Livro físico ou digital? Uma breve discussão sobre a leitura…

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A leitura é uma forma de acesso ao mundo, talvez a mais importante e implicada, mas deve se inscrever dentro de um repertório de reiterada humanização, como compromisso inarredável pela vida, pela formação, pelo esforço que constrange a violência, a estupidez e as garras dos que colonizam nossas geografias afetivas.

Particularmente acredito que nada substitui a relação direta com o livro físico, com o fato de podermos manipular, folhear, riscar, sentir o cheiro e a espessura, o “peso” dessa experiência. Por outro lado, não se pode negar que as tecnologias viabilizaram o acesso a livros, artigos e materiais que era inimaginável na virada do século XXI.

Podemos perguntar se se trata da mesma experiência, se a leitura do livro físico é diversa da leitura do (no) livro digital, por exemplo. Também podemos perguntar se é assim tão comumente dizer que as tecnologias ampliaram o acesso, pois temos plena consciência que há uma discrepância absurda nas realidades brasileiras, e mesmo os que têm acesso, não frequentam a “mesma” época da invenção.

Estamos vivendo e experimentando temporalidades distintas desde quando se inventou a primeira tecnologia, exponencialmente ampliadas no nosso tempo.

Creio que respondo melhor a pergunta dizendo que as experiências são distintas e que há um tipo de relação diversa quando se lê uma obra que pegamos com as mãos e uma obra que visualizamos. Há uma demora própria em cada uma das experiências e que a sociedade contemporânea tem optado pela pressa. Corremos, descartamos, destruímos.

O livro inscreve uma métrica de lentidão, é como um convite a um reolhar, reler, cuidar, estender sentidos e horizontes. Quem não se demora, sonha menos, enxerga menos, sente menos.

O mundo da técnica é o mundo da pressa, da produtividade, do empreendedorismo de si mesmo. Somos continuamente interpelados e atravessados por valores e sentidos que nos afastam do “alargamento” de nós mesmos. Tudo é subsumido ao ritmo do cálculo, da racionalidade e deste desespero por se reinventar.

Afloram pessoas que querem nos ensinar como fazer “tudo melhor”, em menos tempo, esforço e poesia. Há um coach de plantão em cada resto dessa maquinaria neoliberal que nos engole.

Portanto, não se trata apenas de bons professores, famílias comprometidas, alunos interessados, realização de eventos e projetos, depende de escolhas de horizontes para que o mundo se oriente por outros caminhos e que sejam de fato mais humanos e gentis às diferentes formas de vidas, sonhos e existências. Mas há um “enquanto”, ou seja, precisamos continuar fazendo, promovendo e sonhando da altura do mundo em que vivemos, sendo indispensável o cultivo da leitura e das demoras que ocasionam e ocasionarão seres humanos sentidos de outros.

Nada substitui os tantos mundos que se dão pelas páginas dos livros acolhidas das melhores esperanças.

Não creio que podemos afirmar que existe uma relação direta entre ler e amplidão humana, aqui entendida no sentido ético, de nos tornarmos pessoas melhores porque lemos. A história está carregada de exemplos de pessoas que eram (são) grandes leitores, com formação invejável, mas posicionadas do lado da barbárie. Por outro lado, é pouco provável que nossos melhores sonhadores não sejam grandes leitores.

O que quero dizer é que a leitura é uma forma de acesso ao mundo, talvez a mais importante e implicada, mas deve se inscrever dentro de um repertório de reiterada humanização, como compromisso inarredável pela vida, pela formação, pelo esforço que constrange a violência, a estupidez e as garras dos que colonizam nossas geografias afetivas.

A leitura precisa necessariamente vir acompanhada de implicação ética, como um esforço contínuo e coletivo para que a estupidez não seja reconhecida como posição, mas como negação de um mundo melhor. Ler um livro, ler o mundo, ler a vida. A leitura é um ato solitário, mas que se inscreve como um gesto infinitamente alargado, capaz de constituir indicações que podem ser experimentadas por cada um e todos nós.

Ler talvez seja a maneira mais poética e humana de se imaginar melhor.

Autora: Marli Silveira. Poeta e escritora. Acadêmica da Academia Rio-grandense de Letras. Também escreveu crônica “O tempo”, publicada no site: https://www.neipies.com/o-tempo/

Edição: A. R.

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