Terra adoecida, humanidade à deriva

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A crise ambiental global é, antes de tudo, uma crise de valores que afeta sobremaneira a forma de pensar, agir e sentir da humanidade. Qualquer um com um mínimo de inteligência precisa perceber isso.

Restam poucas dúvidas de que é completamente inadequado (para usarmos esse termo brando) o modo pelo qual, hoje, a nossa espécie, Homo, se relaciona com a Natureza (matriz da vida), resultado direto de uma agressão antrópica – homocentrada – sem precedentes.

Fato concreto, estamos fazendo do planeta Terra – a Casa Comum (na boa e feliz expressão do Papa Francisco) de todos os viventes – um local incapaz de sustentar a vida, seja a humana ou a não humana.

Para além de muitas evidências, é pesaroso constatar que, sem muito esforço, nos tornamos, por assim dizer, potenciais destruidores da natureza (ou “agentes transformadores”, na coloquial expressão dos ambientalistas de outrora) e de tudo o que nela habita. Detalhe aparovante e inescapável: isso não é retórica, ou mesmo um mero flerte com o catastrofismo. É a voz da ciência que vem nos dizendo a todo o momento sobre os perigos à vista de todos. “Os impactos humanos estão causando danos alarmantes ao nosso planeta. (…) Predizemos também, com base na melhor informação científica disponível, que, mantida a via atual, a qualidade da vida humana sofrerá substancial degradação por volta de 2050”, assim nos alerta o Scientific Consensus on Maintaining Humanity´s Life Suppport Systems in the 21 st Century, de 2013.

Para onde quer que se lancem olhares, não é difícil observar que a perda de biodiversidade vem se dando de maneira crescente e assustadora. Há em curso um processo de perda de vida selvagem como nunca antes em toda a história da humanidade.

De acordo com a União Internacional para a Conservação da Natureza, no mundo, por volta de 11% das espécies de aves, 25% dos mamíferos, 20% dos répteis, 34% dos peixes e 12% das plantas estão ameaçadas de desaparecer para sempre nos próximos cem anos. Isso deixa em clara evidência que alteramos tudo o que encontramos pela frente.

Mexemos na composição do solo, do ar, do sistema de águas, e alteramos quimicamente os alimentos. Nada parece escapar à nossa fúria destrutiva. Diminuímos o mundo verde em diversos fronts. Passam os anos e seguimos destruindo mais de 7 milhões de hectares anualmente. Vários pesqueiros já entraram em colapso, enquanto lençóis freáticos continuam caindo assustadoramente mundo afora. Grandes extensões de solos e pradarias continuam sendo esgotadas. E somente nas últimas duas décadas, 35 por cento dos mangues desapareceram do mundo. As florestas – o nosso ar condicionado gratuito – “sumiram” por completo em 25 países e outros 29 perderam mais de 90 por cento de sua cobertura florestal.

Se os biólogos estiverem certos, o desenho do futuro é assombroso, uma vez que nos próximos cem anos os humanos – a nossa espécie pensante, taxonomicamente chamada de sapiens, vejamos a ironia aí presente – poderão eliminar de 20% a 50% de todas as espécies da Terra.

Para além disso, o que se sabe, desde já, é que quase 90% das espécies de animais vão perder habitat para a agricultura até 2050, quando é estimado o uso de pelo menos 2 milhões de quilômetros quadrados de novas terras agrícolas. De tal modo que, para não perdemos o assunto-central de vista, já se diz que a vida orgânica se esfacela a olhos nus, tanto que, de acordo com o professor Ron Milo e sua equipe de pesquisadores do Instituto Weizmann de Ciência, em Israel, já atingimos um estágio civilizacional em que há mais mundo artificial do que natural.

A massa antropogênica, que é resultado da atividade humana, expressa em prédios, asfalto, automóveis, fios, plástico, ferro, aço, papel processado, celular e assim por diante, representando 1,1 trilhão de toneladas, é, hoje, muito maior que a chamada biomassa (110 bilhões de toneladas a menos que a massa antropogênica). A causa disso, não duvidemos, é a ação humana; essa força antropogênica que já devastou 1 trilhão dos 2 trilhões de toneladas de árvores e plantas que existiam no início do século XX, levando à extinção milhares de espécies animais no processo.

Em entrevista ao jornalista Rodolpho Gamberini, do canal O Planeta Azul, no YouTube, Camila defende que a substituição de energia suja por energia renovável deve ganhar novo impulso a partir da experiência da pandemia. “Já existe tecnologia para que a gente polua menos. Fica muito claro que mudanças rápidas teriam impacto tanto no meio ambiente quanto na saúde humana”, afirma. Assista!

Notemos assim que, para além ainda das percepções claras e visíveis, tudo é demasiadamente assombroso, afinal de contas, dizem os especialistas, e entre eles o notável David Attenborough, que, hoje em dia, “não se trata mais de salvar o planeta, mas de nos salvarmos” (El Mundo, set. 2020). Ao desenvolver esse raciocínio, o próprio Attenborough segue afirmando que “a humanidade está em uma encruzilhada”, uma vez que (…) “o mundo natural está seriamente ameaçado e as consequências podem ser apocalípticas”. Aqui, mais uma vez, é preciso esclarecer que essa narrativa não pode ser vista como mero exagero. Isso é um fato real.

Triste constatação. O poder de destruição do Homo sapiens não tem limites, precisamos admitir essa nossa crassa falha de moral. É aterrador isso. Somos autodestruidores. E estamos fracassando. “O preço do fracasso”, vaticinou tempos atrás Eric Hobsbawn (1917-2012), ainda que dito em outro contexto, (…) “é a escuridão”.

Numa análise fria dos fatos conhecidos até o momento, sabemos que não se trata de mais uma crise qualquer, mas sim de severo descompasso situado no “coração” do meio ambiente.

Um desdobramento dessa perspectiva, por qualquer que seja o campo de visão, permite dizer abertamente que essa crise ecológica (insistindo, pois, no uso desse termo) provocada por nós mesmos, dadas às fissuras impostas ao meio ambiente, se volta contra a nossa própria espécie. Ocorre então que nossa exclusiva atitude exploratória contra a natureza tem mostrado, para além do mais, que temos potencial para desestabilizar inclusive as condições planetárias, desarticular mecanismos do sistema-vida, e, com isso, imprimir consideráveis modificações físico-químicas em nosso meio ambiente.

A configuração de mundo hoje, pensando na esfera do consumo global, é bem conhecida: 20% da população mundial do Norte global (a parte rica do mundo) consome 76% de toda a produção de riqueza mundial, ao passo que, do lado Sul do globo (a parte pobre), sobra apenas 24% da produção para ser “repartida” por 80% da população mundial. Leia mais!

Para cada uma dessas ações deletérias aqui mencionadas, tem-se a constatação (outro pesar) do quão dissociados nos encontramos das questões que envolvem o mundo natural, notadamente o ambiente ecológico (num sentido amplo do termo) e sua rica biodiversidade, do qual o homem moderno possui intrínseca relação, mas, no entanto, prefere se fechar dentro de uma visão estreita, condicionado a olhar quase que exclusivamente – e tão somente – para as coisas materiais, esperançoso assim de que a felicidade (lídimo desejo a que todos devemos nos concentrar) um dia será alcançada à base do acesso e posse material.

Quanto estupidez carregamos conosco. Isso não pssa de um erro palmar que tem nos acompanhado desde há muito em nossa jornada existencial.

Via de regra, envolto na prática do individualismo, parte considerável de nossa comunidade humana não titubeia em abandonar qualquer sentimento de moderação no trato para com o meio ambiente, e esquece, para além do mais, as ricas potencialidades naturais que nos circudam.

Esquecemos que na formação de massa física corporal de cada um de nós há componentes da natureza: 23 por centro de carbono, 2,6 por centro de nitrogênio, 1,4 por cento de cálcio, 1,1 por cento de fósforo e trinta outros elementos em mínimas porções.

A dissociação do ser humano para com a natureza é tão intensa (e grave) que ainda faz o Homem esquecer que possui em seu corpo 61 por cento de oxigênio e 10 por cento de hidrogênio, reunidos numa composição de 71 por cento de água.

Alheio à questão do meio ambiente no que concerne à necessidade da preservação ecológica, o homem moderno sequer dá conta da etimologia do próprio termo “homem”, palavra que vem de húmus (terra firme), evidenciando assim a íntima relação existente com a natureza.

É por isso que se diz que dentro dessa perspectiva nós – e TODOS os outros seres vivos – possuímos algo em comum: um mesmo padrão de organização química, a partir do funcionamento de células de organismos multicelulares e unicelulares.

Não por acaso, para que se esclareça em definitivo esse ponto, dir-se-á que, de um cavalo à um pássaro, de um peixe à uma ameba, de uma minhoca à uma borboleta, somos TODOS formados por 20 aminoácidos e quatro ácidos nucléicos. O que nos diferencia das demais espécies, reza o conhecimento científico, é apenas e tão somente a combinação desse alfabeto genético, nada mais.

TODOS os seres vivos, ao fim e ao cabo, enfatize-se à exaustão, utilizam apenas 20 aminoácidos para fabricarem todos os tipos de proteínas de que necessitam. 

Mas, todavia, alheio e completamente míope a isso tudo, o homem moderno segue isolado do amor pela vida que brota de toda essa rica composição ecossistêmica, ignorando, para além do mais, que o futuro dele mesmo depende essencialmente do equilíbrio a ser dado à cadeia ecológica que rege a vida na Terra.

Por isso, defendemos tanto a ideia de que a crise ambiental global é, antes de tudo, fundamentalmente uma crise de valores que afeta sobremaneira a forma de pensar, agir e sentir da humanidade. Qualquer um com um mínimo de inteligência precisa perceber isso.

Sem romantismo algum, resta que precisamos, no mais das vezes, passar a ofertar amor à vida, às coisas da natureza, às relações humanas e sociais. Para além dos resultados econômicos que nos guiam, e que nos deixamos levar, iludidos de que a economia é tudo o que nos resta, a vida (do jeito como a conhecemos) precisa mesmo ser pensada e sentida de diferentes outras maneiras. É isso o que mais importa. Não mais podemos permanecer isolados do amor pela vida.

“Todo governo que atenta contra a Constituição, torna vítimas o meio ambiente, os direitos humanos e os povos indígenas”. (Rúbens Ricupero, em entrevista ao Greenpace)

Autor: Marcus Eduardo de Oliveira

Edição: Alex Rosset

Economista, ativista ambiental e Mestre em Integração da América Latina pelo Programa de Pós-Graduação Integração da América Latina (PROLAM), da Universidade de São Paulo (USP). Autor de Economia destrutiva (CRV, 2017) e Civilização em desajuste com os limites planetários (CRV, 2018). prof.marcuseduardo@bol.com.br

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