A vida das crianças-condomínios

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O mundo é doloroso para quem vive numa redoma e põe os pés fora dela pela primeira vez, nunca se sabe o que acontecerá. As crianças precisam estar preparadas para viverem no conforto de um condomínio ou numa casa simples da periferia do bairro.

Antigamente morávamos em casas e podíamos correr nas ruas e brincar de esconde-esconde. Mas, atualmente, a maioria das crianças estão presas por trás de muros altos nos condomínios onde moram.

Esses muros nos mostram todos os dias as grandes desigualdades sociais em que são colocadas as crianças ricas das pobres, as que têm quase tudo e as que não têm nada. Aquela criança que anda no carro blindado e aquela outra que senta do lado da janela do ônibus cheio para acompanhar com o seu olhar perdido os casarões que as separam do mundo de lá, do mundo onde quase sempre elas são rejeitadas.

Essas crianças desconhecem a realidade do país e vivem as suas vidas do condomínio para escola. Muitas delas não sabem o que é um transporte coletivo ou o que é uma comunidade na periferia. Vivem alheias aos problemas da sociedade.

Não precisam enfrentar filas para serem atendidas em postos de saúde e têm ao seu dispor seguranças e professores altamente qualificados. Tudo sem precisar sair do condomínio.

Será essa uma vida válida para as nossas crianças? O que elas aprenderão por trás dos muros? Será que lhes ensinam a verdade sobre o mundo lá fora onde a fome, a violência e a polícia trocando tiros com bandidos matam crianças dos seus tamanhos todos os dias?

Nos seus pequenos mundos são protegidas por excesso de carinho e cuidado não conseguindo desenvolver formas de proteção e confiança às coisas do outro lado dos muros. Não sabem se defender de pessoas e coisas estranhas e necessitam sempre da opinião dos pais ou responsáveis para praticar uma ação.

Presas dentro de quartos de dormir com janelas para os muros altos elas não conseguem saber o que se passa lá fora, muitas delas nem sabe que existe um mundo lá fora. Tomam um susto quando vêm uma criança suja aparecer na televisão.

Elas não sabem nada da vida que dói e mata milhões de crianças do outro lado do muro de concreto e das câmeras de segurança onde estão protegidas. Também elas não têm culpa. É o excesso de zelo e cuidado dos pais num mundo cheio de violência, e nisso eles têm uma certa razão.

Usei o termo crianças-condomínios para diferenciar das demais crianças que, ao contrário dessas, vivem em casas sem muros e proteção demasiada. Proteger é importante, porém precisamos ter limites quando lidamos com criancinhas, pois essas necessitam conhecer mundos, principalmente, o real.

As crianças-condomínios conhecem apenas o mundo atrás dos muros altos que as protegem. Nos condomínios há normas estipuladas pelos síndicos e por aqueles que não gostam de barulhos de crianças. Nem em suas próprias moradias podem gritar, correr ou pular… as crianças-condomínios não podem ser traquinas ou fazer peraltices.

As normas dos condomínios são rígidas e criança que esperneia aborrecida porque tiraram-lhe o brinquedo pode incomodar o vizinho do lado e os pais logo recebem uma reclamação.

Essas crianças nunca andaram pelas ruas da cidade a sentir o vento bater em seus rostos, olhando as vitrines das padarias, os campinhos de futebol ou o vendedor de picolés da esquina. Elas sequer sabem da existência de um outro mundo além dos muros dos seus condomínios.

Vivemos uma realidade difícil diante das nossas crianças. Ao buscar protegê-las pais e responsáveis acabam podando o melhor que podem oferecer-lhes, ou seja, mostrando a vida como ela verdadeiramente é.

As crianças-condomínios desconhecem a violência urbana, pois andam em carros blindados e na escola não comentam sobre a última vítima inocente da periferia. A superproteção dessas crianças acaba prejudicando as suas vivências e quando se tornam adultas não sabem como caminhar sozinhas.

As crianças-condomínios nunca tiveram o prazer de brincar de gato no pote ou pau de sebo, pois em seus condomínios apenas podem brincar no parquinho ou na quadra poliesportiva.

Há um menino morador de um condomínio que outro dia confundiu um transporte coletivo com um caminhão. Esse mesmo menino a primeira vez que viu um morador de rua pensou que fosse um Lobisomem pela sua barba grande e roupas rasgadas. Esse menino vive num mundo do faz de conta onde tudo parece ser belo e bom.

As crianças-condomínios desconhecem a maldade e, por isso, quando sofrem bullying nas escolas não sabem como se defender. Algumas dessas crianças por não terem espaço adequado para se divertirem brincam com os seus celulares, logo não correm, não pulam, não gritam… tornando-se assim obesos por viverem a maior parte das suas vidas deitadas ou sentadas.

É preciso salvar as crianças-condomínios. Mostrar para elas a realidade do mundo, mesmo que seja dura e difícil.

Levá-las a um passeio na feira ou a uma escola pública da periferia de algum bairro para que assim conheçam e valorizem mais as coisas que têm e sintam de perto como as crianças que com tão pouco são felizes, também.

O mundo é doloroso para quem vive numa redoma e põe os pés fora dela pela primeira vez, nunca se sabe o que acontecerá. As crianças precisam estar preparadas para viverem no conforto de um condomínio ou numa casa simples da periferia do bairro.

Ademais, essas crianças-condomínios não têm quem as ouçam muitas vezes, não têm com quem conversar quando chegam da escola, não têm sequer vontade de brincar com outras crianças. Presas em seus muros, dentro dos seus aconchegantes apartamentos passam o resto do dia assistindo a filmes ou jogando nos seus aparelhos celulares.

Enquanto isso, lá fora depois dos muros no semáforo da esquina há crianças limpando para-brisas de carros para conseguirem dinheiro e ajudar no jantar em casa. As crianças-condomínios não sabem que existem crianças que não estudam, que não têm comida ou roupa limpa.

Algumas crianças-condomínios têm medo de outras crianças das suas idades quando se aproximam delas para pedirem um pedaço de sanduíche ou coisa parecida, porque não sabem como lidar com a situação e foram ensinadas desde cedo a ficarem longe de desconhecidos.

Criamos nossas crianças com medo de que elas enfrentem o cotidiano da cidade grande, e acabamos prejudicando as suas vivências diante da cultura da sociedade, pois elas não foram preparadas para lidar com certas indagações a respeito do mundo real.

As crianças-condomínios vivem das aparências, das sombras, numa espécie de caverna moderna.

E nós, adultos, assustados que estamos com o mundo real esquecemos que as nossas crianças precisam de saberes para o amadurecimento das suas ideias.

Criemos crianças-estrelas para correrem atrás delas diante dos morros das cidades grandes e lutemos por um mundo mais digno para todos.

Antes de escondermos as nossas crianças atrás de muros de concreto com seguranças armados e câmeras espalhadas por todos os corredores e locais deixemos que elas experimentem um pouco do viver perto da natureza, sentindo o mar, os pássaros, as demais crianças e as borboletas conversaram com elas, porque nada é mais bonito e saudável para uma criança do que sujar-se na areia no meio de uma grande algazarra.

Não tenhamos medo de mostrar para elas que o mundo não é igual para todos, infelizmente. Elas vão crescer confiando mais em nós.

Autora: Rosângela Trajano

Edição: Alexsandro Rosset

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