Civilização insustentável – a difusão do mal-estar

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O que mais queremos é ter a possibilidade de construir oportunidades e meios de reorientar os rumos do planeta para igualmente levantar uma nova economia devidamente combinada à conscientização ecológica, isto é, a base para se chegar numa civilização verdadeiramente humana.

O filósofo social espanhol Daniel Innerarity, ao caracterizar o momento atual como uma época de incerteza, diz que, “hoje em dia, entender o que está acontecendo é uma tarefa mais revolucionária do que criar agitação improdutiva, cometer erros de crítica ou manter expectativas irracionais”. Seguindo a linha de raciocínio do filósofo, mais revolucionária ainda, em particular, parece ser a tentativa de entender a crise ambiental em toda sua extensão.

Sendo ou não revolucionária essa tarefa, vale o esforço de começar observando a configuração da crise ambiental ora em curso. Sob esse sentimento, e já pisando logo de saída no arenoso terreno da economia, é certo começar dizendo que há impossibilidade de incorporar a todos no universo de consumo em função da finitude dos sistemas naturais. O que, convenhamos, não é difícil de entender uma vez que nosso planeta é limitado.

Qualquer expansão ilimitada – e principalmente a economia do crescimento, o ponto medular da macroeconomia moderna – se torna inviável, impraticável e contraproducente. Em notação científica, significa dizer que a pressão exercida pela antroposfera sobre a biosfera põe em evidência que o estilo de vida do mundo moderno, também chamado de a razão ocidental, é incompatível com o processo de regeneração do meio ambiente.

Para onde quer que se lancem olhares, não é difícil observar que a perda de biodiversidade vem se dando de maneira crescente e assustadora. Há em curso um processo de perda de vida selvagem como nunca antes em toda a história da humanidade. Leia mais!

O problema central, todavia, é que a regeneração do meio ambiente – isto é, o fato de deixarmos a natureza respirar, por assim dizer – não goza de nenhuma importância junto ao mainstream. Desde há muito, mais vale aos mandatários da ordem econômica mundial – que somente olham e dão primazia à economia de curto prazo – aumentar a capacidade de produção que capacitar o planeta de alguma boa e eficaz proteção.

No jogo econômico, em meio à sociedade acelerada dos dias de hoje, prevalece o poder do mercado. Por sinal, esse “poder” sempre é muito bem identificado com o universo da força política. Colocado assim, aqui se inscreve, a rigor, uma clara percepção: mercado é sinônimo de poder político. Logo, não é de surpreender a existência de múltiplos interesses delineados exclusivamente pelos atores políticos que sempre procuram se colocar acima de tudo o mais.

Mas temos agora de levar em conta que há ainda outro problema enraizado que pertence ao nosso jeito de estar no mundo e, verdade seja dita, do qual não conseguimos nos desvencilhar: o nosso modo de viver (espécie de razão que nos guia, para ser taxativo) está em profunda crise.

No fim das contas, simplificando o assunto, o nosso modo de viver é ao mesmo tempo tanto a causa quanto o sintoma de uma crise de característica conjuntural e estrutural que toca todos os sentidos da vida. Os motivos são conhecidos. Invoquemos, para tanto, alguns dados que orientam o nosso debate contemporâneo e que podem nos ajudar no entendimento de mais essa complexidade: no começo dos anos 1960, para satisfazer a demanda de toda a família humana, era preciso não mais que 60% dos recursos da Terra.

Todavia, na já mencionada fase dessa sociedade acelerada, bastou pouco menos de quatro décadas (meados dos anos 1990) para que se ultrapassasse a marca dos 100%. Vale dizer: foi atingido o overshoot, a chamada sobrecarga ecológica. Não satisfeitos, desde então continuamos abusando de todas as consequências possíveis, tanto que a humanidade está consumindo 30% mais do que aquilo que a Terra pode repor, sem se dar conta (santa ignorância a nossa) que aí está um dos vetores (tornando válido esse termo) da difusão do mal-estar.

Quanto maior, melhor…será?

Convém deixar claro: por trás disso tudo, como se sabe, está à tresloucada ideia de que a economia global não pode parar de crescer. Repare com atenção que isso pode ser bem ilustrado na noção (nonsense) de que um PIB maior nos proporcionará, em fatias iguais para todos, mais prosperidade. Não à toa, obcecados pela conquista material e adeptos da noção do “quanto maior, melhor”, uma multidão de atores sociais, cada vez mais perdida nesses tempos de incertezas, segue acreditando que tudo somente funciona à base do crescimento, ou seja, a medida de prosperidade inventada pelos homens modernos.

Reforçando o tom, tudo indica que os homens da atualidade se sentem confortáveis somente a partir da expectativa do avanço do mercado (do crescimento do PIB, sejamos claros). Não é por outra razão, assim reza o senso comum, que o crescimento se converteu na palavra de ordem.

Aos fatos: nossa relação com o crescimento econômico

Como uma coisa está ligada a outra, nota-se fortalecer a ideia-corrente (peça-chave) de que, se a economia global se tornar cada vez maior, a sociedade contemporânea estará melhor. E isso, grosso modo, permite abrir um pouco mais essa análise observando-se ao menos dois pontos elementares.

Primeiro: não se trata, em hipótese alguma, de demonizar o crescimento, até mesmo porque seria imperdoável ingenuidade de nossa parte não reconhecer a importância do avanço produtivo (espécie de bússola da modernidade) para algumas grandezas macroeconômicas. No mais das vezes, o crescimento, sob essa direção, deve ser entendido como uma das maiores conquistas da comunidade humana. No entanto, isso não exime a possibilidade de se fazer severas críticas à economia convencional.

Contas feitas, o que precisa ficar límpido é o seguinte: por razões óbvias de finitude dos recursos planetários (ou de escassez ecológica, para usar uma expressão de fácil aceitação), o crescimento, notadamente nas economias mais avançadas do capitalismo global, deve necessariamente ter limites. Aliás, ainda que venha a soar banal, convém dizer que tudo o que é físico não pode crescer indefinidamente. Nessa toada, o crescimento, um “movimento físico” da economia, não pode escapar dessa regra primária.

Segundo: como não existe atividade humana sem (vale o gripo para os dois casos) o uso de recursos naturais e energia, é de bom senso não perder de vista que a atividade de produção econômica é dependente dos serviços ecossistêmicos. O que significa dizer taxativamente que a economia, do jeito como a conhecemos, é subsidiária de algo maior, o meio ambiente. Numa expressão definitiva, dir-se-á que tudo está dentro da biosfera. Logo, não dá para fugir da assertiva de que o crescimento econômico afeta (seja na extração de recursos, na devolução dos dejetos ou mesmo na emissão de gases de efeito estufa) a Natureza – a matriz de tudo e a parceira da vida.

E tem mais: como o crescimento econômico pauta o estilo de vida ocidental, não há dúvida (ao menos em relação às mais consistentes) de que o alcance de “progresso” via aceleração econômica promove impactantes “custos ambientais” que comprometem sobremaneira os ecossistemas, diminui a biodiversidade e esgota biomas, deixando assim, de modo próprio, resolutamente por conta do desmonte ambiental, a civilização insustentável.

No fundo, isso permite que o mal-estar se propague. Desnecessário dizer, pois, que tudo isso, a rigor, termina por “produzir” certa perplexidade. Voltando ao pensamento de Daniel Innerarity, “perplexidade é uma situação típica das sociedades em que o horizonte do possível se abriu de tal maneira que os cálculos sobre o futuro são especialmente incertos”. (Ver desse autor Politica para perplejos).

Manifestadamente, nesse momento, devemos convir que o ponto de conflito aí resultante está bem claro: como a expansão econômica não ocorre com a finalidade de atender exclusivamente as ilimitadas necessidades da comunidade humana, mas sim para continuar “alimentando” a lógica capitalista (o acúmulo de capital e do consumo), aos poucos se cristaliza a falsa promessa de que a conquista material, per si, cumpre o papel de facilitar a ascensão social de toda a comunidade humana. Para que fique bem claro: o problema assim colocado cria uma situação embaraçosa.

Vejamos. Para começo de conversa, aceitar que é possível crescer exponencialmente sem afetar ou comprometer (em grande extensão) a base de recursos da natureza, significa ignorar que a economia (atividade de transformação/produção) é um subsistemada biosfera. Falando por outros termos: insistir na crença de um crescimento econômico contínuo (ideologia dominante) significa menosprezar a maior causa ecológica, o equilíbrio planetário – ou o outro nome da ideia de sustentabilidade.

Dito de outra maneira: produzir é também sinônimo de destruir. Não existe “produção” sem “destruição”. Não por acaso, a etimologia da palavra “consumir” (a razão maior do processo produtivo) significa “destruir”. Leia mais!

E como a tônica do crescimento predomina (obviamente ignorando o fato de que a atividade econômica é limitada pela capacidade de carga dos diferentes ecossistemas da Terra), tão logo três fundamentais esferas passam a sofrer severos arranhões, dificultando na base e no todo o alcance de: (1) uma economia eficiente; (2) um padrão social includente; e, por fim, (3) uma visão de mundo ecologicamente equilibrada.

Fazer o PIB crescer ou melhorar a vida das pessoas?

Uma vez alcançado esse ponto, importa lembrar que a economia é um sistema aberto inserido num sistema finito e materialmente fechado (a Terra) que somente se “abre” para a energia solar. A Terra, para falar de forma simples, é um “corpo” finito e não crescente que recebe um fluxo de energia (luz solar) e devolve calor dissipado. Sendo assim, diante do que já foi anunciado aqui mesmo, é lícito acreditar que o crescimento ininterrupto de um subsistema (a economia) dentro de um “corpo” (sistema maior, porém finito) é uma impossibilidade.

Detalhe preocupante: cada vez que a busca pelo crescimento econômico se aproxima dos limites planetários, aumenta-se o custo ambiental decorrente de a economia ser um sistema dissipativo sustentado por um fluxo metabólico, como tão bem esclarecem José Eli da Veiga e Andrei Cechin. (1) E ainda assim, à luz de refinada análise, cabe aqui o esforço da boa explicação: metabolismo social (ou metabolismo socioambiental) deve ser descrito como a troca energética e de material entre os seres humanos e seu meio ambiente natural, aproximando-se do nível de esgotamento do capital natural e devolvendo ao mundo vivo todas as formas de poluição. Veja bem. Todo esse processo de fluxo metabólico, além do mais, se inicia com a utilização e consequente escasseamento dos recursos naturais, e, como é fácil presumir, termina devolvendo à natureza de mais poluição (entropia).

Mas não estranhe: tudo isso ainda é um assunto nevrálgico que permanece quase ignorado pela economia convencional que “observa” a biosfera apenas como “partes” da macroeconomia. Mas em nenhum momento essas perguntas a seguir aparecem: (1) qual ritmo de crescimento é possível?; (2) quanto se pode tirar de recursos da natureza?; (3) quanto se pode devolver de resíduos ao ambiente natural via atividade econômico-produtiva?

Ora, sejamos mais uma vez claros e transparentes: às forças políticas interessa muito afiançar a política de crescimento, e ponto final. Se haverá ou não alguma significativa deterioração ecológica pouco importa. Dito isso, e para resumir toda essa barafunda, o problema central é facilmente localizado: o crescimento é concebido para aumentar o tamanho da economia, e nem tanto em melhorar essa economia. Essa última tarefa, aliás, fica a cargo do desenvolvimento. Contudo, esse último tem sido preterido em prol dos incentivos voltado ao crescimento (sempre a ideia dominante, como já mencionado).

Sendo a ideia dominante, tudo é pesando em termos de crescimento. Mas vale aqui, notemos com a atenção, à provocadora pergunta lançada pelo mundialmente aclamado Joseph Stiglitz (prêmio Nobel de Economia): de que vale o PIB estar crescendo, se a maior parte dos cidadãos está pior? (2)

Nessa mesma direção, espera-se que os fervorosos devotos da política de crescimento não esqueçam que foi o próprio Simon Kuznets (1901-1985), criador do PIB, no começo dos anos 1960, que taxativamente afirmou que é (…) preciso levar em conta distinções entre quantidade e qualidade de crescimento, entre custos e rendimentos, entre curto e longo prazo. Para tirar de uma vez por todas o véu desse assunto, foi Kuznets que didaticamente assim escreveu: “metas de crescimento devem especificar o que deve crescer e para qual fim”. (3)

Construir oportunidades

À luz de razoável bom senso parece mesmo que o jornalista econômico David Pilling tem toda a razão: “só na economia a expansão interminável é vista como virtude. Em biologia, isso se chama câncer”. (4)No mais das vezes, como tudo é mercantilizável (razão pela qual o PIB mede somente a parte da economia que é mercantilizada), e enquanto se avança no erro de confiar ao mercado o cuidado geral de toda a sociedade, mais se consolida um erro palmar: sempre exigir crescimento exponencial num planeta finito.

Objetivamente falando, acreditar nessa possibilidade (que não faz sentido, insistamos nisso) é cair na estupidez de conjecturar que a economia acontece no vazio, sem fazer uso de matéria e energia vindas da natureza. E mais: significa ainda ignorar com todas as forças a possibilidade de que em alguns casos pode ocorrer aquilo que Herman Daly, melhor que ninguém, soube chamar de “crescimento antieconômico”. O significado? Quando o custo costuma ser maior que o benefício. Definitivamente, ninguém quer isso.

O que mais queremos é ter a possibilidade de construir oportunidades e meios de reorientar os rumos do planeta para igualmente levantar uma nova economia devidamente combinada à conscientização ecológica, isto é, a base para se chegar numa civilização verdadeiramente humana.

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Autor: Marcus Eduardo de Oliveira

Ediação: Alex Rosset

Referências

(1) A. CECHIN & J. E. VEIGA. “O fundamento central da Economia Ecológica”, in PETER H. MAY (Org.), “Economia do Meio Ambiente: Teoria e Prática”, 2° edição, Ed. Elsevier, 2010.

(2) J. STIGLITZ. “People, Power and Profits – Progressive Capitalism for an Age of Discontent. Nova York: W. W. Norton & Company, 2019.

(3) S. KUZNETS. “How to Judge Quality”, The New Republic, (October 1962).        

(4) D. PILLING. “A ilusão do crescimento”, São Paulo: Alta Books Editora, 2019, (p.14).

Economista, ativista ambiental e Mestre em Integração da América Latina pelo Programa de Pós-Graduação Integração da América Latina (PROLAM), da Universidade de São Paulo (USP). Autor de Economia destrutiva (CRV, 2017) e Civilização em desajuste com os limites planetários (CRV, 2018). prof.marcuseduardo@bol.com.br

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