Em tempos de pandemia, confiança na medicina e em bons médicos

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Doutor Júlio César Stobbe é médico especialista em Clínica Médica com área de atuação em Medicina de Urgência e Emergência, formado pela UPF com experiência em Gestão Hospitalar e, atualmente, na Direção do Campus de Medicina na UFFS (Universidade Federal da Fronteira Sul), de Passo Fundo, RS.

Em nossa cidade e região, teve seu trabalho conhecido e reconhecido quando do enfrentamento da crise do H1N1 no ano de 2009. Na época, coordenou importante trabalho no HSVP (Hospital São Vicente de Paulo), o qual foi determinante para salvar muitas vidas.

Durante todo o evento da pandemia do COVID 19, Doutor Júlio tem se destacado na discussão sobre o tema. É membro do COE (comitê criado pela Prefeitura Municipal de Passo Fundo para orientação técnica das ações de combate à pandemia). Participa também de debates sobre o tema, faz esclarecimentos à comunidade através das rádios e TVs locais.

Nesta entrevista, Stobbe vai nos falar de sua experiência pessoal, de seu trabalho no “front da H1N1” e dos desafios da medicina e da sociedade no enfrentamento ao COVID 19.

SITE NEIPIES: Doutor Júlio, gostaria que o Senhor falasse um pouco sobre sua profissão, o que mais lhe realiza e o que mais lhe desafia na medicina?

JULIO STOBBE: A medicina surgiu em minha vida por opção. Já estava trabalhando como professor, quando decidi fazer medicina. Fiz todo meu curso trabalhando para pagar as mensalidades em IES privada, foi uma dura batalha mas, conclusa dentro do prazo normal. A medicina, apesar dos inúmeros problemas enfrentados em relação ao seu financiamento no Brasil, é muito compensadora. O maior desafio é conseguir exercê-la de forma ética levando em consideração todas as suas múltiplas dimensões para então oferecer um real benefício à população.

SITE NEIPIES: O senhor foi uma liderança médica importante quando do enfrentando da H1N1. Quais são as diferenças e quais são as semelhanças entre H1N1 e a COVID 19?

JULIO STOBBE: A COVID-19 tem uma letalidade e transmissibilidade maior do que o H1N1. A COVID-19 tem uma taxa de letalidade média em torno de 2-3%, o H1N1 era em torno de 0,02-0,4%, o SARS-CoV  9,5%, o MERS –CoV 34,4% e outros como o EBOLA 63%. Portanto, sua letalidade não é das maiores. Porém, num país com mais de 200 milhões de habitantes, tem um alto impacto. Em relação à capacidade de transmissão uma pessoa doente com o COVID-19 transmite o vírus à outras 2,74 pessoas em média. A taxa é maior que a observada na pandemia de influenza H1N1 em 2009 onde 1 pessoa transmitia à outras 1,5 pessoas, em média.

SITE NEIPIES: Passo Fundo se destaca pelos altos números de pessoas oficialmente infectadas e, principalmente, pelo alto número de mortes -somos a cidade do RS que, hoje, tem o maior número de mortes, inclusive em maior número do que Porto Alegre. Por quê?

JULIO STOBBE: O elevado número de infecções tem vários fatores: por ser polo regional o elevado número de pessoas que circulam, ser centro de referência médica (maior precisão diagnóstica e maior coleta de exames) e, aliado à isso tudo, um surto ocasional em determinado frigorífico que, sem dúvida, colaborou sobremaneira para espalhar o vírus.

A taxa de mortalidade ocorre em função de dois fatores principais: muitos idosos com múltiplas comorbidades contaminados pelo vírus e por muitos deles serem testados para COVID-19 com sintomas atípicos (precisão diagnóstica).

A previsão é de que esses números irão se igualar, proporcionalmente, em todos os locais, porém em tempos diferentes.

SITE NEIPIES: O combate à pandemia do COVID 19 passa somente pelos MÉDICOS – HOSPITAIS –LEITOS DE UTI – NÚMERO DE RESPIRADORES? Que outras estratégias são necessárias para maior êxito neste combate?

JULIO STOBBE: Certamente, o mundo não presenciou uma situação pandêmica tão rápida quanto essa e com resultados tão avassaladores quanto nessa ocasião. Isto impactou na saúde, e de forma certeira, na economia mundial, fazendo com que a própria ordem econômica de alguns países seja alterada.

Na saúde, de forma muito ampla, o cuidado na assistência adequada de grande número de casos é primordial. Esse cuidado vai desde as medidas preventivas, perpassando pela atenção básica (onde serão atendidos 80% dos casos) culminando com a alta complexidade das unidades de terapia intensiva. Funciona como uma grande corrente circular onde todos os elos têm igual importância e funcionamento sincrônico.

SITE NEIPIES: No Brasil e no mundo, cidades estão testando e experimentando Planos de Contingenciamento, que incluem saber quem são os infectados, suas condições reais de isolamento e monitoramento “in loco” da situação dos afetados pelos sintomas ou pelo próprio COVID. Em nossa cidade, pacientes com suspeitas da COVID são atendidos por médicos e aconselhados a ficar em casa, aguardando a melhora ou a piora do seu quadro de saúde. Por que iniciativas como estas, de Contingenciamento, não estão sendo aplicadas em Passo Fundo?

JULIO STOBBE: São modelos diferentes, a China optou por esse exemplo de isolamento in loco. No Brasil não foi essa a opção escolhida por inúmeros problemas estruturais e até por dificuldades legais. Outro grande entrave é que não dispúnhamos de testes em larga escala para fazer os diagnósticos dos possíveis casos para o isolamento.

SITE NEIPIES: O isolamento social tem sido adotado no mundo inteiro como estratégia para conter o rápido avanço da doença. O que o Senhor pensa disso?

JULIO STOBBE: O isolamento social é um aliado antigo, porém eficaz. Ele retarda a velocidade de propagação da doença evitando, dessa forma, o surgimento de uma catástrofe em nossa assistência à saúde (quando se suplanta à capacidade instalada). Não irá, possivelmente, impedir a evolução da doença permitindo que todos tenham acesso ao cuidado, quando necessário.

SITE NEIPIES: O Conselho Municipal de Saúde e o COE (Comitê de Emergência), do qual o Senhor é membro, tem conseguido ajudar e influenciar positivamente nas definições das estratégias de combate ao COVID 19?

JULIO STOBBE: O COE do município de Passo Fundo, felizmente, tem um grupo técnico muito atuante e coeso. Reúne as três Universidades com Cursos de Medicina e os três maiores hospitais. Essas entidades, pelos seus representantes, conseguem dar um suporte técnico importante na tomada de decisões pela gestão do município.

SITE NEIPIES: Como o senhor avalia a criação do Comitê Popular por Saúde, Democracia e Direitos (com participação de mais de 40 entidades), criado na cidade com a intenção de levantar, propor demandas e cobrar atendimento de necessidades sociais decorrentes desta pandemia?

JULIO STOBBE: A criação desse Comitê é de grande valia no apoio social à população que sofre os maiores pesos da crise: desemprego, doença, insegurança alimentar, violência em todo seu espectro.

Essas ações não são discutidas nessa amplitude pelo COE. A parte Social é muito mais vasta que simplesmente as decisões de saúde no apoio à gestão.

SITE NEIPIES: Qual será, na sua avaliação de médico e especialista em epidemias, fator determinante para uma volta segura das aulas em todas as redes de ensino, em especial, na rede pública?

JULIO STOBBE: O retorno às atividades escolares, possivelmente, seja um dos últimos grupos a serem implementados. Teremos, antes disso, grandes oscilações de abertura e fechamento de outras entidades.

O retorno às aulas dependerá do grau de imunização da população e a segurança de que não estarão ocorrendo grandes surtos de doença. Pois, são conhecidas as dificuldades de controlar uma grande número de crianças e adolescentes em relação à medidas de distanciamento. Até mesmo, pela quantidade de pessoas em espaços que acabam ficando pequenos por essa alta densidade de estudantes.

SITE NEIPIES: Como o senhor vê a relação da medicina praticada no Brasil, considerando as diferentes realidades sociais e econômicas de nossa sociedade?

JULIO STOBBE: O Brasil penou muito tempo com um modelo hospitalocêntrico de medicina. Desde o senso comum da população, até a formação médica esteve nesses moldes. Nos últimos anos, com a criação das novas escolas médicas esse foco está mudando e isso possibilitará uma maior capilaridade dos profissionais nas comunidades. Outro grande desafio que deverá ser ajustado é a capacidade de trabalhar em conjunto, em equipe com os demais profissionais. Isso irá promover um grande crescimento no cuidado à pessoa.

SITE NEIPIES: Apesar dos pesares, na sua opinião, como o Brasil sairá destas grandes crises do atual momento histórico (crises sanitária, econômica e política)?

JULIO STOBBE: O Brasil sairá, não há dúvida. No entanto, se o governo federal trabalhar em conjunto com os estados e municípios, isso seria mais fácil de ser enfrentado. Temos de entender que há uma epidemia mundial e não é um complô contra o governo. Mas talvez isso seja difícil de ser alcançado pelos fatos vistos dia pós dia. Penso que serão as ações locais e estaduais que ajudarão de maneira macro a população.

SITE NEIPIES: Quais são suas perspectivas, como médico e como cidadão, para o futuro pós pandemia?

JULIO STOBBE: Deveria ser otimista. Mas será muito difícil termos grandes mudanças comportamentais. As medidas serão lembradas por um período muito curto porque não fazem parte dos costumes dos indivíduos.  Caberia aos grandes gestores entenderem a importância de um Estado forte para poder dar sustentação à população em momentos como esse. Mas, possivelmente, não seja essa a política que trabalha com o viés de Estado Mínimo.




Em 13 de abril, Júlio Stobbe teve participação em programa importante Hora Atividade do CMP Sindicato. Assista:




Em 12 de maio, Paulo César Carbonari, Coordenador do Comitê Popular por Saúde, Democracia e Direitos participou de importante entrevista sobre ações e cobranças das entidades da sociedade civil organizada em Passo Fundo, RS.




Fotos: divulgação/arquivo pessoal

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