Contra o negacionismo: compreensão e amabilidade

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Educar-se para a imaginação criativa, abrir-se à alteridade, são exigências que somente a “compreensão” e a “amabilidade” – acrescentaríamos, a “amorosidade” – podem realizar em relações consistentes, profundas, duradouras e que não sucumbem à volatilidade do egoísmo primário.

Há grupos significativos da sociedade nos dias atuais que se vangloriam por se dizerem numa posição que tem sido classificada como “dissonância cognitiva”.

É um termo ainda pouco conhecido ainda que o que ele significa seja bem familiar. Foi criado por Leon Festinger, professor da New School for Social Research de Nova York, para fazer referência à negação sistemática de evidências e de argumentos sobre assuntos diversos de modo a que, dessa forma, as próprias crenças não sejam frustradas. Lembra bem a fábula “A Raposa e as Uvas” de Esopo. É uma boa espécie de fundamentalismo individualista que traduz bem a imagem plástica dos três macaquinhos chineses, ainda que combine com o que não vê e não ouve, mas se inclua entre os que falam. Em linguagem popularizada entre nós, esta postura tem sido chamada de “negacionismo”.

O professor Leo Peruzzo Jr., em recente artigo na Le Monde Diplomatique Brasil (21/07/21), mapeou “doze máscaras do negacionismo”. Segundo ele, são a máscara da ignorância, do moralismo, da pseudociência, das fake news, do anonimato, do comunista, do autoritarismo, do liberalismo econômico, da militarização do Estado, do doutrinamento religioso, da docilização dos afetos, e do culto à tortura, ao horror e aos castigos físicos. Ele diz que “A máscara […], mais do que ser expressão simbólica de algo, serve para encobrir, esconder e disfarçar a identidade ou, em outras palavras, a fragilidade deste eu que prefere o anonimato e a solidão de suas ilusões”. Para ele, os negacionistas, “assim como o mimetismo dos camaleões, escolhem em cada ocasião seu novo adereço”.

O negacionismo não é só uma postura que se recusa a aceitas as evidências. Ela também é hipócrita e, pior, cínica. Mas, um negacionista é tudo menos inocente e ingênuo, ainda que possa ser estúpido e ignorante.

O negacionista é hipócrita por sua “vida dupla”: em público honra a virtude e na obscuridade se orienta pelo vício. Alega fazer o que faz e defender o que defende em nome da honra e dos “bons costumes”, ainda que para isso use palavras, valores e ações que podem destruir a vida e a outros/as humanos/as. Mas é pior, ele é cínico, aquela característica que o Marquês de Sade atribuiu às classes altas, liberadas de qualquer contenção e que defendem como sendo “naturais” e inevitáveis seus privilégios, poder, violência e impunidade.

Negacionistas preferem e se comprazem no cinismo; a hipocrisia já nem lhes é mais necessária: não têm como se dar ao luxo de, ao menos, “parecer bons” – a “banalidade do bem” é, mesmo, insuportável.

Contra o negacionismo, sua hipocrisia e cinismo, talvez seja o caso de apresentar o antídoto da “compreensão” e da “amabilidade” – e não estamos nem falando de “amorosidade” –, sugeridas como pequenas “satisfações” por Bertolt Brecht em poema de 1956 (mais conhecido pelo título “Prazeres”). Elas certamente soam ridículas ou extravagantes para sujeitos ensimesmados nas virtudes do egoísmo.

A “compreensão” é tanto no sentido de conhecimento, do pensar, do refletir, do interpretar, do explicar e mais, quanto no sentido de exercício do respeito ao que outros/as conhecem, pensam, sabem. A “amabilidade” não é sinal de fraqueza ou de submissão, mas de abertura e do achegar-se com proximidade à alteridade. “Compreensão” e “amabilidade” somente podem ser exercidas se houver atenção, simpatia, cuidado com o/a outro/a; se a indiferença, o ódio e a inimizade forem superados. Seja pelo “racional”, seja pelo “afetivo”, uma postura e outra se colocam como possibilidades de enfrentamento da brutalidade e do “brutalismo”, tão comuns entre negacionistas. A “regra de ouro”, do “não faça aos/às outros/as o que não queres que lhe seja feito”, é quebrada tout court, simplesmente não faz o menor sentido, a não ser entre os iguais, os do mesmo…

A vida rasa e rala é própria de quem se orienta pelo padrão negacionista. É mais fácil converter valores e princípios em moralismo, quanto mais superficial for a vida ética.

“Compreensão” e “amabilidade” sugerem enfrentar e, quiçá, superar uma das dicotomias mais deletéreas que nos herdou a modernidade, a que separa Razão e Sentimento/Afeto e que atribui profundidade e caudalosidade à vida ética se estribada unicamente na primeira, em detrimento e descaso do segundo. Há um desafio que vai no sentido de encontrar um encontro possível já que há que se viver a “compreensão” e a “amorosidade”.

Orientar-se unicamente pelos “mais próximos”, “os de confiança”, reduz o alcance ao interesse, ao auto interesse. A simpatia e a empatia, tão hodiernamente invocados, não podem se resumir aos iguais, aos nossos, aos mesmos, sobrando, na melhor das hipóteses, a condescendência – que é até onde pode ir a tolerância – com os/as outros/as.

Esticar o horizonte, educar-se para a imaginação criativa, abrir-se à alteridade, são exigências que somente a “compreensão” e a “amabilidade” – acrescentaríamos, a “amorosidade” – podem realizar em relações consistentes, profundas, duradouras e que não sucumbem à volatilidade do egoísmo primário.

Autor: Paulo César Carbonari

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Doutor em filosofia (Unisinos), militante de direitos humanos (CDHPF/MNDH) e pesquisador convidado NEP/UnB.

Edição: Alex Rosset

2 COMENTÁRIOS

  1. Esticar o horizonte, educar-se para a imaginação criativa, abrir-se à alteridade, são exigências que somente a “compreensão” e a “amabilidade” – acrescentaríamos, a “amorosidade” – podem realizar em relações consistentes, profundas, duradouras e que não sucumbem à volatilidade do egoísmo primário.

    Autor: Paulo César Carbonari

  2. Muito lúcida análise para a compreensão de posicionamentos equivocados que muitas pessoas, pseudos cultas, estão apresentando, apoiando e propagando os maiores absurdos.

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