Entre Deus e o Macaco

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“Nossa meta é nossa origem”, a clássica sentença antropológica de Karl Kraus, continua mais atual do que nunca. Para chegarmos a ela, talvez tenhamos de deixar de lado as preocupações com o umbigo de Adão e as certezas do macaco.

Não sabemos de muitas coisas e, dentre elas, uma que (ainda) não sabemos mesmo é esta: de onde viemos? Especula-se entre dois extremos, buscando-se respostas. Um que pressupõe uma origem divina para o homem. E outro, menos nobre, que admite uma raiz zoológica. O primeiro carece de significação filosófica, por isso não se discute. É uma questão de crença religiosa e ponto final. Por ele, fomos criados por Deus à sua imagem e semelhança, só que com menos poderes. O segundo, mais ao gosto dos adeptos do evolucionismo, também tem os seus pontos frágeis.

O evidente, em ambos, é que o homem parece buscar uma explicação, para a sua origem, externa a si próprio. Por essa razão, talvez seja mais interessante preocupar-nos com o princípio da humanidade (desde quando homem se entende como tal) e não com a origem da vida.

De fato, o que define o homem é a práxis. Significa dizer que o homem é um ser que atua. E, por atuar, entenda-se que estamos nos referindo a um ser que quer fazer coisas. E ainda: que faz as coisas que quer, e quando quer. Atuar é mais que se alimentar, se reproduzir, buscar abrigo, se movimentar apenas para satisfazer a um instinto.

A ação humana é completamente diferente do instinto animalesco. Isso não implica que seja necessariamente boa. Ela é delineada a partir de situações virtuais, com base em registros simbólicos, sendo capaz de modificar e, inclusive, criar o futuro. Uma rosa e um leão são “programados” para ser o que são, fazer o que fazem e viver como vivem. Os seres humanos, em certo sentido, são “programados” também, porém de forma diferente. Nossa estrutura biológica é uma coisa e nossa capacidade simbólica (dela depende as nossas ações) é outra. Pode-se dizer que somos programados “enquanto seres”, mas não “enquanto humanos”.

Mesmo que a diferença genética que nos separa de um chimpanzé seja mínima, não sendo muito maior a que nos distancia de um porco ou de uma lagarta, de qualquer forma, qualitativamente, somos muito diferentes.

A similaridade genética entre o homem e os outros animais não explica nada. Apenas mostra, e reforça, que a dotação genética não é decisiva na definição da condição humana. Fica óbvio que a ação humana provém de outros elementos não identificáveis no DNA. Nisso reside o grande enigma humano e o paradoxo da teoria da evolução.

A diferença fundamental entre o homem e os outros animais é a quase que absoluta ausência de especialização de qualquer tipo, no homem.

Os animais, pelo contrário, alcançam níveis de especialização para fazer algumas coisas (saltar, morder, agarrar, etc.), viver em determinados ambientes (suportar temperaturas extremas, alimentar-se de resíduos, procriar, etc.), que são inimagináveis para nós. Os membros, órgãos, sentidos dos animais são instrumentos de alta precisão. Compare a sua capacidade de morder com a de um Pitbull, para ter certeza disso. Ou a sua mão com os tentáculos de um polvo ou a pinça de um caranguejo.  Mas, no entanto, como tudo que é ultra-especializado, servem muito bem para o que servem, e para nada mais.

A não especialização dos seres humanos contradiz a visão popular de evolução das espécies. Em geral, se imagina que o homem provenha, por sucessivos refinamentos, de uma espécie animal mais tosca. Tem aquela clássica ilustração que mostra um quadrúmano, depois um chimpanzé, a seguir um antropóide, continuando com um primo neandhertal até chegar, por último, à imagem de um autêntico lorde inglês.

Pelo que vimos até aqui, parece que o caminho evolutivo seguiu um rumo oposto ao dessa figura. Os seres humanos, por qualquer categoria, são menos definidos que o chimpanzé da ilustração. Se a evolução for do indeterminado para a especialização, o chimpanzé é mais evoluído que um ser humano, e não menos.

Então, cabe perguntar: de onde vem a nossa hegemonia sobre os demais seres naturais?

Resposta elementar: de um órgão muito evoluído e sofisticado, que nos torna os mais aptos, chamado cérebro. O nosso cérebro, como o órgão da ação, é o que está no comando e faz a diferença. Não temos um ambiente natural específico como certos animais. O nosso ambiente natural é a sociedade. Graças à ação cerebral, o homem faz coisas (boas e ruins) que nenhum outro animal é capaz de fazer.

“Nossa meta é nossa origem”, a clássica sentença antropológica de Karl Kraus, continua mais atual do que nunca. Para chegarmos a ela, talvez tenhamos de deixar de lado as preocupações com o umbigo de Adão e as certezas do macaco.

Finalmente, cabe dizer que essas idéias não me pertencem. São de Fernando Savater, e podem ser encontradas no livro “El valor de elegir” (Editorial Ariel, 2003). Recomenda-se. Afinal, não fazemos outra coisa na vida que não sejam escolhas (elegir).

(Do livro Cientistas no Divã, 2007)

Esta é a minha quarta publicação neste site. Confira as demais publicações: https://www.neipies.com/author/gilberto-cunha/

Autor: Gilberto Cunha

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