Até onde pode ir a arte urbana? Da ilegalidade à espetacularização

1267

Quais são os  caminhos, os desvios e as transformações que a arte produzida em ambientes urbanos está  adquirindo em função das constantes mudanças sociais? E por que essas questões se tornam relevantes para entender essa expressão visual contemporânea?

Em janeiro de 2023, o artista internacionalmente conhecido, Eduardo Kobra, pintou mais um de seus característicos murais em Porto Alegre, RS. A obra, intitulada “Estado de Paixão”, homenageia o folclorista Paixão Cortes, adicionando ao mural a já icônica figura do “laçador”, além da “chama crioula”, considerada um dos simbolismos do tradicionalismo gaúcho. A pintura foi realizada na região da cidade conhecida como “Quarto Distrito” .

Também no início de 2023, no mês de fevereiro, foi inaugurada no Shooping Eldorado, na cidade de São Paulo, a exposição “The Art of Banksy. Without Limits”, do artista Banksy. O artista produz obras críticas à sociedade contemporânea e sua estratégia é quase sempre a de surpreender, pois não informa onde suas pinturas irão aparecer, surgindo em várias cidades do mundo.

Uma característica que adiciona uma aura de mistério a esse artista é que mesmo sendo mundialmente famoso, sua identidade nunca foi reconhecida. Suas obras, valiosíssimas, encontram-se em diversas galerias, museus e de posse de colecionadores particulares. Detalhe: o valor médio do ingresso para a exposição de Banksy em São Paulo custa $130 reais. 

O que esses dois exemplos podem nos mostrar sobre a atual situação e condição da “arte urbana”? Quais são os  caminhos, os desvios e as transformações que a arte produzida em ambientes urbanos está  adquirindo em função das constantes mudanças sociais? E por que essas questões se tornam relevantes para entender essa expressão visual contemporânea?

Saliento que a intenção deste texto não é de esgotar o debate sobre o assunto, mas também de não expor opiniões ligeiras sobre o tema, pois há mais de dez anos estudo a temática das artes urbanas.

Em minha pesquisa de mestrado, acompanhei grupos de grafiteiros e pichadores da região periférica de Porto Alegre, resultando em diversos artigos publicados em revistas científicas e capítulos de livros que divulgam a pesquisa e ampliam o debate sobre o tema. Além do trabalho acadêmico, realizo oficinas de grafite em escolas e outros locais, participando esporadicamente de eventos de pinturas artísticas de rua.

Na primeira parte do texto, abordarei, de forma breve, a importância da cultura juvenil contemporânea para o desenvolvimento das artes urbanas, também conhecidas como “arte de rua”. Na segunda parte, exponho reflexões sobre o problema principal exposto nestes escritos: para onde a arte urbana está se encaminhado no atual cenário contemporâneo?

Grafites, pichações, muralismos: manifestação artística como cultura contemporânea e juvenil   

A juventude, tanto como conceito quanto manifestação social e cultural desponta após a Segunda Guerra Mundial. Os jovens passaram a ocupar as ruas, os espaços urbanos públicos e privados, produzindo uma cultura própria, a música com o rock and roll, os protestos estudantis, a dança, roupas, acessórios e, claro, uma expressão plástica e visual características com os grafites e demais inscrições nos muros. Impossível não lembrar de James Dean, “rebelde sem causa”, ao falarmos da juventude desse período histórico. 

Embora existam diversos estilos de arte urbana, o mais conhecido são os grafites compostos de letras gigantes e coloridas e também desenhos representando personagens. Surgem inicialmente em comunidades de bairros com populações negras e latinas dos EUA, em meados dos anos de 1970, principalmente na cidade de Nova York. Essas produções estão ligadas, indubitavelmente, às culturas juvenis contemporâneas e fazem parte de um processo de emancipação social em que a juventude se liberta da tutela paterna e passa ocupar espaços que antes lhes eram negados (FEIXA, 1999).

Os jovens encontravam nas ruas a possibilidade de uma forma de expressão mais livre, colorida, coletiva e democrática, pois de fácil acesso. Os muros, paredes se transformam em telas a céu aberto. O filme The Warriors, Selvagens da Noite, de 1972, cujo enredo envolve disputa de territórios por gangues juvenis na cidade de Nova York, destaca os grafites nos vagões do metrô como símbolos que identificam toda uma cultura daquele contexto.  

No Brasil, o movimento hippie dos anos de 1960 dá lugar ao movimento punk e ao hip-hop, expressões juvenis que surgem no final dos de 1970, fortalecendo-se após a abertura democrática como fim da ditadura militar em 1985. Os grafites ainda eram poucos e tímidos, mas surgiam em capitais como São Paulo e Rio de Janeiro.

“ A rainha do frango Frito”, obra do artista Alex Valauri aparecia nos muros de São Paulo. Em Porto Alegre, impossível não lembrar do nome de “Toniolo” nas ruas da cidade. Notadamente, manifestações da mesma ordem surgem em diversas cidades do Brasil. Época em que essas ações não eram entendidas como expressões juvenis e muito menos como arte.

Outra forma de atuar nos espaços urbanos diz respeito à pichação. Considerada ilegal, esta grafia urbana é considerada sujeira ou vandalismo. A pichação pode ser utilizada como protesto, lembremos das frases que marcaram os movimentos estudantis em maio de 1968, ou no Brasil, com a escrita “Abaixo a ditadura!”. Vale lembrar que no Brasil a pichação é considerada crime ambiental e deterioração do patrimônio público nos termos do artigo 65 da Lei 9.605/98, a prática da pichação tipifica pena de detenção de 03 meses a 01 ano e multa.

Em diversos países, quaisquer inscrições realizadas em espaços urbanos são identificadas como graffiti, pois devido ao fato de utilizarem o mesmo suporte – paredes, muros, portas etc., usarem o mesmo material – spray, tintas, rolos e pincéis. Autores como Valenzuela, 1999; Garcia Canclini, 1989; Marques, Almeida e Antunes, 1999; Aguiar, 2007; Feixa, 1999, afirmam que são culturas juvenis envolvidas em práticas territoriais que se valem dos espaços públicos de forma semelhante.

De minha parte, sustento que enquanto a pichação utiliza a rua como território, o grafite utiliza a rua como ambiente para a expressão visual ( SILVA, 2010). O grafite apropria-se dos espaços com o objetivo de transformá-los em “telas” urbanas, a pichação utiliza as superfícies da cidade visando a demarcação de territórios por meio da ação de grupos ou indivíduos específicos dessa cultura juvenil contemporânea (SILVA, 2010). 

Como toda atividade humana, a arte urbana, em todos seus segmentos,  está em constante movimento e transformação, é uma prática cultural que não está dissociada do tempo, do espaço, dos discursos e ações de poder que estão em circulação no mundo .      

Arte urbana valoriza seu imóvel! Arte de rua vende em galerias de arte!  

De fato, podemos observar que o grafite invade as mídias, as redes sociais virtuais e ocupa já há bastante tempo os museus e as galerias de arte. A arte de rua se transformou em um lucrativo mercado, está cada vez mais voltada para uma elite consumidora e ávida por novas estéticas visuais.

Em artigo publicado no ano de 2022[1], destaquei como as recentes produções de murais gigantes realizados em empenas de prédios no centro histórico da cidade de São Paulo estão indiretamente envoltos em processos de revitalização urbana e interesses imobiliários.

Seguindo essa perspectiva de valorização urbana, o mural realizado pelo artista Kobra está localizado no Quarto Distrito, em Porto Alegre. Uma região cujos investimentos comerciais e residenciais têm sido cada vez mais intensos. A pintura do artista foi produzida em uma antiga fábrica de vidro construída em meados do século XX e agora abriga uma loja de materiais para decoração.

A despeito da qualidade da obra e reconhecimento internacional do artista em questão, é inevitável não deixar de perceber nessas ações distintos interesses, sejam eles econômicos ou políticos.

Mural realizado pelo artista Kobra. Fonte: Jornal Matinal[1]

Embora de forma sutil, a presença da arte urbana em materiais de divulgação de empreendimentos imobiliários e comerciais é outro exemplo que evidencia o seu uso em processos imobiliários e comerciais.  Os grafites atuam como uma expressão visual que torna os locais mais, “modernos”, “boêmios”, “artísticos” ou quaisquer outros aparatos que possam ser usados tanto para vendas de apartamentos em condomínios “descolados” ou que buscam atrair uma população juvenil para bairros e regiões revitalizadas com bares e casas noturnas.

Segundo Sorbo (2019), “a presença da arte de rua pode criar a ilusão de insurgência e rebelião, embora seja criada apenas à mercê de desenvolvedores e planejadores urbanos”. Ao ser construída como moderna e boêmia, ela se separa de suas raízes que já existem, cada uma com seus significados históricos e culturais (SORBO,2019)

Em uma situação distinta, mas ainda na esteira dessa discussão, a exposição do artista Banksy, citado na abertura deste texto, ajuda-nos a refletirmos sobre a condição atual da arte de rua. Um acontecimento, durante essa mesma exposição, tornou-se crucial para problematizar até que ponto a arte de rua como expressão urbana e pública atinge na atualidade.

O artista de rua paulista conhecido como NEGRO M.I.A. realizou uma intervenção, pichando em uma obra de Banksy, a frase “Distanciamento social sempre existiu”. Bem vindos ao Brazil”. Uma crítica, segundo ele, à elitização da arte de rua, transformada em um produto rentável. A imagem abaixo, retirada da página Vogue Arte[3] mostra a intervenção na obra.

O que essa intervenção pode nos mostrar sobre a atual condição da arte de rua? O artista paulistano atingiu seu propósito de crítica e protesto contra a “elitização” da arte de rua? Ainda que a intervenção tenha sido válida, o que se apresenta a partir desse acontecimento é mais amplo e paradoxal, possibilitando-nos reflexões a respeito do atual sistema mercadológico que engole e rentabiliza quase todas as práticas sociais e artísticas.

Uma problematização: o fato de um artista contestador como Banksy estar em uma exposição já é por si só perturbador. Vendeu-se ao circuito econômico da arte? Continuarão surgindo grafites seus pelos muros e paredes do mundo?

Um paradoxo: não estariam as obras desse artista sendo ainda mais valorizadas a partir da intervenção realizada em uma delas? O protesto de NEGRO M.I.A também teria um efeito ainda mais espetacular já que foi executado na obra de um artista, do mesmo modo contestador? São indagações que surgem e podem nos apontar para os muitos caminhos que essas intervenções podem se direcionar.    

De fora para dentro, de dentro para fora  

A crescente utilização e espetacularização das artes urbanas, especificamente o grafite, pode servir como controle de uma arte que sempre foi gestada em espaços de contestação? Encastelá-la em galerias ou exposições, ou ainda torná-la como um veículo estético para propagandear a revitalização e a especulação imobiliária é mais um dos caminhos que essas expressões trilharam desde seu surgimento?

Retorno à minha dissertação de mestrado, finalizada no ano de 2010, onde destaquei as possíveis transformações e transferências que esses deslocamentos da arte de rua para galerias de arte e museus poderiam provocar.

Primeiramente, é preciso entender que encontrar tais produções em ambientes institucionais constitui-se em uma experiência estética completamente diversa daquela vista nas ruas, proporcionando outros pontos de vista, suscita novas observações, interferindo na forma como são descritas e analisadas (SILVA, 2010). É por isso que assistimos a transformação de um “grafite vândalo” para um “grafite arte” vinculados às condições contemporâneas cada vez mais híbridas que borram as fronteiras entre o poder econômico e o consumo cultural.

Por fim, fica o questionamento: é possível controlar ou criticar tais movimentos e transformações, já que essas são expressões visuais que sempre se caracterizam pela sua natureza libertária, seu domínio é público? Quem pode direcionar os rumos da arte de rua?

Autor: Eloenes Lima da Silva

REFERÊNCIAS

AGUIAR, C. S. D. Risco e Identidade de Gênero no Universo do Graffiti. Lisboa: Ed. Colibri; Soc. Nova Lisboa, 2007.

FEIXA, Carles. De Jovenes, Bandas e Tribos. Barcelona: Ariel, 1999.

GARCIA CANCLINI, N. Culturas Híbridas: estratégias para entrar e sair de la modernidade. México: Ed. Grijalbo, 1989.

MARQUES, F.; ALMEIDA, R.; ANTUNES, P. Traços Falantes (A cultura dos jovens graffiters). In: PAIS, José Machado. Traços e Riscos de Vida: uma abordagem qualitativa de modos de vida juvenis. Porto: Âmbar, 1999. Pp. 173-211.

SORBO, Claire del. The Changes of Street Art in the Face of Gentrification. 2019. Disponível: <https://frescocollective.org/articles/2019/1/11/changes-street-art-gentrification

Acesso em: 05 de maio de 2021.

SILVA, Eloenes Lima da. A gente chega e se apropria do espaço! Graffiti e Pichações

demarcando espaços urbanos em Porto Alegre. Porto Alegre: UFRGS, 2010, 180f.

Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2010.

Disponível: < http://hdl.handle.net/10183/27057> . Acesso em: 06 de nov. 2021

SILVA, Eloenes Lima da. Pedagogias das Artes Urbanas – Encontrando Murais Gigantes na Cidade de São Paulo. Educação Pública – Divulgação Científica e Ensino de Ciências • v2, nº1, maio/2022. p. 1-17.

VALENZUELA, J. M. A. Vida de Barro Duro: cultura popular juvenil e grafite. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1999.


[1] Pedagogias das Artes Urbanas – Encontrando Murais Gigantes na Cidade de São Paulo. Educação Pública -Divulgação Científica e Ensino de Ciências. v1,  nº2,  junho/2022.

[2]https://www.matinaljornalismo.com.br/rogerlerina/notas/estado-de-paixao-e-o-nome-do-mural-de-kobra-em-porto-alegre/

[3]https://vogue.globo.com/cultura/arte/noticia/2023/02/artista-negro-mia-faz-intervencao-em-mostra-sobre-banks-e-questiona-elitizacao-da-arte-de-rua.ghtml

1 COMENTÁRIO

  1. Substitua pichação por pixação, grafite por graffiti. Excelente texto, iniciei a leitura com aquele estigma e receio de quem vive o hip Hop desde a infância mas q nunca acha contundência nos textos tendenciosos sobre o tema. Realmente o que está ocorrendo é uma gourmetização da cultura , visto que entre diversos talentos selecionan-se alguns para o hype do consumo para cada Eduardo kobra temos diversos @vespa.pdf para cada banksy temos milhares de Negro M.i.a. . E muitas vezes a admiração que se tem quando vistos em galerias se transforma em repulsa e revolta quando se encontra um grafiteiro em ação na rua. A arte é seletiva e no meio do graffiti não é diferente, seleciona-se oque é politicamente aceitável para o hype e exclui-se o que é realmente a cultura . Podem ser famosos com obras milionárias mas nunca serão realmente representantes da cultura .

DEIXE UMA RESPOSTA