de pessoas.

A primeira, Decamerão, escrita pelo poeta italiano Boccaccio, em 1350. A segunda, A Peste, de Albert Camus, escrita em 1947; a terceira, o romance Ensaio sobre a Cegueira, escrita em 1995 pelo romancista português José Saramago.

Nas três experiências de leitura pude confirmar a tese de Heráclito de Éfeso de que “a guerra é a mãe de todas as coisas”, pois contém, pelo menos, a duplicidade, isto é, a vida e a morte, a doença e a saúde, o bem e o mal, o trágico e o heroico, o vírus e a ciência, o medo e a coragem, dentre outras antíteses.

Atualmente, em tempos da pandemia Covid-19, estamos em plena guerra, pois a letalidade poderá chegar a centenas de milhares de vítimas. Soma-se a isso o desemprego, a fome, o isolamento social, os hospitais superlotados, as aflições e as doenças de ordem psicológica, dentre outros efeitos maléficos que virão num futuro bem próximo.

Se na guerra convencional a espera é pela paz, na pandemia do Coronavírus a espera é pelas vacinas salvíficas, que já se constituem outra guerra de ordem política e econômica.   

Nessa busca, há muitos laboratórios na corrida para proteger os humanos contra um vírus tão pequeno, mas tão letal. Isso é a pandemia real. Resta saber quando terminarão as outras guerras pela posse, autoria e distribuição das vacinas.    

No que se refere às pandemias ficcionais, digo literárias, a obra Decamerão, de Boccaccio, redigido por volta de 1350, inaugura a prosa de ficção ocidental, sendo a pioneiro a reunir múltiplos contos para tecer uma estrutura complexa na forma de romance e novela. Nesse sentido, funda a tradição romanesca que se estende até os dias atuais e estabelece um modelo para o que viria a ser o conto ficcional e, mais tarde, a novela e o romance.

A obra junta cem narrativas contadas por sete damas e três cavalheiros que, para fugir da peste negra, que afligia os habitantes da cidade italiana de Florença, recolhem-se para passar o tempo e celebrar a vida, narrando histórias uns aos outros para ganhar tempo e para fugir do isolamento social. A história parece se repetir com diferenças, sendo que, naquele tempo, a era industrial ainda estava longe da modernidade atual, predominando o mercantilismo. 

Por seu lado, em tempo de Coronavírus – Covid 19, exatamente na segunda década do Século XXI, mais precisamente entre os 2019 e 2020, explode a pandemia na China, espalhando-se à Itália, Espanha, Inglaterra, EUA, Portugal, Brasil, dentre outros países. O fato é que na Itália, novamente na Lombardia, cuja capital é Milão, cidade industrial, que, há pouco, a doença vitimou milhares, pois seu prefeito menosprezou a expansão da doença para ter o agrado dos empresários. Porém, a doença matou milhares de pessoas. Vê-se claramente o desdobramento da história com suas semelhanças e diferenças. 

A obra ficcional A Peste, de Albert Camus, foi publicada em 1947, um pouco após o fim da Segunda Guerra Mundial.

O romance conta a história da chegada de uma epidemia na cidade argelina de Orã. A personagem principal é o médico Rieux, que combate a doença até o momento em que ela se dissipa ceifando a vida de muita gente.

O narrador descreve como a população reage, indo da apatia à ação, bem como alguns profissionais se expõem na linha de frente para enfrentar e eliminar a peste. Denuncia também que há oportunistas e aproveitadores, como um personagem que lucra com um mercado paralelo de produtos. Num primeiro momento, as autoridades insistem em esconder a doença, fato que Camus veria de forma crítica, no sentido de sempre nomear as coisas ao público. Por fim, há na obra o cuidado de se mostrar as coisas como elas são de fato. O livro fala que existem problemas de abstração, como a desinformação e a abstração, as quais geram histeria e comportamentos levianos ou xenofóbicos, como temos visto no Brasil.

 Em A Peste, o número de mortes é anunciado diariamente numa rádio. Por outro lado, o narrador descreve algumas das mortes, o que faz os leitores senti-las de uma forma mais direta. Por coincidência, o que se verifica na imprensa brasileira é a divulgação do número de óbitos diários, que é informado diariamente pelos consórcios de televisão, rádios, jornais na forma de gráficos e bandeiras coloridas: branca, preta, azul, laranja e vermelha.   

Por seu turno, o romance Ensaio sobre a Cegueira, publicado em 1995 pelo escritor português José Saramago, narra a história da epidemia de cegueira branca, a qual se espalha por uma cidade e vai acometendo um por um de seus habitantes, trazendo o caos e abalando as estruturas de uma sociedade civilizada. É um romance que não apela pelo engraçado e nem ao religioso, tanto que não há nele espaço à comicidade e à piedade. É uma obra que, mesmo sendo uma ficção, é bem detalhista e realista.

Contrastando com a cegueira preta, a cegueira branca é de natureza metafórica, pois ironiza a cegueira moderna, a qual não vê o óbvio, isto é, as injustiças, a fome, a corrupção, a falta de ética, a violência contra as mulheres, negros, índios e contra diferentes gêneros. O texto não questiona Deus, nem os governos, mas questiona o sistema de vida que rege as pessoas no cotidiano moderno e urbano que, feitas semáforos, sinalizam quando avançar ou parar, e que, por isso, confina as pessoas nos manicômios dos afetados pela falta de visão daquela visão, isto é, pela cegueira branca.  A obra também foi transposta para o cinema e o autor ganhou o Prêmio Nobel de Literatura em 1998.

Parece que Saramago, alinhando-se aos antecessores Boccaccio e Camus, profetiza a Pandemia do Covid-19 para esse início do Terceiro Milênio.Como “a guerra é a mãe de todas as coisas”, a pandemia do Covid-19, está deixando suas indeléveis marcas tanto de caráter positivo, quanto negativo.

De negativo são, até o momento, as mais de 02 milhões de óbitos no mundo e as quase 250 mil no Brasil; a fome e o desemprego; o isolamento social; a corrução na compra e distribuição das verbas ao combate do Coronavírus; a suspensão das atividades escolares, religiosas, culturais, esportivas e recreativas; as patologias de ordem física e psicológica, dentre outras, que deixarão cicatrizes por décadas.

Por seu turno, a pós-pandemia Covid-19, trará benefícios capazes de qualificar os padrões de higiene, a convivência, a solidariedade e a ética, sem contar com os benefícios de ordem virtual e de enriquecimento linguístico. Mudarão o sistema de moeda corrente, o controle de doenças endêmicas, o sistema de ensino, educação, transporte, saúde, esportes, o emprego, a economia e a segurança.

Durante a Pandemia, por exemplo, já foram incorporadas à Língua Portuguesa inúmeros vocábulos, os quais se tornarão estrangeirismos em pouco tempo, tanto que os brasileiros comuns já sabem o que significam os termos ingleses lockdown, lives, delivery, home office, home school, loungs, drive thru, upgrade, hand over, hand in, e assim por diante.  Quem sobrevir ao Covid-19 logo verá!

Enfim, a guerra contra a Covid-19, ou Coronavírus, traz em seu bojo, elementos positivos e negativos que, quer queira, quer não, profetizam que a humanidade deverá dar uma guinada extraordinária a partir desse início do Terceiro Milênio.

Um poderoso e pequeno vírus mostrou que há algo muito mais poderoso e amedrontador a se enfrentar: a luta pela vida saudável. Este vírus é tão medonho como as injustiças sociais e as guerras convencionais.

Ah, se pudéssemos escolher as vacinas contra a Covid-19! Que tal Sinovac? AstraZeneca?  Coronavac?  Pfizer-BioNTech?  Oxford?  Sputinik 5?

Uni, Duni, Tê…

Esta é uma edição revisada de publicação originalmente publicada em 01/08/2020. Link da versão inicial.

Autor: Eládio Weschenfelder     

Edição: Alex Rosset  

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