Amazônia Tupã

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O que podemos fazer para acabar com o fogo
que mata nosso povo e elimina nossas matas?
– Nada, por enquanto, meus filhos, mas mandarei
uma praga que irá eliminar muita gente das cidades,
sem se importar se são culpados ou inocentes.


Potira corre enquanto as lágrimas evaporam e os olhos ardem sob a fumaça preta. A luz do fogo envolve a aldeia e as árvores cujas folhas voam flamejantes. Capivaras e pássaros passam à sua frente. Onde está Tauanê, a mãe? Onde não tem fogo? Aiyra, Cauê, Tuane, onde estão? Os macacos sufocam e caem das árvores em barulho seco e sonoro. Blaum.

O suor evapora e a pele resseca. As pernas continuam a se mover, mas nada enxerga e o ar parece ser apenas fumaça. Aspira e uma tontura a faz cair. O sabor da terra a consola. Ao menos o solo ainda está úmido. Só há fogo a sua volta. Um galho de árvore flamejante cai sobre si. Potira grita, mas o fogo queima suas coxas e sua pele enruga e avermelha. Olha para o céu e ainda tem fôlego de gritar:

– Tupã, onde você está, Tupã?

Potira sente o cheiro de carne queimada, que de seu próprio corpo. Antes de desmaiar, ouve um trovão. Porém não há nuvens no céu e ainda consegue pensar: “Deus Tupã, vem nos salvar”.

Os dentes de Nelson são pressionados com os fiapos de carne. O cheiro de gordura ainda esta em seus lábios e os intestinos preparam um acúmulo de gases que ardem ao sair.

– Peidou de novo Nelson? – ri alto Dejair, exibindo os buracos entre os dentes e balançando a barriga roseada que aparenta ser de um porco pouco antes de virar linguiça.

Nelson pouco presta atenção. Olha para as mãos que estão ainda chamuscadas. O odor de mato queimado ainda está em sua camiseta e bermuda. Pensa em tomar um banho, mas quer tomar um último copo de chope. No céu há fumaça que deixa a noite mais escuro.

– Semana que vem termina esse fogo e a gente bota gado, boi, vaca, nesta merda aqui – grita Dejair, agitando seu chapéu de vaqueiro ao ar. Os tonéis de gasolina vazios estão ainda dentro das caminhonetes. O gosto de gasolina ficou também na carne do churrasco.

Jaci agita seus cabelos negros que lhe cobrem os seios e caminha sobre as cinzas do que um dia foi mata. Sua pele azulada está empapada de lágrimas que grudam as cinzas das folhas e árvores. Observa o nascimento do dia e da coroa solar surge Guaraci, seu esposo irmão. Está com olhos arregalados, observando criaturas carbonizadas aos seus pés. O cheiro forte lhe queima as narinas. Jaci o abraça:

– Foram os homens do gado. Eles atearam fogo em nossa mata.

Guaraci a abraça e tenta esconder as lágrimas, enquanto observa uma jibóia que mais parece um galho queimado. Tentou saber se conhecia aquele réptil, mas já estava sem forma e cores definidas. Sua alma já estava com Tupã, que enviava raios mesmo com o céu azul.

– Somos deuses, Jaci, como sequer percebemos isso acontecer?

A coroa de penas de Tupã estava envolvida em faíscas azuladas. Seu corpo reluzia e as árvores a sua volta absorviam os raios que emitia. Jaci e Guaraci abraçaram-no.

– Pai – disse Jaci. – Os homens do gado estão destruindo nossas matas há dias. O fogo mata todos os seres.

– Eu sei, minha filha – retumbou Tupã, com uma voz que parecia ser uma descarga elétrica interminável. – Ontem, Potira, filha de Tauanê, chamou-me antes de morrer. Ela foi lambida pelas chamas provocadas pelo homem branco. Há muitas luas o fogo consome nossas matas e continuará a ser assim.

– Mas, pai – sussura Guaraci, erguendo seus braços torneados e ainda suados do calor. – O que podemos fazer para acabar com o fogo que mata nosso povo e elimina nossas matas?

– Nada, por enquanto, meus filhos, mas mandarei uma praga que irá eliminar muita gente das cidades, sem se importar se são culpados ou inocentes. Sem escolher ricos ou pobres. Essa praga irá vingar um pouco do que já sofremos e irá cobrir os campos de corpos e lágrimas.

2 COMENTÁRIOS

  1. Difícil não comparar com a realidade. Muito triste ver a consumação da criação divina na mão humana/desumana.

  2. É um belo texto de muita reflexão. Pode ser adorado para o 5* ano do ensino fundamental e explorar as disciplinas da línguas, artes e história. Um texto multidisciplinar .

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