Sou favelado e tenho orgulho de ser favelado.
Eu ascendi social e economicamente,
mas essa é minha origem,
essa são as minhas diferenças.

 

Da laje de sua antiga casa, na favela da Maré, Jaílson de Souza e Silva perguntava aos visitantes: “O que seus olhos veem?” Para uns, um amontoado de pobreza e carências. Para outros, vidas em sua potência. Superar a visão da precariedade por outra que batizou de “paradigma da potência” passou a ser o trabalho e a razão de vida desse geógrafo formado em universidade pública, com mestrado e doutorado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ) e atualmente professor da Universidade Federal Fluminense (UFF). “Pensar a favela a partir de suas potências é romper com o discurso da ausência e da carência e tentar ver o que ela tem”, defende, em entrevista à Radis. Nascido em uma comunidade de Brás de Pina, na zona norte do Rio de Janeiro, e ex-morador da Maré, o filho de migrantes nordestinos foi um dos fundadores do Observatório de Favelas, em 2001, junto com um grupo de amigos. No horizonte, estava o desejo de formar pesquisadores locais nas favelas e ampliar os olhares sobre esses espaços, vistos de fora com estigmas e preconceitos. Um de seus livros, “Por que uns e não outros?” (Editora 7 letras, 2003), oriundo de sua tese de doutorado, aborda a luta de jovens de favela para acessar a universidade. “Qualquer forma de regulação do espaço público nas favelas tem que ser a partir da participação de seus moradores, principalmente de seus jovens”, destaca.

 

Como a favela marcou sua trajetória afetiva e intelectual?

A minha tese de doutorado — “Por que uns e não outros?” — tem muito a ver com a minha trajetória. Eu sou membro de uma família da periferia do Rio de Janeiro, filho de migrantes nordestinos e fui o primeiro descendente da minha avó, entre filhos, netos e bisnetos, a entrar na universidade. Definitivamente, a minha geração de periferia tinha uma dificuldade muito grande de chegar à universidade. Discutir isso e por que alguns de nós conseguiam, a partir de que estratégia, era o eixo central do trabalho. Eu morava na favela quando entrei na UFF. Sou favelado e tenho orgulho de ser favelado. Eu ascendi social e economicamente, mas essa é minha origem, essa são as minhas diferenças. A partir disso fui construindo formulações distintas da maioria dos intelectuais e pesquisadores que pensam as práticas sociais. Eu trabalho tentando basicamente entender por que as pessoas agem como agem, pensam como pensam no âmbito do urbano. Participei de várias organizações e, em 2001, fundei junto com o Jorge Barbosa, um amigo que também é professor da UFF, o Observatório de Favelas.

 

Qual é a visão que se tem da favela de fora dela?

O pressuposto do Observatório de Favelas e da minha tese de doutorado era fazer a crítica a uma representação muito difundida em que a favela é pensada a partir de um paradigma da ausência, da precariedade. A favela é definida sempre a partir do que não seria. Seja a definição do Ministério das Cidades de “assentamento precário”, seja a definição do IBGE de “aglomerado subnormal”, seja a definição da mídia em geral como “comunidade carente”, a favela sempre tem substantivado o que seriam as suas carências, as suas precariedades. Há uma leitura sobre a paisagem dentro da favela e nela só se vê a partir de uma visão que eu chamo de sociocêntrica: aquilo que não está dentro da normalidade, da organização formal, que seriam os espaços das classes mais ricas, das classes dominantes.

 

Como esse modo de “ver a favela” define as políticas urbanas e a forma como o poder público se relaciona com seus moradores?

Esse paradigma da ausência e da carência define uma forma de pensar a favela e suas políticas públicas a partir sempre de um processo sistemático de precariedade. É muito comum se fazer uma praça dentro da favela sem nenhum tipo de manutenção. Seis meses depois ela está destruída e responsabiliza-se os moradores por aquela falta de manutenção, por aquelas condições. Ao mesmo tempo em que se fazem projetos de grande envergadura em áreas nobres da cidade e outros muito pontuais e localizados, como as chamadas Lonas Culturais, dentro das favelas cariocas. Historicamente foi se produzindo uma política em que sempre eram destinados à favela os espaços de menos investimentos. Existe uma lógica profundamente perversa de utilização dos recursos públicos, em que a maior parte vai para as áreas mais ricas, o que só favorece ainda mais a sua valorização.

 

Como essa “seletividade” se reflete na política de segurança pública, que encara a favela apenas como “espaço do crime”?

O desafio fundamental é como a gente constrói políticas públicas para as favelas que reconheçam seus moradores como cidadãos plenos. Em particular no campo da segurança pública, isso é mais complexo, pois as grandes cidades brasileiras trabalham com a ideia de “cidadela”: proteger e garantir as regras em determinado espaço da cidade, das classes dominantes, e a imensa maioria das periferias e favelas ficam entregues a um processo de privatização da regulação do espaço público. E aí as facções criminosas, o tráfico de drogas e as milícias terminam definindo as formas de controle desse espaço. A partir daí, surgem formas de combate por parte do Estado e de incursões em que se gera um processo de guerra do extermínio. Vivemos um círculo vicioso. O Estado não cumpre efetivamente o seu papel de regulador do espaço público de toda a cidade, esse processo faz com a regulação seja privatizada, essa privatização gera grupos criminosos específicos, principalmente traficantes de drogas, que são combatidos a partir da lógica do extermínio pelas forças de segurança do Estado, tornando a vida um inferno e absolutamente perigosa e precária. Ocorre um processo perverso em que os moradores das favelas são profundamente atingidos pela incapacidade do Estado de produzir efetivamente uma política para eles.

 

Como a favela pode se afirmar como espaço de resistência, criatividade e luta por direitos?

A forma que a gente tem de enfrentar isso e que construímos com a organização foi o que a gente chama de “paradigma da potência”. Pensar a favela a partir de suas potências é romper com o discurso da ausência e da carência e tentar ver o que ela tem. Certa vez uma amiga foi na minha casa, na Maré, ela nunca tinha entrado na favela, chegou no terceiro andar e falou: “É muito feia, né?” Eu falei: “Feios são seus olhos domesticados que não conseguem perceber quantos tipos de beleza têm aqui”. A vida, a beleza da solidariedade, a invenção de brincadeiras as mais diversas, a capacidade dessas pessoas produzirem novas formas de regulação do espaço público, a festa, a intensidade, a alegria que muitas vezes se faz presente por causa do número imenso de jovens e crianças. É um conjunto de belezas que você não reconhece porque está acostumado a pensar a beleza a partir de critérios mais formais. É a mesma coisa que se faz quando a polícia e o Exército entram e só veem ali o que há de risco. Especialmente porque estamos falando de uma população negra, que são basicamente pretos e jovens, os mais estigmatizados no espaço urbano.

 

Como as práticas e saberes populares podem ressignificar os espaços da favela?

O desafio principal é afirmar essa potência. Afirmar essa capacidade de invenção, de criação cultural que permeia a vida cotidiana dos moradores das favelas, especialmente da juventude. Por isso, não é casual que existam tantos projetos da juventude nas favelas e que produzam tanto impacto do ponto de vista da cultura e das atividades artísticas da cidade. Hoje o funk, o hip hop, o grafite, o passinho e tantas outras manifestações cada vez mais se tornam centrais. Então é um equívoco pensar as favelas como espaços periféricos. Cada vez mais as periferias se tornam centros. Elas assumem um lugar central de representação e configuração da cidade. Qualquer forma de regulação do espaço público nas favelas tem que ser a partir da participação de seus moradores, principalmente de seus jovens. O erro fundamental das UPPs [Unidades de Polícia Pacificadoras] foi a preocupação em controlar mais o espaço do que garantir o direito de seus moradores à segurança pública. Os comandantes queriam ser os novos “donos” das favelas e isso efetivamente não permitiu que elas se sustentassem.

 

Qual é o impacto da intervenção militar na vida de quem vive nas favelas?

A intervenção na Maré [abril de 2014 a junho de 2015] foi muito impactante, foi muito forte. Houve a presença ostensiva de mais 2 mil homens das Forças Armadas gastando mais de R$ 600 milhões e nesse processo ela se revelou um verdadeiro fracasso. Mesmo com a presença das Forças Armadas, os jovens traficantes estavam lá, agindo, e principalmente se fortaleceram mais ainda após a sua saída. Esse tipo de intervenção militar é a 13ª que nós vivemos no Rio de Janeiro, é um engodo, não tem nenhuma eficácia, nenhuma eficiência, viola o direito dos moradores em geral e trabalha principalmente com a lógica de guerra, que não cabe na segurança pública. A segurança pública não pode ser guerra. Tem uma necessidade de fazer um trabalho de inteligência, a longo prazo, que respeite o direito à vida de todos (dos moradores, dos agentes de segurança e dos próprios jovens criminosos) e que não tenha a lógica de extermínio como seu eixo de atuação. Essa intervenção é antes de tudo uma estratégia política. Não está no campo da segurança pública. E o objetivo é principalmente melhorar a popularidade do governo federal, mais do que qualquer outra coisa. Então ela é inaceitável. (LFS)

 

Autor: Luiz Felipe Stevanim
Fonte: Radis

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