Tempos de ebulição

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Segundo vários analistas, estamos avançando a passos largos na era do antropoceno. É o ser humano no centro de sua autodestruição.

A água é formada por dois átomos de hidrogênio e um de oxigênio (H2O). Aos 0ºC, congela; aos 100ºC, entra em ebulição. Cada substância química tem seu próprio ponto de ebulição, em que passa do estado líquido para o gasoso. Esse fenômeno da natureza pode servir de metáfora elucidativa do contexto presente em que vive a humanidade. Tempos de profundas, intensas, extensas e complexas metamorfoses.

Conforme analisa o sociólogo Zygmunt Bauman, são marcadamente tempos líquidos e efêmeros. Tempus fugit e galopantes. E são também tempos em ebulição.

Mas, o que é o tempo? Para alguns, ele é o senhor da história. Para outros, é remédio. Outros ainda o tem como o melhor professor. Porém, ele flui independente da nossa teimosia, rebeldia ou reprovação. É implacável, indelével e irreversível.

Contra o tempo não adianta lutar, pois que a batalha está perdida já antes de começar. Com o tempo é melhor ir a favor. Usufruir do seu favor e do seu valor. Querer defini-lo é perda de tempo, até porque é melhor vivê-lo do que tentar definir o que nos define. Entretanto, é altamente necessário refletir sobre ele. Nisso os profetas e os poetas são especialistas.  

No poema “O tempo”, Mário Quintana exprime com fineza a lógica temporal. Assim enuncia: “A vida é o dever que nós trouxemos para fazer em casa. Quando se vê, já são seis horas! Quando se vê, já é sexta-feira! Quando se vê, já é natal…  Quando se vê, já terminou o ano… Quando se vê perdemos o amor da nossa vida. Quando se vê passaram 50 anos! Agora é tarde demais para ser reprovado… Se me fosse dado um dia, outra oportunidade, eu nem olhava o relógio…”.

Assista ao vídeo: https://youtu.be/JK9SsetuLzE?t=17

Há o tempo cronológico, o psicológico e o ontológico; o tempo da feliz espera, o tempo do amor e o tempo da dor. Também o tempo da fusão e da ebulição. Já advertia o autor do livro do Eclesiastes (3,1-8) de que há tempo para tudo debaixo do céu. Todavia, em tempos como o nosso, parece prevalecer as situações de destruição. Muitas vezes tem-se a impressão de que “debaixo do céu” sobressai o purgatório com amostras vigorosas de inferno. Aquele de Dante e outros que são criados e mantidos pelos impulsos e instintos desumanos e desumanizadores.

Aqui e acolá, alguém adverte para não perder tempo. Para aproveitar bem a vida. Mas, em que consiste essa recomendação? Ela pode significar coisas bem distintas. Pode representar um estímulo ao fruir, ao consumir, ao tirar proveito prazeroso sem se importar com o sofrimento dos outros. Por outro lado, pode denotar atitude de cuidado a quem necessita, busca de crescimento na espiritualidade, no conhecimento, na solidariedade e no processo humanizatório.

Estamos dentro de uma “grande engrenagem”, condicionados por um tempo histórico e um espaço geográfico. Essa engrenagem, toda ela, está em pleno aquecimento. Não apenas em metamorfose, em rito veloz, mas também em efervescência.

Tal parábola pode aludir às questões ambientais, sociais, econômicas, políticas, culturais, religiosas, etc. Segundo vários analistas, estamos avançando a passos largos na era do antropoceno. É o ser humano no centro de sua autodestruição.

A termodinâmica não é suficiente para nos ajudar a entender a complexidade da ebulição societária e planetária que estamos experimentando. Necessário será o recurso da psicologia, da psicanálise, da psiquiatria, da teologia, da sociologia, da antropologia e de outras tantas ciências. Mas, não basta entender. É preciso agir. Quando a casa está queimando, não é suficiente identificar a causa. Será necessário utilizar com rapidez e de forma adequada os recursos para combater o incêndio. E por mais que se acelere a contenção do fogo, algum dano sempre haverá.

O globo aquece e a sociedade ferve. Nesse ambiente (chamado de meio), muitos sucumbem inteiramente. Quando não vêm a óbito, resultam marcados por sequelas. Não raro, são graves, vitalícias e irreparáveis. Ocorre que é tempo de fome, de agonia, de ódio, de violência, de pandemia, de múltiplas outras doenças; tempo de política malfadada e de necrófila economia. Tempo de corrosão das bases democráticas, dos princípios republicanos (res publica = coisa pública), de ataques à educação humanista e de degradação das belezas naturais.

E a 26ª Conferência do Clima da Organização das Nações Unidas (COP26) conseguirá chamar a atenção da humanidade para a gravidade do tempo presente?

O texto final da COP26, encerrada dia 13 de novembro, defende a redução gradativa do uso de combustíveis fósseis como forma de conter o avanço do aquecimento global. Embora os quase 200 países membros da ONU tenham assinado o documento, ele está longe de ser uma unanimidade. E entre a decisão e a concretização, geralmente há muita defasagem, muito faz de conta, muita insensibilidade com os danos impostos aos outros das presentes e das futuras gerações.

Em tempos de aquecimento e de ebulição, não há tempo a perder! O que, quem e como fazer?

Na abertura da COP26, o Secretário Geral da ONU, António Guterres, reafirmou que “é hora de dizer chega. Chega de brutalizar a biodiversidade. Chega de matarmos com carbono. Chega de tratar a natureza como um banheiro. Chega de queimar, perfurar e minerar cada vez mais fundo. Estamos cavando nossas próprias covas”. Pensamento complementado por Boris Johnson, ministro da Inglaterra, ao afirmar que “quanto mais demorarmos para agir, pior fica” e, que, “se falharmos, não seremos perdoados”, especialmente pela própria natureza. Leia mais: https://www.neipies.com/crises-climaticas-e-educacao-ambiental/

Autor: Dirceu Benincá

Edição: Alex Rosset

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