A arte como forma de humanização

1950

Acreditamos que o maior desafio humano é a humanização. Entendemos humanização como a possibilidade de nos tornarmos melhores seres humanos. O conhecimento reflexivo, assim como a arte, podem potencializar muito a nossa humanização.

Aline Venturini é filha de mãe professora e pai comerciante. Desde adolescente, jovem, envolveu-se em atividades comunitárias e coletivas. Já foi professora da rede municipal de Passo Fundo, professora universitária e professora de Cursos de línguas. É formada em Letras, pela Universidade de Passo Fundo, e realizou mestrado e doutorado em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Sempre acreditou no poder da arte. É artista plástica, gosta de cantar e interpretar, nas horas vagas, músicas de cantores e compositores populares do Brasil. Participa da Confraria das Artes, associação de artistas que agrega os mesmos para manifestações públicas de arte, sobretudo ocupando espaços vazios do mundo urbano para pinturas e representações de desenhos, em forma de arte.

Pela sua experiência e convicções, Aline Venturini, com certeza, nos ajudará a encontrar pistas para compreendermos a importância da arte e da educação como ferramentas de humanização.

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SITE NEIPIES: O que te realiza na profissão docente? O que te fez professora?

Venturini: Para mim, o que me realiza como professora é o ato de compartilhar conhecimento e de participar do processo de troca mútua. Como afirmava Paulo Freire: “Ninguém educa ninguém.” Então, o processo é mútuo. Aprendemos com o aluno também. A aprendizagem, bem como a avaliação verdadeira, ocorre durante o processo, no fazer. Portanto, a prova é apenas meio de quantificar em números esta avaliação da aprendizagem, porque o sistema exige, porque é durante o processo que avaliamos o aluno verdadeiramente. O processo é que me encantava e ainda encanta.

A minha maior satisfação como professora é constatar quando um aluno aprende de fato ou se envolve mesmo na aula ou na discussão realizada e isso nem sempre é possível mensurar somente com provas. Por exemplo, pode ser uma reação positiva a determinada atividade, ou uma constatação que ele fez em sala de aula, um insight interessante…

SITE NEIPIES: Como foram tuas experiências como professora junto à rede municipal de ensino, no ensino superior e como professora em escolas particulares?

Venturini: Posso adiantar que a escola pública é um grande laboratório e que te forja professor (a). E não é uma trajetória fácil, pois a gente lida com as carências, os problemas, a falta de disciplina e de fé no estudo dos alunos e dos pais, as exigências e as contradições do sistema escolar, muitas vezes, também.

Posso dizer que todas as experiências foram, ao mesmo tempo, árduas, mas muito felizes, ao mesmo tempo. Passei por quase todo o fundamental nas escolas municipais e no estado, em Ernestina e em Passo Fundo, e tive a oportunidade de atender diversos tipos de público, desde crianças até jovens e adultos. Todo o fundamental, incluindo alfabetização, com o currículo por atividades, pois fiz magistério; o ensino médio, dando Língua Portuguesa e Literatura, no Cecy Leite Costa; a Educação de Jovens e Adultos em Ernestina, na Escola Raimundo Corrêa.

Depois, tive ainda a oportunidade de trabalhar com projetos de arte na Secretaria Municipal de Educação, mas nunca saindo da sala de aula: atendia várias escolas, com Coral, com violão e projeto de Artes visuais. Foi nesse tempo que, juntamente com a Lindiara Paz, a Elvira Battisti, o Pablo Morenno, o Paulo Monteiro e a professora Tânia Fornari, montamos o “Eu e os artistas da minha terra”, que funcionou entre 2012 e meados de 2014, com várias parceiras professoras de outras escolas, como a Singraí Stradiotti, atriz também; a Desiré de Meira e Meira, a Sônia Gabin, a Clarice Giacobbo, o professor Carlitos e tantas outras (os), e as escolas que integravam. Perdão se não disse o nome de todos (as), mas sintam-se lembrados todos que participaram. 

Foi muito gratificante! A gente trabalhava as obras do artista local com os alunos na escola, contava a exposição e o convidava. E aí havia uma troca de conhecimento incrível! E tínhamos uma comunidade no face, onde colocávamos as fotos de todas as escolas e seus eventos. A artista Miriam Postal participou e deu seu apoio. Participaram a EMEF Helena Salton, EMEF Lions, EMEF Coronel Lolico, EMEF Benoni Rosado, EMEF Coronel Benoni, EMEF Cohab Sechi, e tantas outras.

Em 2014, contudo, eu já havia terminado o mestrado na UFRGS e estava disposta a tentar a carreira universitária. Trabalhei no curso de Letras Espanhol na Unespar (União da Vitória) entre 2015 e 2016. Retornei a Passo Fundo e fui para o Ifsul, no qual fiquei nos anos de 2017 e 2018. Lá, durante a disciplina de Gêneros Textuais, na Especialização para Professores, fizemos uma aula resgate do projeto “Eu e os artistas da minha Terra” com a presença de Lindiara, do Pablo e do Paulo.

Em 2019, diminuí a carga de trabalho para me dedicar exclusivamente à tese: “Os pressupostos de Miguel de Unamuno na revista Quixote\RS: Leituras e acolhidas de Dom Quixote”, iniciada em 2015 e defendida em Dezembro de 2019, sob a orientação do professor Ruben Daniel Castiglioni, na UFRGS.  Enquanto isso, comecei a dar aulas de Espanhol na rede Wizard, de idiomas, em Casca, outra experiência bem diversa, particular, com roteiro de aula e exigência de seguir um livro específico, da rede.

E agora, com a Pandemia, ingresso nas aulas remotas, via internet, à distância, algo bem diferente do que já experimentei. Acho que este período, para professores de todas áreas e níveis, está sendo desafiante e nova.

Considerando toda a trajetória percorrida até este momento, acredito que o professor é um ser que passa por altos e baixos, por desânimos e ânimos, diante de todo o cenário que precisa enfrentar: desvalorização, desrespeito da sociedade em geral com ele, da violência que sofre, dos alunos, dos pais, do descaso com o seu trabalho, da pesquisa e do estudo, como estamos presenciando nesse o momento, em que uma opinião qualquer é mais valorizada do que pesquisas bem fundamentadas e anos de estudo.

É preciso, urgentemente, resgatar a valorização em todos os sentidos dos professores, principalmente os de Ensino Fundamental e Médio, pois, sim, não se trabalha apenas por “amor à camiseta e à causa”.

Slides de fotos: (Defesa de tese UFRGS, dezembro de 2019/Parede de casa/ Catedral de Passo Fundo/ O orientador queria um quadro/ livro Maria Cleci Venturini)

SITE NEIPIES: Como as diferentes artes passaram a fazer parte de sua vida? O que modificaram em você?

Venturini: Na verdade, convivo com as diferentes áreas artísticas desde de que me conheço por gente. Me considero uma pessoa que precisa se expressar e sempre de formas diferentes. Acredito que a arte me ajudou a olhar as coisas por outras perspectivas e sim, a ser mais empática. Claro, mas isso é para mim. A experiência da arte é particular de cada um.

SITE NEIPIES: Por que as diferentes formas de arte ainda são tão pouco valorizadas, apesar da reconhecida importância para o pleno desenvolvimento do ser humano? A arte é perigosa aos olhos de quem domina o mundo?

Em primeiro lugar, creio que as diferentes formas de arte são desvalorizadas porque ainda vivemos em uma sociedade extremamente tecnicista e focada no que “dá dinheiro logo”.  Podemos ver isso bem nítido no texto “Reinventando as Humanidades”, de Rouanet, que li durante o Mestrado e nunca mais esqueci.

Também é possível constatar na nossa realidade brasileira e nos currículos escolares, no geral. Isso significa que a arte, enquanto pura forma de expressão, não tem uma função ou utilidade específica, uma vez que cada um vê como lhe parece: para uns, é puramente decorativa, a “arte culinária”, como chamam. Para outros, é instrumento de crítica e denúncia social.  Tem o intuito de somente chamar a atenção, chocar ou mesmo mudar a perspectiva. E tem ainda a função “Rivotril”.

Tudo isso as formas de Arte significam, a saber: as artes visuais no geral, a música, a dança, a Literatura, as Artes Cênicas, o Cinema, o Humor, por exemplo, estilo Stand Up. E elas desenvolvem, no ser humano, a capacidade de ver as coisas sob outras perspectivas, de reinventar as situações e de expressar melhor as suas angústias. Enfim, também como autoconhecimento.

Em segundo lugar, acho muito arriscado afirmar esse “poder redentor” da arte de tornar um indivíduo, digamos, mais humano, mais ético, empático aos sofrimentos dos outros.

De um lado, basta ver o exemplo de Hitler, que era cultíssimo, amante das artes e, no entanto, foi um dos maiores tiranos e assassinos da história. E temos uma série de escritores, músicos, dramaturgos, atores, artistas plásticos geniais, porém, cheios de preconceitos e alguns até fascistas. Isso tem sido um assunto muito debatido na rede agora.

O que a gente faz, hoje, por exemplo, com um Monteiro Lobato? E no meu caso, que tive a oportunidade de estudar o grande Jorge Luís Borges e o abordei em minha dissertação, sob a orientação do professor Luís Augusto Fischer? Como lidar com a predileção de Borges por Pinochet? E com o seu racismo?

Pelo outro lado, no mesmo período do Nazismo, nós temos uma menina de treze anos, a Anne Frank, que se refugiou em seu diário, inventou uma personagem, amiga imaginária Kitty, para quem narrava todas as suas impressões e angústias, bem como os sentimentos de empatia pelos prisioneiros levados ao campo de concentração para serem executados. Ela sequer imaginou, antes de morrer, de que sua escrita particular seria lida e significaria tanto para as pessoas, não só as diretamente atingidas pelo horror do Nazismo, mas também por outras do mundo inteiro.

A arte pode, sim, ajudar as pessoas a desenvolverem a sua humanidade, desde que elas assim queiram e sintam empatia pelas situações representadas artisticamente. Vai depender, logicamente, de qual conceito elas têm de arte: se de mera culinária, decorativa e beletrista, ou realmente algo que faça sentido, que as ajude a se expressar e as leve a identificar situações da vida com as quais tenham capacidade de sentir empatia e compaixão. E ainda pode acontecer da pessoa envolver-se profundamente com a ficção, mas não ligar a mínima para uma situação correlata na realidade.

A tese de doutorado que defendi estuda justamente um grupo de jovens intelectuais e artistas da década de 1940 do século XX, “Grupo Quixote”, em Porto Alegre, que desejavam fazer “uma barbaridade”. Essa barbaridade, vale dizer, era justamente a de se expressar, a de opinar, a de dizer a que vieram e a de fazer arte e crítica literária, buscando seu espaço na cena artística e intelectual do Rio Grande do Sul.

A arte, em si, é uma barbaridade. Aí chegamos no terceiro ponto: sim, as formas de arte podem ser perigosas, no momento que questionam os papéis sociais e culturais estabelecidos, quando rompem com os preconceitos e têm coragem de mostrar que existem maneiras de viver e de se expressar diferentes das “grades sociais” pré-determinadas. No entanto, se a não questiona e só mostra mais do mesmo, não será perigosa, ao contrário: pode ajudar a manter as estruturas dominantes e aprisionantes do indivíduo.

SITE NEIPIES: O que te motivou a participar da Confraria de Artes de Passo Fundo? Qual é o objetivo desta associação de artistas?

Venturini: Desde criança, me vejo em torno de tintas, lápis e todo o material que possa servir para pintar e desenhar. Entrei na Confraria quando ainda era a antiga AAPPF (Associação dos Artistas Plásticos de Passo Fundo), coordenada, na época, pela artista Fáthima Rogoloski. Adentrei a associação por meio de Ione Pedro, grande amiga artista, para quem mostrei meus primeiros esboços.  Ela me orientou e somos muito próximas até hoje. Desde aí, comecei a expor, cheguei a ganhar dois prêmios pelo “SESC Descobrindo talentos” pelo quadro “Rio Passo Fundo” e faço parte da atual Confraria das Artes, embora, nos últimos tempos, não tenho conseguido participar muito das atividades, por conta da tese, agora concluída. Participei também, por um período, da AGAPA (Associação Gaúcha de artistas e artesãos plásticos de Porto Alegre), no qual ganhei uma menção honrosa.

Quadro premiado com menção honrosa AGAPA.



O objetivo da Confraria das Artes é propiciar que os artistas locais possam mostrar seus trabalhos à comunidade, que possam contribuir, como fazem no projeto das Intervenções Urbanas na cidade e também de que seus trabalhos tenham visibilidade. Neste momento, continua muito ativa, através das redes sociais, sob a coordenação da artista Lindiara Paz.

SITE NEIPIES: Em tempos de isolamento físico e social, qual é o papel ou a função que a arte pode desempenhar para fortalecer nossas individualidades, nossas relações interpessoais e nosso modo de ver o mundo?

Venturini: Acredito que nunca a arte foi tão necessária quanto agora, nesse período de Pandemia. Vivemos um momento em que milhares de pessoas morrem no Brasil por conta desse vírus e da negligência que a sociedade tem agido em relação ao vírus. Então, a arte é fundamental para que os indivíduos consigam fazer toda a “catarse” do que estão vivendo.

Certamente haverá muitas e muitos “Annes Franks” durante esta pandemia, escrevendo, cantando, dançando, representando, suas angústias e impressões sobre esse período. E nunca as pessoas consumiram tanta música, filmes e séries como agora! Isso só mostra como é falaciosa a expressão tecnicista e dinheirista que ouvimos muito recentemente: “de médicos, engenheiros, já precisei, mas nunca de um artista.” Pois bem, aí está a prova de que precisamos sim!

Os artistas estão sendo fundamentais agora, para que as pessoas consigam lidar com o caos social, econômico e, sobretudo, existencial causado pela Pandemia.

SITE NEIPIES: Que sugestões darias aos teus colegas professores e professoras que, neste momento, estão tendo que se reinventar e reinventar o seu jeito de atuar nas aulas?

Venturini: Tenho a dizer de que compreendo o quanto o trabalho está sendo árduo e difícil e a única coisa que posso sugerir é que, quando estiverem muito estressados e aflitos, tentem respirar fundo, nem que seja por um instante, e tentem recobrar a força, a fé e a vontade, do seu modo particular.

Não sou capaz de dar receitas a ninguém, pois sei o quanto ser professor, e especialmente de escola pública e de ensinos fundamental e médio, é difícil. Também é, salvaguardando as devidas diferenças, para o professor de Ensino Superior. A questão é que este ainda tem mais valorização do que o do Ensino Básico. Os professores, embora a sociedade continue ainda a negar e não valorizar devidamente, são tão importantes agora quanto os artistas.

SITE NEIPIES: Achas que sairemos melhores a partir da crise sanitária e da pandemia?

Venturini: Algumas pessoas certamente sairão melhores. Outras, infelizmente, não. Em questões de soluções tecnológicas, acredito que as videoconferências, as aulas à distância, as consultas online, etc, vieram para ficar.

No que tange ao desenvolvimento ético de cada um, basta vermos como cada um está reagindo durante a pandemia: aqueles que se dispõem a seguir as regras sanitárias, os que se cuidam, mesmo sendo obrigados a trabalhar, posto que estão em serviços essenciais, os que procuram ajudar de alguma forma, em serviços comunitários, parecem que sairão melhores do que entraram.

Agora, não tenho muita esperança com os egoístas e negacionistas que insistem em ignorar o perigo da Pandemia e não se importam nem consigo e nem com os outros. Fazem questão de se reunir para festejar, se aglomeram, não usam máscaras e ainda, quando advertidos, se dão ao impropério de repetir a máxima: “Você sabe com quem está falando?” Quanto a esses, tenho sérias dúvidas se sairão melhores da crise sanitária.

É doloroso ver como algumas pessoas têm mostrado a sua face mais egoísta e má durante a Pandemia. Ao mesmo tempo, também há gente mostrando o seu melhor lado, o que não deixa de ser um alento.

SITE NEIPIES: O uso das diferentes tecnologias na escola, no teu ponto de vista, podem ajudar na melhoria da qualidade da educação?

Venturini: Podem melhorar dependendo de sua viabilidade e da forma como são usadas. Por exemplo, de nada adianta ter um aparato super moderno, com sinal de internet potente e bons computadores, se as aulas vão se resumir a somente o aluno copiar da tela do computador como se fosse o quadro negro. Isso mostra que as Tecnologias de Informação (Tics) podem ser um meio poderoso, mas ainda assim vai depender do conceito de educação que o professor, sua escola e rede possuem.

Estou lendo dois livros bastantes significativos sobre isto neste momento, de Roxane Rojo: “Escola Conectada, os multiletramentos e as Tics” (2013) e “Multiletramentos na escola” (2012). Essas obras compartilham experiências muito interessantes realizadas em sala de aula, que envolvem aplicativos de vídeo, de reescrever textos de outros gêneros, de pensar criticamente e de relacionar diversas artes, inclusive.

Agora, claro que, para fazer tudo isso, como já foi dito, são necessários recursos fundamentais, como bons computadores, sinal de internet potente e comprometimento de ambos os lados do processo de aprendizagem, isto é, professor e aluno.

SITE NEIPIES: Que mensagem gostarias de deixar aos que leem esta entrevista.

Venturini: Obrigada pela oportunidade de poder colocar meus pontos de vista e de compartilhar com vocês as minhas experiências. Desejo a todos coragem e ânimo para enfrentarmos esse momento. Que todos se cuidem e cuidem seus semelhantes. Um dia, toda esta situação vai passar.


Duas músicas interpretadas na minha voz.




Fotos: divulgação/arquivo pessoal
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