Se perdermos, sequer os mortos estarão a salvo

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Os estúpidos poderão se encarregar de conduzir a humanidade ao caos, não sem antes levar consigo as memórias e a impotência dos que são/foram vencidos pelo embestamento ético e estético.

A força da frase de Walter Benjamin (acima) dispensaria qualquer comentário, pois já se insinua advertida de análises obsequiosas. Considero, por oportuno, que podemos e devemos atualizá-la. Tomarei por pena um dos modos possíveis de interpretação, alargada na direção das vidas desperdiçadas.

Vidas desperdiçadas: o que seriam vidas desperdiçadas? Sem a pretensão de criar uma categoria ou domesticar palavras com vistas a estabelecer uma definição teórica, apresento alguns contextos existenciais que seriam, a meu ver, de vidas desperdiçadas.

A primeira delas, as vidas que não são passíveis de luto. Poderíamos dizer, as vidas que não são choradas porque nem sequer sabidas como existentes. Ou mesmo somadas ao repertório da métrica, não fazem diferença. Quantas delas nós conhecemos? Seus rostos e sonhos, suas continuidades, para onde seguiram ou seguirão? Até ouvimos dizer, mas como um eco tardio do inevitável. Muitas delas ganham geografia na pós-vida, naquele lugar da calculabilidade; suas memórias retrucadas pelo esquecimento produzido ou reverberado pelos narradores opulentos.

A segunda (por didatismo apresento uma ordem) são as vidas desperdiçadas dos “diferentes”. Há um modelo reiteradamente apresentado como sendo o normal, o certo, o preferível. Quantas pessoas “jogamos” para dentro dessa categoria, impingindo toda sorte de maneiras de qualificá-las, enredando suas vidas no espasmo do destino? Quantas vezes nos pegamos sentindo pena, raiva ou ódio dos que não se enquadram nos padrões aceitáveis. Quem é este que aceita? Quem define os critérios de aceitação? Em que se sustentam os recortes epistemológicos e morais que classificam os diferentes modos de se ser?

E por mais paradoxal que possa parecer, penso que há uma terceira instância de vida desperdiçada, que são as vidas das pessoas logradas pelo destino. Não se trata de corroborar a tese de que não temos qualquer agência sobre nós e a realidade, mas de reconhecer a assombrosa ambiência a que são entregues algumas vidas, como se nascessem no lugar e na hora errada, como um estorvo do tempo. Claro que poderíamos dizer que a definição de hora certa ou errada se abre pelo interior de uma construção semântica e situada, infelizmente, muitos são cativos desse acaso que se atravessa e inabilita a possibilidade. Sofro por reconhecer a trágica condição humana: têm coisas que estão fora do nosso alcance e ou se distanciaram de forma irrecuperável.

A palavra final, no entanto, se estica como gesto de reconhecimento de que a absoluta maioria das vidas desperdiçadas depende de um projeto que foi se constituindo e tendo por base uma racionalidade predatória e escorchante. Lógica avessa ao outro, ao diverso, à vida. Os estúpidos poderão se encarregar de conduzir a humanidade ao caos, não sem antes levar consigo as memórias e a impotência dos que são/foram vencidos pelo embestamento ético e estético.

Até onde vai nossa capacidade de suportabilidade para tanta dor e violência? Descubra mais: https://www.neipies.com/os-limites-da-suportabilidade/

Autora: Marli Silveira

Edição: A.R.

1 COMENTÁRIO

  1. Muito verdadeiro , profundo e interessante o texto .
    É de se pensar o lugar em que eu estou neste contexto…
    Será que não cabe a mim dar um empurrãozinho para desestabilizar
    este caos angustiante ???

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