Memórias de uma terra alagada

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Gostamos de contar histórias e memórias de vida no site. Histórias verdadeiras, vividas com intensidade, recheadas de desafios e realizações. Algumas histórias mantém cicatrizes de realidades que foram impostas e que resistem ao tempo.

Contaremos a história da professora Elaine Jovita Busch e de sua família, que teve de deixar, ainda criança, às pressas, o lugar onde nasceu e onde viveu parte de sua infância.

Sua família, como a de outros tantos, teve de sair de suas terras para dar lugar a um grande lago no ano de 1970: a Barragem do Passo Real, Salto do Jacuí, RS.

Muitas destas famílias, como a de Elaine, foram reassentadas no município de Pontão-RS, o qual tem uma relação muito forte com os reassentados do Passo Real, conforme apuramos com moradores que conhecem bem esta história.

No ano de 1972, 54 famílias foram reassentadas, estabelecendo-se na Comunidade Sagrisa. Em 1974 e 1975, mais 57 famílias foram reassentadas em em terras da Fazenda Anonni. Em 1985-1986, com a ocupação da Fazenda Anonni, mais 57 famílias se incorporaram na luta por terra e conquistaram seu lote, fixando-se por aqui.

Muitos destes moradores, forçados a sair de sua terra, tiveram muitas dificuldades de adaptação neste novo lugar. Muitos mantiveram desejos de voltar, o que nunca mais se concretizou. Com a enorme seca que assolou o RS em 2020, o grande lago da Barragem do Passo Real quase secou e muitos deles puderam novamente pisar a terra sagrada de onde vieram e matar um pouco de saudades e religar-se às suas origens.

Segue o depoimento de Elaine Jovita Busch.

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O lugar afetivo deu lugar a um grande empreendimento

Por ocasião da estiagem que assolou nosso Estado, uma das mais longas, em 2020, segundo moradores mais antigos do atual município de Quinze de Novembro, pude visitar o lugar onde nasci e vivi os primeiros anos da minha infância. 

Sentados em tocos das árvores que permaneceram no local, após mais de 50 anos de inundação nos perguntávamos: era mesmo tão necessário o deslocamento de tantas vidas, tamanha destruição ambiental, a perda de grande área de plantio de alimentos para a geração de energia elétrica?

Em 1968, iniciava a construção do maior lago artificial do Estado do Rio Grande do Sul, fazia parte do plano de desenvolvimento econômico dos governos da época. Parte das metas, a construção de hidrelétricas para o fornecimento de energia.  Era o progresso? Mas que progresso é esse que destrói o ambiente, desloca milhares de pessoas? Acaba com sonhos das pessoas? É preciso considerar benefícios da eletricidade, mas são possíveis alternativas de produzir energia.

A construção de hidrelétricas foi incentivada pelos governos brasileiros em toda a história do país, pelo aproveitamento das abundantes águas dos rios.

Nos governos décadas de 60 e 70, pois segundo segundo Martins (2009, p.61), “o caráter centralizador e autoritário assumido pelo Estado, contribuiu para que a expansão do sistema elétrico assumisse uma forma particular, caracterizada pela construção de grandes barragens que pouco considerava questões sociais ligadas às comunidades rurais e aos impactos ambientais associados. Portanto, na maioria dos casos, a construção das usinas e as consequentes inundações acabavam atingindo um significativo número de pessoas que tinham de deixar suas terras sem muita escolha, recebendo pequenas indenizações em dinheiro ou ficando à mercê da incerteza de serem reassentados. (Stefanelo)

Um vídeo que demonstra a
grandiosidade do lago do Passo Real, 2016.



A identidade e os hábitos de quem foi forçado a sair

Dentre as consequências para as pessoas que tiveram de deixar este lugar, destacam-se as mudanças que ocorreram nos hábitos e a perda de identidade. 

Sobre a perda de identidade, reporto-me à minha infância, pois na época não estavam preocupados com os sentimentos, com os sonhos das pessoas, principalmente das crianças. Mas, eu estava lá e posso afirmar que apesar de ter tido uma infância humilde, devido às precárias condições econômicas de minha família, foi repleta de brincadeiras e de boas convivências com a família, parentes e amigos.

As lembranças que tenho são como feedbacks de acontecimentos, que me vem à memória desde o chiqueirinho, onde ficava dentro de casa para a mãe fazer o trabalho de casa, do trabalho na terra da minha mãe e irmão, do porquinho que eu tinha ganhado de meu pai e que virou carne frita, dos coelhos do meu irmão, que soltei sem querer, porque queria tratá-los, o longo trajeto a pé que fazia para ir à escola. Os Cultos nos domingos de manhã. Ir à igreja era especial, colocar a melhor roupa. 

O que mais lembro eram os passeios nas casas das primas, das brincadeiras de casinha e de bonecas.

Os passeios e brincadeiras se estendiam, com as amigas, geralmente filhas das “comadres”, tinha várias madrinhas e padrinhos, como era o costume da época. Debaixo dos pés de mandioca, era nosso lugar preferido, confeccionando cadeirinhas e outros objetos com as folhas e galhos dos pés de mandioca. O nosso mundo imaginário feito com (hoje chamamos de material não estruturado), pedaços de madeira, sabugos de milho e outras coisas, montamos nossas casinhas. Não tínhamos brinquedos comprados.

Tempos bons, nos Natais e Páscoas, não ganhávamos chocolates como hoje, eram pacotinhos de bolacha pintada e pés de moleque de amendoim e no máximo casquinhas de ovos também com amendoim. Tínhamos o costume de ir na casa das madrinhas e padrinhos buscar o nosso “pacotinho”.

Lembro que numa Páscoa minha mãe fez o ninho com barba de pau e colocou nele uma varinha, sinal de que não havia me comportado durante o ano. Nossa aquilo soou muito mal e passei a noite aos prantos. Mas, a surpresa é que no outro dia o ninho de páscoa estava cheio. Teve um natal memorável que passamos na casa de uma madrinha, pela primeira vez vi um papai-noel. (Depois achei a roupa do Papai Noel em casa, era o meu irmão). 

Nos sábados pela manhã, era costume do meu pai ir até a venda, que ficava a uns três quilômetros de casa comprar alguns suprimentos, eu não via a hora, imagino como se fosse hoje vê-lo de longe, com uma mala de pano que colocava nos ombros, esperar os caramelos que trazia. Éramos felizes.

A vizinhança entorno do lugar era algo especial, uma grande família, onde a ajuda mútua era considerável, expressando-se por exemplo na forma dos “puxirão” realizados em épocas de plantações e colheitas, feitas manualmente, que às vezes ocorriam também à noite sob a luz da lua. Também nas construções das casas e galpões, nas trocas do pedaço de carne no abate de um animal para o consumo, nas celebrações e muitos tantas outras ocasiões. 



O dia da mudança

Até que um dia, alguma coisa estranha acontecia, que eu não conseguia entender. Porque naquela época, criança não participava de conversa de adulto.

Percebi, pela reação dos meus pais, que tínhamos que sair de lá, mas hoje entendo o meu pai, assim como demais moradores.

Eu não acreditava que realmente uma imensidão de água iria inundar tudo. Só fui entender anos depois. Lembro que um dia, fomos num lugar que tinha um prédio enorme, praticamente dentro de um grande buraco e lá dentro tinha umas máquinas que faziam um barulho estarrecedor, não se ouvia o que as pessoas falavam. Eram as turbinas da barragem. Acho que os adultos foram até lá para acreditar no que estava para acontecer.

Dias depois, às pressas carregamos a mudança num caminhão. Morava conosco minha avó paterna, lembro claramente ela subindo no caminhão de mudanças, estava doente, foi a última vez que a vi e logo após veio a falecer.

Foi muito triste. E, da próxima vez que lá voltamos, o inacreditável havia acontecido: estava tudo submerso, as árvores, os pinheiros. 



Revendo o lugar onde nasci e vivi parte da minha infância

A impossibilidade de visitar o lugar em que nasci me inquietou por todos esses anos. Frequentes pesadelos com água, a causa pela qual tivemos que deixar o lugar. É literalmente uma perda de identidade.

Mas ao voltar lá, naquele lugar onde nasci e cresci nos primeiros anos de minha vida, o sentimento de vazio não diminuiu e a tristeza tomou conta. Talvez tivesse ainda esperança de encontrar algo a mais do que restou, apenas os tijolos do alicerce da casa, troncos de árvores secos, alguns restos de ferramentas de trabalho, consumidos pela ferrugem. Buscamos em cada objeto um pouco da história das pessoas queridas que já não estão mais entre nós, o pai, a mãe, a avó.

As relações que tínhamos construído com parentes, amigos e vizinhos que não podem ser devolvidos e colados de volta. Veio-me à mente cada pessoa que neste lugar também vivia, pois não se trata só da memória pessoal porque nossa vida não é construída individualmente, a nossa memória é ligada a outras pessoas, somos por natureza seres sociais e vivemos em comunidade, cultuando tradição e costumes que são coletivos. 

Não considero somente as saudades das pessoas queridas, mas a falta desta convivência nestes anos. Esta constituição enquanto sujeitos, que é de certa forma quebrada ao termos que mudar de lugar. A falta que faz esses anos de convivência sequestrados à força, é algo doído.

Claro que se constroem novas relações, mas é um processo bem lento, que até mesmo para os adultos é difícil (meus pais por exemplo, nunca se acostumaram no novo local onde residiram, tanto que pediram para serem sepultados no lugar de origem). Não são as mesmas da infância. Porque ser criança é algo especial. Para a criança, o seu mundo é aquele, o qual não cabem muitas coisas, a não ser as do “lugar” onde mora.

Sem dúvida, a energia elétrica trouxe o progresso, mas a um custo social alto, que não pode ser reversível. Fico pensando que hoje deveríamos evitar estes custos e este sofrimento de tanta gente com formas alternativas de geração de energia, que sejam menos agressivas ao meio ambiente e que mantenham relações equilibradas entre as pessoas, suas relações, a flora e a fauna.



Fotos: Arquivo pessoal/dia da visita ao local de moradia da família.

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