Depois daquele olhar

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Nosso conhecimento científico, que nos permite usar informação de forma discriminada, é um conhecimento humano de mundo. Formatamos mentalmente um universo humanizado.

A cena emblemática é descrita pelo professor de psicologia da Universidade de Chicago, Eugene T. Gendlin, em artigo que assina no Journal of Consciousness Studies, v.6, n.2-3, 1999, p. 232-237: A new model. Um cientista chega à casa e olha nos olhos do filho pequeno, que lhe retribui o olhar. Não dizem nada. Imagino que, pelo menos interiormente, tenham sorrido um para o outro. E o cientista pensa: que triste que você é apenas uma máquina! (Isn’t it sad that you are really just a machine!)

O exemplo não faria tanto sentido, caso o modelo de prática científica mais bem sucedido, até agora, não fosse exatamente o de universo visto como uma máquina, tal qual preconizou René Descartes. Em que imaginamos ou admitimos conhecer algo apenas quando depois de separado em suas partes fundamentais (unidades componentes) conseguimos reconstruir o todo. É o reinado absoluto das disciplinas na ciência e das especializações nas áreas técnicas.

Não obstante todo o mérito e as contribuições deixadas pelo pensamento cartesiano na ciência, esse é apenas um método. Felizmente, há outros.

Muitas propriedades desaparecem (e outras surgem), quando um sistema é reduzido às suas partes componentes para depois ser reconstruído como se fosse uma máquina. O modelo ecológico tem uma visão oposta: tudo faz parte do todo. Por isso é ilusório pensar que é possível conhecer plenamente uma parte isolada do todo ao qual pertence.

O modelo ecológico (holístico) de ver as coisas não substitui o anterior; antes, interage com o método analítico, ampliando seu alcance. Todavia, também esse modelo tem suas limitações, especialmente quando precisamos incluir a nós, os seres humanos, no contexto. Assim, nem as unidades fundamentais e nem o todo parecem ser suficiente.

Um terceiro modelo, baseado em processos, tem sido visto como solução alternativa. Processos podem criar novos todos e, fundamentalmente, são processos que estão por trás da base de funcionamento de qualquer todo.

O uso do método científico, entendido como um conjunto de procedimentos que obedece a regras definidas, é que permite a formação de um corpo de conhecimento possível de ser partilhado entre indivíduos de uma mesma sociedade. Esse corpo de conhecimento é tanto objetivo quanto subjetivo. A subjetividade, nesse caso, reside no fato de depender de observações e experiências individuais. Portanto, na ciência, embora haja quem negue, a subjetividade está sempre implícita na chamada objetividade.

A perspectiva de uma ciência praticada essencialmente na terceira pessoa é falsa. E aqui não se trata de uma mera questão de pessoalidade no sentido gramatical (1ª e 3ª pessoas: Eu e Ele). São muitas as controvérsias filosóficas (e epistemológicas) que não nos permitem ignorar a importância da primeira pessoa (o Eu), especialmente com o sentido de consciência.

Não obstante, seja lugar-comum a crença na impessoalidade da ciência, há, no caso dos sistemas vivos, experiências que não podem ser derivadas meramente a partir da perspectiva da terceira pessoa (externa ao indivíduo). A visão interna é um componente ativo e manifesto na prática científica.

Lamentavelmente, a subjetividade na ciência tem sido deixada de fora ou, no mínimo, não adequadamente considerada. Também não pode ser ignorado que qualquer experiência científica envolve o risco de deformar a realidade simulada pelo método ou até mesmo de aquilo que está sendo objeto de experiência não passar de uma criação do próprio método. Esta é uma dimensão oculta, mas nunca totalmente ausente. Por isso, o que hoje é considerado aceito pela boa teoria, amanhã pode ser falso. A inclinação natural da ciência é testar teorias.

Nosso conhecimento científico, que nos permite usar informação de forma discriminada, é um conhecimento humano de mundo. Formatamos mentalmente um universo humanizado.

Não sabemos como pensa e que é ser um sapo ou um ipê amarelo. E, mesmo assim, a ciência busca (e parece ter) poder para redesenhar plantas, animais e até nós mesmos.

A longevidade humana (uma espécie de imortalidade) pode ser substancialmente elevada, caso sejam silenciados os genes responsáveis pelo envelhecimento. A grande questão é: alcançado esse fim, em que nos transformaremos? Há dúvida se devemos ir adiante nessa empreitada, antes de nos redescobrimos como seres humanos.

O único acesso epistêmico que temos ao mundo é por meio de nossa consciência. Difícil mesmo é saber que é um homem consciente.

(Do livro Galileu é meu pesadelo, 2009)

Autor: Gilberto Cunha

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