Os limites da suportabilidade

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Até onde vai nossa capacidade de suportabilidade para tanta dor e violência?

O fotógrafo Kevin Carter, ganhador do Pulitzer de 94 pela fotografia do bebê sudanês famélico no mesmo plano de um abutre, que esperava pela morte do menino para finalmente devorá-lo, acabou se suicidando por não suportar as críticas pela atitude sofrível e desumana: ter optado pelo melhor plano (arte) e não pela vida. 

A relação, neste caso acima citado, parece, foi estabelecida na direção dos limites éticos de um trabalho artístico. Se podemos achar algo belo mesmo que em jogo esteja a representação de um gesto de violência, da fome, da dor. Talvez melhor, se a arte pode prescindir da ética, ou ainda, se o profissionalismo pode prescindir, em determinadas circunstâncias, insinuando-se por dentro de outros marcadores.

Kong Nyong, o bebê sudanês, sobreviveu. Carter pode ter cometido suicídio não apenas pela foto premiada. O próprio Sebastião Salgado, um dos grandes nomes da fotografia mundial, recebe críticas pela repercussão de imagens em que a denúncia não deixa de ser também violência.

Longe de apresentar uma consideração exaurida de fontes e discussões, tenho acompanhado nossa pressa, minha, inclusive, de nos livrarmos das responsabilidades cotidianas. Enquanto escrevo este pequeno artigo, uma ou duas horas de produção, mais de oito pessoas morreram vítimas de violência no país, algo em torno de 110 por dia; 19 adolescentes são assassinados/as a cada 24 horas, outros 123 estupradas/os. Praticamente 33 milhões de pessoas morrem e ou vivem em situação de insegurança alimentar. Brevíssimo histórico das nossas desmemórias.

Até onde vai nossa capacidade de suportabilidade para tanta dor e violência? Sim, é claro que seria impossível uma vida lançada ininterruptamente no abismo da existência, pois precisamos ancorar nossas dores e culpas em repositórios capazes de tornar menos sofrível a gratuidade da vida. Precisamos continuar, apesar de. Contudo, temo que a exposição continuada e contínua aos abusos da desumanidade nos torne insensíveis aos apelos dos que não têm salvaguarda no mundo.

Por quem choramos?  Quais são os cenários cotidianos que são suportados e figuram nas nossas vidas sem que nos provoquem qualquer repulsa ou empatia?

Estudo de Viezzer e Grondin (2018) mostra que a invasão/colonização europeia nas Américas provocou mais de 70 milhões de vítimas entre os povos originários (1500/1900). Nossa história foi construída sobre o sangue de milhões, sem menosprezar a igualmente perversa escravidão a que foram submetidos milhões de negros. O que nos é permitido esquecer? O que devemos lembrar?

Penso, muitas vezes, que a grandeza de um país não se mede pela sua cultura, mas pela história dos seus esquecimentos. E só de lembrar dos nossos esquecimentos cotidianos, um calafrio ganha meu corpo, pois já não sei se posso escrever sobre o que sempre fora insuportável.

Levei anos para entender que a melhor parte de mim é aquela que não se sabe, pois é com ela que posso me propor ao devaneio criativo. O que em mim cria está em aberto, pois é justamente a sinuosidade de uma mesmidade que não está dada que permite que nos lancemos na direção de nós e do mundo, podendo revisitar nosso próprio modo e as implicações da agência criativa. Leia mais: https://www.neipies.com/a-potencia-do-inacabado/

Autora: Marli Silveira 

1 COMENTÁRIO

  1. Texto maravilhoso. É importante reafirmar, sempre, o espaço da arte e do artista. Não é responsabilidade do artista a cura, ainda assim, se dispõe a mostrar a doença. A arte faz isso. E na comunidade temos que tratar das doenças, as coletivas e as privativas, e como se pode tratá-las.

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