O que nos impacta ao vermos uma mulher idosa revirando lixo?

1802

Não pude andar mais, nem cair ao chão me dei a oferta, vendo a senhorinha com seu passado exposto em frente a um fruto amargo, como se teimasse em continuar viva, mesmo que para estar viva precisasse viver dos mortos.

É noite no Alto da XV. A noite cinzenta de todas as noites em Curitiba. Uma garoa miúda e sem vontade de cair castiga as poucas cabeças que passam apressadas, rumo a suas casas, penso, porque a noite chegando, torna as pessoas mais escorregadias.

Caminho a esmo, tentando recuperar o fôlego de um dia que não termina mais; somente há esquinas de desassossego e perguntas úmidas a fazer. 

O que é isso meu Deus?

Não fosse uma chuvinha fina, que quase transpassa o guarda-chuva, daria para contar os motivos que me levam até as ruas do bairro de nome charmoso e fácil de escrever.

Ele tem o nome do charme…de algum luxo, e, sem mais escolhas para os olhos, vejo uma mulher revirando o lixo, na esquina, a minha frente, à frente do nada, melhor. À frente do luxo.

O que é isso meu Deus?

Uma mulher franzina, de roupas encharcadas e chinelos rotos, revira o lixo, em uma lata inerte e abandonada. Sem sorte, será, esta mulherzinha da minha noite de chuva, revirando a procura de algo, em um latão velho e abandonado na melhor esquina, sabe-se lá o que persegue.

E encontra ela. Saca rapidamente com sua mão e cheira a surpresa. Leva à boca, talvez uma maçã e num gesto relâmpago lhe morde o lado. Mas não dura o prazer e eis que numa cusparada ligeira livra-se da incômoda mordida, precipitada. Não deu gosto, certamente.

Um laranja azeda? Uma maçã traçada? Uma pera moída? Não pode disfarçar sua fome à fruta podre, certamente, que a arremeteu à boca em um gesto pouco pensado, como quem não pode perder nada, pois já que não tem nada e que nada vai lhe restar do dia.

Sua mão lépida lembra uma pessoa desperta e que à noite, o chuvisco vai dificultando tudo. E estragou tudo. Fosse ao dia, poderia ver o torpor no que metia em sua boca e escolheria melhor o resto que foi separado a ela. Quem sabe…refugá-lo com mais elegância.

Está longe de casa e, ao mesmo tempo, muito perto porque leva consigo a sua casa, em um carrinho mambembe, de tábuas tortas e vazantes, que entre pingos e lufadas, fazem-se balançar pedaços de papéis e cartões rejeitados no seu trajeto. Lançados fora pela fúria dos consumidores conscientes, seu carrinho é a mais tênue lembrança do que há de pior a ser inventado para uma mulherzinha fazer abrigo nestas horas.

Nem cachorros andavam no seu entorno, que se comparassem a ela, assim, solto na rua, errante, como seus pares sem rumo andam, sempre apressados, vindo do nada, e indo a lugar algum. Estava pronto a compará-la a qualquer um destes, mas não os via. Iria falar: pelo menos ela ainda é humana e então haveria uma réstia de esperança.

Mas concluí, dentro da lata de lixo em que me encontrava, ser ela mesma o cão perdido numa noite fria e espúria. Sim, ela que nos procurava com alguma mão trêmula, que nos buscava neste latão imundo, chamava-nos no breu da noite, nós que a negamos pelo dia.

Quem dera fosse a minha mão puxada, ao invés de uma fruta podre. Quem dera me subisse deste latão, eu que me encontrava assim que a vi, em meio às coisas abandonadas e desprezadas. Quem dera me estendesse a mão e salvasse para si.

E não pude andar mais, nem cair ao chão me dei a oferta, vendo a senhorinha com seu passado exposto em frente a um fruto amargo, como se teimasse em continuar viva, mesmo que para estar viva precisasse viver dos mortos.

Nossos lixos não mais a sustentam. Sua fome continua, mesmo que se alimente do que mais encontre nesta esquina, com o charme do abandono e dá má sorte: o nada.

Por um momento pensei em trocarmos os papéis, permanecendo imerso de chuva e fome, lodacento com o cinismo de um pobre observador e, ela, embora magra, mas pelo menos com uma refeição a ruminar nestas últimas 24h. Sabe-se lá se passaria por mais esta noite.

Que mundo é este que abandona uma frágil mulherzinha? Idosa, e solitária com seus muitos anos de calçadas e abandonos.

– Estamos nós, ambos abandonados, minha senhora, não se engane! Você que já não encontra nada neste lixo inútil, esbarrando hoje, em um lixo errante.

Nossos olhares se cruzaram por um instante, fartos que estamos de ausências. Eu, com meu vazio temporal e, ela, em sua eterna falta de tudo.

O bem maior que poderia lhe dar seria este: a minha esperança em respirar ainda, por sua promessa de amanhã estar viva. O meu futuro incerto, por um naco de maçã limpa. Deveria propor, pois sua fome poderia salvar a todos.

Mas não foi desta vez. Será preciso sofrer muito, os dois, deverá ter pensado Deus. Nesta noite, pelo menos nesta, que ninguém durma em paz nesta esquina de Curitiba.

Autor: Nelceu A. Zanatta, autor da crônica “Arvores não conversam? Sinos não falam? Nos jardins das rejeições, tudo é possível”: https://www.neipies.com/arvores-nao-conversam-sinos-nao-falam-no-jardins-das-rejeicoes-tudo-e-possivel/

Edição: A. R.

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