(Pseudo)Humanismo e educação: das históricas centelhas humanistas à ressignificação das práticas cotidianas contemporâneas

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A educação pode reconquistar seu propósito e ser mobilizada na formação de um ser humano comprometido não com sua lucratividade futura (poder), mas com o sentido lato de sua existência. E, como Klein (2020) invoca, precisa-se começar agora, com a formação de professores sendo talvez a principal frente para essa (re)construção, oportunidade vigorosa de mobilização para a humanização.

Discursos humanistas são rotineiramente proferidos nos diferentes espaços da vida em sociedade, com agremiações (tanto laborais, quanto recreativas) sendo recorrentemente mencionadas como famílias. As redes sociais disseminam mensagens de apoio à saúde mental, evocando autocuidado e empatia. Nos ambientes corporativos, colaboração e parceria naturalizaram-se no léxico daqueles que, agora, não são mais citados como funcionários, mas como colaboradores. Coaches se tornam referência para a formação em serviço com suas mensagens de apoio e de motivação.

Em contrapartida, episódios envolvendo agressões físicas e psicológicas diariamente são publicizados, incongruentes ao vocabulário humanista empregado. Discordâncias em redes sociais levam a intermináveis debates que não agregam novas percepções sobre um tema, mas distribuem ofensas e inverdades. Disputas por posições no trabalho e atitudes entrelaçadas com autoritarismo resultam em trapaças e intrigas, que contrariam a lógica familiar e colaborativa tão apregoada. As mensagens motivadoras, ao invés de incentivarem o trabalho coletivo, apenas intensificam a preocupação individualizada sobre si.

Em escolas e universidades, rankings sintetizam a educação que se almeja alcançar, colocando a concorrência como prerrogativa para as relações e para as práticas pedagógicas; pais, alunos e professores se envolvem em embates corriqueiros; e projetos educativos são avaliados a partir compreensões reduzidas e, ainda, se estivem ligadas a uma lucratividade futura.

No cotidiano das escolas e universidades, a defesa de relações horizontais e harmoniosas está presente na documentação pedagógica, no entanto perpetuam-se as condutas de violência emocional. Mantidas por estruturas hierárquicas e que tendem a valorizar formas específicas de saber, bem como linhas e perspectivas epistemológicas rígidas, em muitos contextos naturalizam-se cenários opressivos (herança da educação tradicional, ancorada na metafísica medieval). O diálogo e a cooperação costumam se restringir aos Projetos Político-Pedagógicos arquivados, sem alcançar a esfera do cotidiano.

Tais contradições esboçam apenas um recorte de um contexto em que a humanização denota um viés transmutado, se não fake – em alusão à perspectiva na qual tem se pautado a disseminação de boa parte das informações hodiernamente.

Aproximando esse tema do campo educativo, questionamos: a que formação os espaços escolares e acadêmicos têm se dedicado? Quais propósitos têm sido constituídos na/pela escolarização? Quais teorias do conhecimento dominam e amparam as práticas? Como o rigor científico e intelectual perpetuou, em muitos contextos, vínculos impessoais, destituídos de afeto e empatia, e que não vinculam as experiências cognitivas a sensações de contentamento, solidariedade e coletividade?

Conjecturando acerca de explicações que possam vir a colaborar com o entendimento acerca das questões que inspiram esta escrita, recorremos a Charlot (2019), que indica estarmos vivendo uma crise antropológica. Para além do progresso civilizatório e da incorporação de direitos humanos ao longo das últimas décadas, o autor argumenta que há um espectro de barbárie que permanece nas relações sociais e irrompe a partir do nazismo, do fascismo e da intolerância, por exemplo. Ao mesmo tempo, o pesquisador argumenta que animais e robôs são humanizados, o que configura um cenário de indeterminação do humano, que reverbera em um silêncio da teoria educacional quanto à pedagogia contemporânea a ser construída.

No recente período de pandemia de Covid-19, a humanização parecia, em certos momentos ao menos, ser invocada e praticada socialmente, seja com a sensibilização a partir das mais de cinco milhões1 de vítimas em todo o mundo ou a partir da intensificação da precariedade laboral, que aprofundou a miséria e amplificou as distâncias entre os mais ricos e os mais pobres. Esse espaço-tempo singular conformou uma crise civilizatória, como argumenta Klein (2020), já que à crise sanitária somou-se a social, a econômica e também a ambiental, forjadas através de séculos de dominação branca, cristã e masculina amparada em uma concepção de progresso violenta e excludente. A autora canadense, frente ao exposto, defendeu que, mobilizados pela fratura que demonstrou como o mundo estava quebrado deveria ocorrer a imediata reparação.

Nesse sentido, seria necessário ressignificar a vida e pensar em uma forma na qual todos pudessem vivê-la bem, reformulando a ideia de progresso que, até hoje, somente destruiu e segregou, e que, com o aumento da utilização de meios tecnológicos nas indústrias, torna seres humanos inúteis, já que não são exigidos como mão de obra e, assim, também não usufruem de bens de consumo.

Para Klein (2020), se algo não for feito (ou refeito), chegaremos mais rápido para a extinção. Aproveitar-se da sensibilização constituída durante a pandemia seria o modo de iniciar o processo de reconstrução civilizatória, antes que algo pior acontecesse. E, de fato ocorreu: todos nós acompanhamos estarrecidos as guerras! O que será da humanidade?

Embora nosso percurso esteja nebuloso, insistimos na frágil possibilidade de cultivo da centelha humanista, herança da Antiguidade, na cultura grega, por Sócrates (469-399 a.C.), filósofo e educador, considerado o representante de maior notoriedade nesse período. Seu método formativo pretendia que o discípulo alcançasse a verdade, o conhecimento e o governo de si, estando apto, a partir de então, a bem governar o outro e a pólis (Goergen apud Dalbosco; Flickinger; Muhl, 2019).

Ainda na Antiguidade, os romanos também pensaram elementos constitutivos para a educação humanista e pretendiam sua universalização. O modelo de formação denominado Humanitas foi alicerçado pela sociedade romana. Nessa perspectiva, segundo Bombassaro, “o ser humano possui uma força criativa autônoma que o torna capaz de formar livremente a si e de atingir o mais alto nível de excelência” (2009, p. 199). Dentre os seus representantes, destacou-se Sêneca (por volta de 4 a.C. – 65), que prosseguiu com a ideia de educação para a vida, na qual o objetivo do homem seria aprender a viver de acordo com a palavra, dizendo o que sente e sentindo o que diz (Sêneca, 2018).

Mesmo que na Idade Média, outras vertentes tenham se destacado, prococando quase que o apagamento das centelhas da educação humanista, ela ainda assim resistiu, por isso acreditamos que ainda resistirá. Destacamos alguns representantes que trouxeram ampla contribuição e, por essa razão, devem ser nosso suporte atualmente: Comenius (1592-1670), Locke (1632-1740), Rousseau (1712-1778), Kant (1724-1804), Pestalozzi (1746-1827), Herbart (1776-1841), Humboldt (1767-1835), Froebel (1782-1852), Dewey (1859-1952), Carl Ransom Rogers (1902-1987). Todos, de alguma forma se tornaram referência por terem lançado ideias e teorias educacionais ancoradas no pensamento humanista, contrariando o modelo de educação vigente. Procuraram, construir um olhar diferenciado à educação, com a percepção refinada sobre o fato de o aprendiz ser ativo e capaz, com direitos de participação na própria formação. As ideias inovadoras desenvolvidas por estes autores romperam com os dogmas da educação conservadora, que recusava a existência de capacidades do ser.

São autores clássicos, como os mensionados, que nos ajudarão na tão urgente e necessária reestruturação de processos educacionais, para se tornem menos excludentes; para que nos indiquem uma forma de se repensar a sociabilidade e de se buscar a constituição de modos de vida mais igualitários, democráticos e sustentáveis, salvando-nos.

A educação, nessa perspectiva, pode reconquistar seu propósito e ser mobilizada na formação de um ser humano comprometido não com sua lucratividade futura (poder), mas com o sentido lato de sua existência. E, como Klein (2020) invoca, precisa-se começar agora, com a formação de professores sendo talvez a principal frente para essa (re)construção, oportunidade vigorosa de mobilização para a humanização.

Endereço do texto completo (para quem quiser conferir)

https://periodicos.uepa.br/index.php/cocar/article/view/7248

1 Este número, contudo, pode chegar a quinze milhões, como disponibilizado em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-61332581. Acesso em: 29 mai. 2023.

Autoras:

Ana Lúcia Vieira

Doutoranda em Educação pela Universidade de Passo Fundo (UPF).  Professora da rede municipal de ensino de Passo Fundo, Rio Grande do Sul, Brasil. Integrante do Grupo de Estudos Formação Humana (UPF), do Núcleo de Pesquisas em Filosofia e Educação (NUPEFE-UPF) e do Grupo de Pesquisa em Educação, Filosofia e Sociedade (Universidade Federal da Fronteira Sul – UFFS).

Renata Cecilia Estormovski

Doutoranda em Educação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), Rio Grande do Sul, Brasil. Professora da rede estadual de ensino do Rio Grande do Sul, Brasil. Integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas em Currículo, Ensino Médio e Juventudes (GEPCEM Unisinos/CNPq)

Edição: A. R.

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