Vida na roça

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“Minha mãe achava estudo a coisa mais fina do mundo. Não é. A coisa mais fina do mundo é o sentimento. Aquele dia de noite, o pai fazendo serão, ela falou comigo:  — Coitado, até essa hora no serviço pesado. Arrumou pão e café, deixou tacho no fogo com água quente. Não me falou em amor. Essa palavra de luxo”. (Poema Ensinamento, Adélia Prado)

Muitos, como eu, nasceram e viveram a infância na roça. Eu sinto orgulho de ser um filho da roça, porque a vida no “interior” me ensinou valores finos e refinados.

Na companhia de árvores frutíferas, animais, nascentes, riachos e lavouras, as pessoas que lá residem formam verdadeira comunidade. Comunidade quer dizer comunhão, integração, relação. Esta comunhão se perdeu na vida urbana atribulada e estressante.

Histórias de famílias que vivem na roça e produzem seus alimentos. Assista aqui: Família que vive no sítio e produz seus alimentos.

O tempo na cidade tem de ser um tempo ocupado. O tempo na roça segue o ritmo da própria natureza. Só agora entendi razões pelas quais meu avô paterno, um agricultor das antigas, quando dizia que, quando fora mais jovem, os anos não tinham pressa para passar e que, de repente, o tempo foi “aligeirado” também na roça. Um tempo ocupado com mais coisas para fazer tem mais pressa. Acontece que nas cidades não temos mais tempo para curtir o próprio ritmo (do tempo) porque temos muitas coisas a fazer, o tempo todo.

Roça é um lugar de fartura, mas também de muito trabalho. Iludem-se aqueles que pensam que uma “chácara” é um lugar maravilhoso sem dar muito trabalho. Para quem não pode oferecer seu trabalho, terá de ofertar dinheiro para que alguém cuide, zele e organize o ambiente, para poder desfrutá-lo lindo, aconchegante e organizado.

Não podemos romantizar o trabalho de quem cuida da terra; é preciso reconhecê-lo e valorizá-lo com a grandeza que ele merece.

Quantos, como eu, matam saudades de sua terra visitando propriedades que ainda resistem em levar adiante um estilo de vida interiorano! Colhem, no inverno abundante das frutas, o sabor de suas saudades e recordações. Visitam, no verão, matas, riachos, casas, salões comunitários, em busca de algo que um dia deixaram para trás: a simplicidade e a compaixão pela terra.

Rafael Duckur, um jovem agricultor, revela lições e aprendizagens generosas que o mesmo obtém na relação e no cultivo da terra, esperando que todos nós possamos encontrar nosso lugar nessa grande ecologia. Confira: Uma Vida Mais Gentil.

Como ilustram os versos no início desta reflexão, os valores da roça confundem-se com as necessidades mais imediatas de quem lá reside e faz de seu trabalho e suor o próprio modo de vida. Os pequenos agricultores ou camponeses ainda preservam os valores da gratuidade e da reciprocidade que aprenderam na relação com os outros, com a natureza e com o mundo.

Nem tudo na roça tem preço, mas tudo na roça tem o seu valor.

As relações com a natureza, particularmente através das semeaduras, reservam ao homem e à mulher do campo a noção do tempo, que é a noção aproximada de paciência. Quem espera colher, precisa saber esperar. Quem espera colher, precisa pacientemente acompanhar a renovação da vida em cada amanhecer e em cada anoitecer. Quem deseja recuperar a terra, precisa investir insumos, cuidados e tempo.

Só podem sentir saudades aqueles e aquelas que já experimentaram a vida da roça. Para estes, são necessárias brechas em sua conturbada agenda urbana para cultivar flores, frutas, hortaliças, chás, verduras. Não há nada mais contagiante e gratificante do que o alvorecer de vidas que dependem de terra, de ar, de água e de cuidados pacientes e permanentes.

A natureza nos permite a compreensão da própria existência. A vida na roça nos fornece importantes aprendizagens sobre os próprios desafios do ser humano. Valorizando a terra, estaremos sempre valorizando a nossa dimensão de humanidade e dignidade.

NOTA DE ADVERTÊNCIA:

“Esta reflexão, uma das primeiras publicações do site (15/08/2015), é
uma das mais acessadas e agora segue revisada, em respeito aos
leitores e leitoras. Confira a primeira versão: https://www.neipies.com/vida-na-roca/

Autor: Nei Alberto Pies

Créditos das fotos e edição: Alex Rosset

2 COMENTÁRIOS

  1. Orgulho não parece, também, ser algo cultivado na roça. Cada agricultor, cada agricultora, vive, desenvolve suas atividades, elabora, produz, colhe, vende, compra… empreende, diariamente, uma série de ações necessárias para a sua existência e de sua família. Exerce, se pensarmos, uma série de profissões, ocupações, especializações, integradas. Agricultor/Agricultora é uma profissão que envolve interdisciplinaridade, interação/integração entre várias atividades – podemos dizer, profissões/cocupações/especializações -. Um bom orgulho que, nem de longe, contamina as pessoas da roça, do campo. Agricultor precisa, saber plantar, cuidar, colher, manejar animais, aves, peixes, vegetais – vários, várias espécies… – múltiplos saberes, mútliplos fazeres… uma profissão que se confunde com a vida; um oruglho de profissão.

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