Nos limites da biosfera

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Deixa o mato crescer em paz
Deixa o mato crescer
Deixa o mato

Não quero fogo, quero água (Deixa o mato crescer em paz)
Não quero fogo, quero água (Deixa o mato crescer)

(…)

Deixa o tatu-bola no lugar
Deixa a capivara atravessar
Deixa a anta cruzar o ribeirão
Deixa o índio vivo no sertão
Deixa o índio vivo nu
Deixa o índio vivo
Deixa o índio

(…)

Deixa a onça viva na floresta
Deixa o peixe n’água que é uma festa
Deixa o índio vivo
Deixa o índio
Deixa (Deixa)

(Tom Jobim, Borzeguim)

Nosso antropocentrismo dominador, cada um sabe, tem um jeito próprio: o planeta já aqueceu 1,1°C desde a era pré-industrial (1850-1900), dos quais 0,2°C ocorreu no último quinquênio, entre 2011 e 2015 (Organização Meteorológica Mundial – OMM, 2019); desde 1990, aponta um amplo relatório da Organização das Nações Unidas (ONU), a Terra perdeu 28,7 milhões de hectares de florestas que ajudam a absorver as emissões nocivas de dióxido de carbono da atmosfera; e, agora mesmo, 1 milhão de espécies de plantas e animais estão em risco de extinção.

Claramente determinada pela ação antrópica, não há como negar: seguimos produzindo uma lista de riscos ecológicos já extensa e em avançado curso. E para começo de conversa, vale lembrar: extinção em massa de espécies, erosão de biodiversidade, fragmentação de habitats (especialmente em zonas tropicais), poluição químico-industrial1, aniquilação biológica, destruição da camada de ozônio, emissões de carbono, atmosfera poluída, ciclo de chuvas irregulares, crescimento do consumo e da descartabilidade, planeta plastificado2.

Num termo mais decisivo, sejamos francos: distante de tornar o nosso modo de vida sustentável, e com claras dificuldades de atingirmos uma vivência socioambiental segura, tentamos nos adaptar diante de um grave colapso sistêmico global. Mais concretamente, o agir humano sem compromisso ambiental, herança da modernidade, elimina qualquer dúvida consistente: em toda a nossa história, nunca havíamos provocado significativas alterações do ecossistema, tampouco havíamos agredido a natureza com agrotóxicos e com uma agricultura industrial poluidora.

Ponto de partida, agora mesmo, diante de um meio ambiente empobrecido biologicamente falando e de ciclos ecológicos do planeta (o ciclo da água, do carbono, do oxigênio, do nitrogênio) cada vez mais afrontados pelo antropocentrismo dominador, estamos batendo no teto da capacidade biofísica do sistema terrestre, próximos de exceder os limites da natureza.

De toda forma, convém esclarecer: nunca, antes, estivemos tão perto de matar as zonas oceânicas por excesso de nitrogênio3. Com efeito, jamais havíamos abalado os alicerces de todo o sistema vida; e nem mesmo destruído espaços vitais da natureza, como estamos fazendo agora, a ponto de transformar boa parte da estrutura geológica (a face) da Terra. Nesse contexto, um terço das terras aráveis do mundo estão improdutivas. Foi constatado: três quartos do ambiente terrestre e 66% do ambiente marinho sofreram severas modificações, quer dizer, consolidou-se, na prática, enorme déficit ecológico global.

Serve de exemplo: de 1980 para cá, metade da vida selvagem4 já morreu. De forma ilegal e criminosa – e o caso da Amazônia, a maior fronteira de recursos naturais que o planeta concebeu, é altamente significativo -, mais de 80 mil quilômetros quadrados de floresta desaparecerem de nosso campo de visão.

Seja como for, isso nos ajuda a entender o momento atual. No ponto ecologicamente insustentável que nos encontramos, em meio às acirradas mudanças climáticas e a mais gritante perda de biodiversidade, “maldições gêmeas”, como gosta de dizer a consagrada primatologista britânica Jane Goodall, pesa-nos admitir que nunca derrubamos tantas árvores e queimamos tantas áreas florestais (onde vivem 80% de todos os animais, plantas e insetos, e a maior parte encontra-se ameaçada) como nesse momento.

Triste constatação, parece mesmo, de facto, que nos especializamos em invadir os hospedeiros naturais e em acumular destruição das coisas naturais. Nossos mares continuam sobreexplorados pela sobrepesca que, agora mesmo, comprometem agora mesmo 55% dos recifes do mundo. Também em estado crítico, os mananciais da Terra (superficiais e subterrâneas), num nível cada vez mais degradado, secam em velocidade assustadora. Desde os anos 1960, o número de áreas marinhas pobres em oxigênio, segundo o Programa da ONU para o Meio Ambiente (Unep, na sigla em inglês), vem dobrando a cada década5.

De modo próprio, fazendo breve resumo, seja no mundo das águas ou no ambiente terrestre, nenhuma área conhecida está a salvo das consequências de nossas ações produtoras de complexos problemas de degradação do planeta.

Resultado: pela primeira vez estamos nos limites da biosfera.

*

E tem mais: Nessa sociedade de dominação, a esta altura, estamos conscientes – ou ao menos deveríamos estar – de que o ar que respiramos6 (muito mais tóxico) e as nascentes, devido à falta de práticas agrícolas conservacionistas, continuam bastante poluídos e contaminadas. Especialmente no mundo das águas, não é segredo, diante de muitos outros problemas contemporâneos, formamos agora imensas ilhas de plástico. São enormes bolsões de lixo antropogênico no mar. A maior delas, e de longe a mais assustadora, é a Grande Ilha de Lixo do Pacífico, localizada na parte norte do Oceano Pacífico, aproximadamente uma área de 1,6 milhões de quilômetros quadrados.

Água poluída, resumindo em termos bastante óbvios, é reconhecido sinônimo de morte precoce. O Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) e a Organização Mundial de Saúde (OMS), apontam que 1 em cada 3 pessoas no mundo não tem acesso à água potável; na verdade, nem chegam perto da possibilidade de consumir água tratada.

Moral da história: nos países pobres, a ONU estima que o não acesso à água potável, notadamente em ambientes insalubres, responde por 80% das mortes.

Em todo caso, falamos aqui de modo direto sobre riscos e ameaças cada vez mais insustentáveis que abalam a saúde e a segurança humanas. Esses riscos e ameaças, cabe breve esclarecimento, não são de agora, vem de longe.

Desde 1970 para cá, os cientistas confirmam, dobramos nossa pegada ecológica. Isso quer dizer que a quantidade de natureza que a humanidade faz uso para manter seu próprio (e insustentável) estilo de vida já excede em 50% a capacidade de regeneração e absorção do planeta. Na esteira desse referenciado problema estrutural, asemissões de gases de efeito estufa saíram de 1,28 ppm (partes por milhão), em 1970, para 2,4 ppm, na última década.

Igualmente crítico, nunca havíamos emitido tantos gases de efeito estufa num ritmo tão declaradamente acelerado.7 Nunca, antes, havíamos gerado os mais variados problemas e descompassos socioambientais que indubitavelmente recaem sobre nós mesmos. A começar pela informação relevante do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, IPCC, destacando que, desde a metade do século passado, 1950, os eventos extremos (fenômenos climáticos e/ou meteorológicos fora dos níveis considerados normais) aumentaram de frequência na maioria das áreas terrestres conhecidas do planeta.

Essencialmente, a questão de fundo, para todos os efeitos, está cada vez mais clara: as marcas humanas, ou reflexos de nossas atividades econômicas produtivas, incluindo, é claro, o uso irresponsável de recursos hídricos e a agricultura insustentável dos últimos séculos, contadas desde o início da Revolução Industrial, 1750, até os dias de hoje, nos levam ao impasse, ao limiar do perigo, uma vez que impactam tanto no seio da vida moderna quanto no oikos (ambiente habitado)que nos abriga.

E isso tudo, a rigor, precisa ficar muito claro: pela ação antrópica, passamos a pressionar com muito mais intensidade os recursos naturais, afetando diretamente a vida de plantas, animais e vegetais. Razão pela qual, o que temos feito até aqui, em detrimento da biodiversidade, deixa em evidência a nossa completa falta de responsabilidade socioambiental, referência característica do antropocentrismo dominador.

Tempos sombrios em termos de futuro ecológico, a poluição do ar (quinto fator principal de risco de morte no mundo), sempre um problema global que tantas doenças lega à humanidade, responde atualmente por 16% das mortes no mundo todo. E para continuar falando aqui de outros tipos de poluição, vale saber que, desse momento atual até por volta de 2050, se não mudarmos nosso insustentável estilo de vida consumista, muito provavelmente haverá mais lixo plástico do que peixes em nossos oceanos.

Todavia, certo mesmo é que os oceanos, os maiores ecossistemas conhecidos, além de receberem todos os anos mais de 8 milhões de toneladas de plásticos, num nível de poluição marinha jamais visto antes, ainda seguem sobrecarregados de carbono, poluição bastante danosa que ameaça o equilíbrio trófico.

Estimativas indicam que todos os anos, em várias partes do mundo, geramos uma montanha de resíduos sólidos urbanos. Uma parte vai para o lixo e aterros, outra parte termina no mundo das águas. Em geral, fala-se em mais de 1,2 quilos per capita ao dia, em média, ou mais de 2 bilhões de toneladas de lixo por ano, em todo o mundo.

Em geral, enquanto a tríade petróleo-carvão-gás mantém de pé o atual e nocivo padrão energético e faz a economia global rodar sempre com mais força e dinamismo, ainda mais longe nos encontramos de equilibrar as três dimensões que andam juntas: ambiental, econômica, social.

Situação em clara evidência, agora mesmo está em avançado curso uma gravíssima crise de recursos hídricos – a crise da água no planeta, ou, didaticamente falando, o problema da escassez de água potável, um entre os dez maiores impactos que o planeta enfrenta.

Nesse pormenor, enquanto a ONU alerta que 25% da população mundial não tem condições mínimas de beber água potável, estudo publicado em Science Avances deixa claro que 71% da população mundial sofre por um mês a cada ano com a falta de acesso à água potável.

Triste constatação, lembremos que, no mundo todo, mais de 2 bilhões de indivíduos sequer consome água potável, faz higiene adequada ou ingere alimentos saudáveis, livres de agrotóxicos.

Em última análise, num levantamento global, 4,4 bilhões de pessoas não conseguem alcançar diariamente saneamento básico gerido de forma segura. Desses, seguindo dados apontados pelo Fundo de Emergência Internacional para Crianças das Nações Unidas (UNICEF), 892 milhões defecam ao ar livre. Em face de tais circunstâncias, a mesma Unicef, em conjunto com a Organização Mundial de Saúde (OMS), aponta que mais de 1 milhão de crianças menores de cinco anos morrem, todos os anos, devido a diarreia, a segunda doença que mais faz vítimas entre as crianças, perdendo apenas para a pneumonia.

De toda sorte, se estamos longe de pensar na desejada possibilidade de equilíbrio planetário, estamos perto, bem perto, de observar o agravamento das condições socioambientais do mundo que habitamos e que seguimos marcando a tragédia ecológica desses tempos de incertezas.

Em uma primeira aproximação, sempre a partir do agir humano, há quem afirme que, à luz do avanço do capitalismo moderno, o quadro de adversidades ambientais está bem definido. “No Antropoceno”, escreve John Bellamy Foster, “o capitalismo está criando fissuras antropogênicas nas espécies, nos ecossistemas e na atmosfera, gerando uma crise socioecológica”.

Realidade inquestionável, onde o homem consegue marcar presença, os ambientes físico, químico e biológico tem sido severamente modificados. De igual forma, ao justificar-se o desempenho da economia de produção em detrimento da preservação ecológica e da proteção ambiental, o resultado está à vista de todos: profunda alteração no âmbito do meio ambiente, seja no rico mundo das águas, seja no mundo das terras e solos conhecidos. Sendo curto na resposta final, isso implica dizer que estamos deixando às próximas gerações um planeta vulnerável do ponto de vista socioambiental.

Notas:

(1) Vale notar: especialmente a produção de produtos químicos, seguindo de perto à análise do Centro de Resiliência de Estocolmo, aumentou 50 vezes, desde a metade exata do século passado.

(2) Desde meados do século passado, estima-se que tenha sido produzido 8,9 bilhões de toneladas de plástico, sendo que dois terços desse total, 6,3 bilhões de toneladas, viraram lixo.

(3) Estima-se, para todos os efeitos, que em todo o mundo sejam usadas, a cada ano, 120 milhões de toneladas de nitrogênio.

(4) No detalhe: não se trata apenas dos animais não domesticados, mas também das plantas e de outros organismos que crescem e vivem em ambientes dito selvagens.

(5) Os especialistas falam em, pelo menos, 700 áreas em todo o mundo em que o oxigênio está em níveis declaradamente perigosos.

(6) O alerta da OMS causa perplexidade: cerca de 99% da população mundial respira ar de má qualidade. Foram observados 6 mil pontos ao redor do mundo. Regiões como leste do Mediterrâneo e do Sudeste asiático, seguidas pelo continente africano, apresentaram níveis da qualidade do ar mais comprometidos. Conforme voltaremos a mencionar, 7 milhões de mortes evitáveis, todos os anos, são devidos à poluição do ar.

(7) A saber: em nosso caso em particular, já no final da década de 1980, o Brasil aparece no ranking das nações que mais emitem gases de efeito estufa.

Autor: Marcus Eduardo de Oliveira

Autor de Civilização em Desajuste com os Limites Planetários, (CRV, 2018), entre outros.prof.marcuseduardo@bol.com.br

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