Dívida ecológica

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O estilo de vida – ocidentalizado e centrado no consumo ostensivo –
que pauta a realidade do mundo moderno é altamente
insustentável porque afeta a capacidade de carga da Terra
e força o planeta a uma crise ambiental cada vez mais hostil.


No tempo atual, parece não haver nada mais urgente que a afirmação seguinte, ainda que possamos dela discordar: nossa manifestada presença na Terra tem sido caracterizada, de um lado, por uma humanidade esclarecida (com um grau elevado de conscientização), mas, de outro, por uma humanidade obscurecida; tão obscurecida que, de todo modo, é capaz de ignorar que a biosfera não dá conta de suportar as crescentes e insaciáveis demandas humanas.

E tudo indica que ao menos uma boa parte do problema, não é demais frisar, está justamente aí: em prol de atender essas ilimitadas demandas humanas, não nos damos conta dos contratempos decorrentes, haja vista que já chegamos num momento – não me esquivo a afirmar que nos aproximamos de um perigoso ponto de conflito – em que as forças dominantes conseguiram colocar o “consumo” no lugar da “cidadania”. Na figura de cidadão do mundo (sustentado pela Terra), cada vez mais o homem moderno se encontra, pois, diante de desafios ambientais que atinge a todos, seja a parte da humanidade esclarecida ou a obscurecida.

Dada a gravidade da situação em curso que, é presumível assim imaginar, contribui para aumentar as preocupações sobre o futuro do planeta, é esperado que o sujeito humano se esforce e aperfeiçoe seu poder transformativo. Conquanto, não tenhamos dúvida que isso requer dose de coragem o suficiente para virar a página da história da abundância material que vem marcando esses últimos tumultuados e trevosos tempos.

De toda sorte, é bom que se diga às claras que há sim boas razões para acreditar nessa confortável possibilidade, principalmente se houver interesse em aprofundar o processo de conquista de consciência planetária, seja dito, condição de estar atento e ser cuidadoso com os destinos do planeta que nos acolhe, e não se esquivar de condenar o conteúdo antiecológico do capitalismo.

Para quem deseja apostar nesse horizonte, há suficiente razão (i.e., a faculdade da síntese) para imaginar que o desenvolvimento (em toda a sua vertente, social, humano, econômico, ecológico) poderá substituir, no breve tempo futuro, a política de expansão das economias modernas, superando de vez esse monstrengo chamado de “crescimento”, movimento capaz de tornar a economia maior, mas não necessariamente em uma condição melhor.

Não é o crescimento da economia, esclareça-se em definitivo, que deixará a vida de cada indivíduo mais ou menos vibrante. O crescimento econômico correlacionado ao aumento do PIB, dizem os especialistas, é algo naturalmente desigual que apresenta certa facilidade para gerar desequilíbrios, sejam eles intersetoriais ou inter-regionais. Isso ocorre porque sempre haverá uma parte (ou mesmo algum setor) crescendo mais e em velocidade maior que as outras; daí a afirmação, polêmica, dirão alguns, de que o crescimento não apenas gera como também aprofunda desigualdades, e não necessariamente a reduz.

Dito isso, interessa então falar aqui de uma desigualdade econômica que, à luz de esclarecimentos, está completamente fora de controle. Serve de exemplo: i) dados compilados em 2019 deixam em evidência que os 2.153 bilionários do mundo têm mais riqueza do que 4,6 bilhões (60% da população mundial); ii) caso se separe os 22 homens mais ricos do mundo notar-se-á que eles têm mais riqueza do que todas as mulheres de África.

Entretanto, seria injusto e impreciso não citar algumas das vantagens e/ou benefícios gerados pelo crescimento. Eles existem e precisam ser devidamente anunciados.



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Mas para não tornar o assunto demasiado enfadonho, limitar-nos-emos a citar, por exemplo, que uma das vantagens que o crescimento traz consigo – e jamais se deve negar isso – é a possibilidade da criação de políticas sociais. Algo que no Brasil representa 20% do PIB e contribui em duas frentes para incentivar o próprio crescimento, a partir do fortalecimento do mercado interno de consumo de massas, e da ampliação dos investimentos na expansão da infraestrutura, enfrentando as muitas deficiências estruturais na oferta de serviços públicos.

Nessa direção, ouso assinalar que o crescimento terá considerável contribuição na redução de desigualdades – embora não seja o suficiente – caso proporcione igualdade de oportunidades, o que objetivamente inclui pontos-chave como educação, acesso ao crédito, salários iguais, e assim por diante. A igualdade de oportunidadesé tão importante para o desempenho econômico que o relatório “Situação da População Mundial 2017”, lançado pelo Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), mostra que empresas que promovem a igualdade tem uma probabilidade 32% maior de serem mais lucrativas, se projetando à frente das demais concorrentes. O que é preciso levar em conta, nesse caso, é a existência de uma associação positiva entre igualdade de gênero, PIB per capita e níveis de desenvolvimento humano.



Terra chega à sua sobrecarga de recursos naturais.



Ademais, a imediata redução das desigualdades de gênero, frise-se, é bem entendida como fator determinante para que o mundo consiga atingir em 2030 os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS). Não por acaso, lê-se nesse mencionado relatório que os homens ocupam 76% da força de trabalho global, enquanto as mulheres representam 50%. O valor pago às mulheres – apenas metade delas em todo o mundo possui emprego remunerado – corresponde a 77% aos dos homens.

Indo direto ao ponto, depreende-se o seguinte: enquanto persistir diferenças de gênero (corriqueira atitude que, a meu ver, margeia a ignorância), muito mais complicado será levantar um bom e eficaz sistema de amparo e proteção social capaz de promover a prosperidade humana.

II

O estilo de vida – ocidentalizado e centrado no consumo ostensivo – que pauta a realidade do mundo moderno é altamente insustentável porque afeta a capacidade de carga da Terra e força o planeta a uma crise ambiental cada vez mais hostil. Desde há muito já está claro que esse ponto, expresso no dinamismo do mercado econômico, não levará a comunidade humana para um porto seguro.

Acredito, todavia, que não é preciso levantar e aprofundar a discussão do que é entendido por dinamismo do mercado econômico, salvo para destacar o fato – relevante, segundo suponho – de que é desse modo que o planeta vai sendo literalmente devorado, ajudado pelos múltiplos interesses em torno do extrativismo. Aqui fala-se abertamente de interesses que guiaram muitas das escolhas feitas em diferentes períodos da história humana; especificamente em relação aos interesses que comandam as políticas extrativistas.

O ponto de partida, se observado apenas pelo âmbito da América Latina, é reconhecer, como o faz o economista equatoriano Alberto Acosta, que os governos neoliberais e os governos progressistas, em diferentes momentos, colocaram suas expectativas de desenvolvimento em uma expansão acelerada do extrativismo.

O problema a ser devidamente acentuado, assim confirma Acosta, é que em nenhum caso ocorreu a transformação da matriz produtiva. Tudo se mantém como sempre foi; e sequer se tenta afetar a lógica de acumulação do capital. A rigor, é justamente isso o que leva Acosta, estudioso do assunto, a afirmar taxativamente que se trata “apenas de modernizar o capitalismo. É por isso que, embora tenham reduzido a pobreza, graças ao enorme rendimento das exportações de matérias-primas, os ricos enriqueceram ainda mais”. (1)

O que vale anotar aqui, eliminando dúvidas, é que pouco importa às forças dominantes quais são as contraindicações de todo esse específico dinamismo. Uma vez pautado sistematicamente pela incontrolável ideia (obsessão macroeconômica) de aumentar a produção material, o interesse que se sobressai é o de fazer o PIB crescer, indicando com isso o nível de sucesso de nações e governos. Entrementes, isso permite dizer que, enquanto aumenta-se o fanatismo no princípio do crescimento, de um lado, exacerbam-se os muitos contratempos (ecológico e ambiental, em destaque) do mundo social, de outro. Daí a argumentação corrente de que nos últimos 150 anos, à medida em que o crescimento econômico avançava em diferentes períodos, as indústrias do mundo moderno seguiam poluindo o ar e modificando severamente o meio ambiente.

Ora, sem que se transgrida os fatos verdadeiros, é dado observar que isso configura, ao fim e ao cabo, uma situação na qual a categoria humana é severamente empurrada à convivência com um desconfortante desequilíbrio ecológico-ambiental, cujos exemplos, cada vez mais perceptíveis, pululam diante de cada um de nós. Basta atentar que “(…) mais da metade do carbono dissipado na atmosfera devido à queima de combustíveis fósseis foi emitido apenas nas últimas três décadas. E mais: apenas nos últimos quarenta anos, diz o World Wildlife Fund (WWF), mais da metade dos vertebrados do mundo morreu. É cada vez mais óbvio, portanto, que estamos no olho do furacão, em meio a uma crise ecológica produzida por nós mesmos, tal como escreve David Wells.

Essa crise, podendo ser vista por vários ângulos, mas abusando de ilustrativos exemplos, mostra que teremos vagando por aí nada menos que 200 milhões de refugiados do clima até 2050 – assim projeta as Nações Unidas (UN). Detalhe importante: essa crise mostra ainda que “é impossível pensar em recuperar o equilíbrio do sistema da Terra sem abandonar a lógica do capital, que tudo converte em mercadoria e faz da crise uma oportunidade para novos lucros”, escreve Pablo Solón, ativista ambiental boliviano.

Trata-se, então, sistematicamente de uma crise que tem suas raízes no modelo de economia que prega o expansionismo como “salvação” do mundo moderno, colocando o avanço econômico como o responsável direto pela boa vida das populações. E como não mais se pode pensar os problemas ambientais como meras ocorrências isoladas, insista-se aqui para dizer em tom de esclarecimento que, se desde os últimos 150 anos as economias globais (umas mais outras menos), têm ajudado a desequilibrar ecologicamente o planeta, tão somente nos últimos 60 anos os humanos sobrecarregaram exaustivamente os mais importantes ecossistemas conhecidos, afetando sobretudo as macroestruturas do sistema Terra.

Veja-se, a priori, que o sistema de águas, principalmente quando percebido o nível de esgotamento dos oceanos, o maior dos ecossistemas existentes e, de longe, o grande “sistema de suporte à vida”, nos dizeres de Sylvia Earle, (2) talvez seja o mais ilustrativo dos exemplos. Afora isso, já se sabe que até 2048, caso não haja radical mudança de postura, os oceanos atingirão um ápice em que não mais será permitido a retirada de recursos alimentares, uma vez que a excessiva atividade de pesca não respeita o tempo de reposição dos cardumes.

É curioso e bastante assombroso constatar que o gênero humano não dá importância aos oceanos; e sequer percebem com alguma clareza que são os oceanos que controlam o clima planetário, uma vez que absorvem grande parte de dióxido de carbono da atmosfera, retêm 97% da água da Terra e abriga 97% de sua biosfera. Logo, é imprescindível levantar esforços para colocar um fim à degradação dos oceanos que, como se sabe, segue prejudicado porque um terço do CO2 produzido pela atividade econômica acaba sendo absorvido pelas águas oceânicas, tornando-as imediatamente mais ácidas.

Mas repare no que segue: quando foi explicitado linhas acima que a atualmente excessiva atividade de pesca não permite tempo de reposição dos cardumes, em tom de acusação se quer anunciar, clara e abertamente, a existência de um déficit ecológico que a humanidade vem provocando no mundo biofísico. Um déficit que ocorre a cada ano num período de tempo cada vez mais curto. Por conseguinte, isso exige um oportuno esclarecimento: calculado pela Global Footprint Network, considerando quatro fatores principais, quanto os ecossistemas são capazes de produzir; quantas pessoas existem no planeta; quanto essas pessoas consomem; e, com que eficiência os produtos são feitos, foi observado que em 2019, por exemplo, o planeta Terra entrou no “cheque especial” no dia 29 de julho.

Para ser objetivo, significa dizer que os 7,6 bilhões de habitantes do planeta consumiram todos os recursos naturais que o planeta consegue regenerar em um período de um ano em apenas 210 dias. Por isso a velocidade de consumo, nesse caso, é 74% maior do que a capacidade de a Terra se regenerar. Desnecessário enfatizar, quero crer, que aí está um “drama” (tornando aceitável esse termo) que contribui para alterar o sistema de funcionamento da Terra.

Pois bem, uma vez mais olhando com relativa atenção o uso excessivo de recursos da natureza, e misturando aqui, para efeito de boa compreensão, uma linguagem econômica com a ecológica, a metáfora a seguir esclarece o real perigo que representa essa última passagem: quando a Terra “entra” nesse mencionado cheque especial, a humanidade imediatamente contrai uma “dívida ecológica” que, a olhos vistos, tem sido cada vez mais difícil de pagar.

Uma dívida que vem expressa na forma de esgotamento ecológico, escassez de água potável, criminosa perda de biodiversidade, erosão do sistema solo, acúmulo de dióxido de carbono na atmosfera, acidificação dos oceanos, empobrecimento biológico. Ou seja, por toda essa série de agudos descompassos ambientais, acentuam-se consideráveis prejuízos que de imediato comprometem a qualidade de vida.

Essa dívida ecológica, é certo afirmar, atesta o quão insustentável tem sido o estilo de vida moderno, uma vez que cria condição de manter boa parte da comunidade humana (principalmente a população que não encontra mecanismo de defesa, dado o estado de vulnerabilidade do qual padece) bem mais próxima das dores de um mundo que aumenta e muda rápido demais face a existência de um relacionamento marcadamente hostil entre o homem, a economia e a natureza.

Diante de receitas e diretrizes econômicas impetuosamente impostas para fazer avançar o produto monetizado, é chegada a hora de chamar a atenção para algo relevante: se cada vez mais a biosfera – i.e., “a esfera da vida”, como escreve Carl Folke – tem apresentado evidências de estar no limite de sua resiliência ecossistêmica, dir-se-á com notoriedade que a partir de certo tamanho da economia os custos socioambientais advindos de um patamar extra de crescimento ultrapassam eventuais benefícios de bem-estar material.

Feita mais essa advertência, e para voltar agora ao ponto inicial deste artigo, eleve-se as esperanças para o que a economista britânica Kate Raworth – a partir de sua já célebre abordagem da “economia donut” – espera que aconteça em breve, isto é, que os economistas se tornem de certo modo “agnósticos” e não “viciados” em crescimento econômico; até mesmo porque, no lugar de se conceber atividades econômicas à serviço da vida, o que se tem hoje, fato concreto, é o sujeito humano aprendendo com invejável rapidez a desvirtuar as chamadas boas condições conhecidas, entre essas a de colocar a vida à serviço da economia de produção, contrariando desse modo o papel social de uma ciência que nasceu para dar respostas afirmativas em torno da vida humana.



Notas:
https://diplomatique.org.br/alberto-acosta-governos-progressistas-apostaram-na-expansao-do-extrativismo/
S. EARLE, A Terra é Azul. São Paulo: SESI, 2018
Economista, ativista ambiental e Mestre em Integração da América Latina pelo Programa de Pós-Graduação Integração da América Latina (PROLAM), da Universidade de São Paulo (USP). Autor de Economia destrutiva (CRV, 2017) e Civilização em desajuste com os limites planetários (CRV, 2018). prof.marcuseduardo@bol.com.br

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