A solidariedade e o Natal 2020

911

 Isabela Camini1

Quando tu mesma, um dia, perguntares diante
de uma criança morta de fome ou de um velho 
abandonado feito trapo, pelas ruas:
“Que fizeste papai?” – poderei responder-te, se estiver vivo:  
“Clamei por toda parte. Agitei, sacudi, dei tudo que tinha de mais caro:
a mocidade, o sossego,  o ócio, os bens materiais e a liberdade,
para ajudar a abolir essa servidão”. Mas, se estiver morto,  
esta carta será a minha resposta à tua pergunta.
Por isso, Isabela, vou te falar agora daquilo que  
busco ser: compreenderás então o meu radicalismo.
E por que vim para o cárcere
(Francisco  Julião, 47)2.  



Meus caros, esta carta se pretende portadora de esperança, ainda que venha, a princípio, denunciar uma realidade dramática, apresentada por Julio Berdegué3e Frei Betto4, conhecedores da avassaladora questão da fome, que ronda o mundo, provocada pela desigualdade econômica e social e agravada sistematicamente pela Pandemia. Sem dúvida, estamos unidos a eles nesta denúncia, porque como nos diz Leonardo Boff, “atrás destes números se esconde uma via-sacra de sofrimento de milhões de pessoas, maridos, esposas, filhos, filhas, parentes, amigos e conhecidos. Somos, atualmente, uma humanidade crucificada. E devemos baixá-la da cruz  e ressuscitá-la”5

Contudo, esta carta quer ser anunciadora de gestos de solidariedade capazes de mover o mundo, alcançando uma população sedenta de justiça e de esperança. A carta-testamento de Francisco Julião, escrita no cárcere, à filha, Isabela, é testemunha de que precisamos clamar, agitar, sacudir, dar tudo de si para resolver,  de vez, a fome no mundo, porque ela degrada e machuca a criatura humana. Como poderemos dormir, sabendo  que tem crianças com fome?  

Provavelmente o Natal de 2020 marcará profundamente há milhões de pessoas no mundo inteiro. Algumas, porque têm exageros à sua mesa, e acumulam desenfreadas riquezas, alimentadas pelo consumismo e falsa segurança. Se lhes resta algum fio de humanidade, terão de se envergonhar e pedir perdão. Outras mais, porque nada tem, e podem morrer da doença chamada – fome, cujo único tratamento é comida na mesa.

 Seja como for, o Natal é a celebração de vida nova anunciada há dois mil anos. A Pandemia que alcançou hemisférios deferentes, alertando-nos a redobrar os cuidados, afetou os mais pobres, ceifando vidas  prematuras, e deixando outras vidas em sofrimento e desolação. Por isso, não creio que este Natal de 2020 deva ser de festas desmedias e ostentação de vestes novas e troca de presentes. Talvez o farão deste modo, aquelas pessoas, que veem no Natal a oportunidade de comércio e de lucros, sem se importar com as milhares  de vidas perdidas e os rastros de luto que ficaram. 

Sim, o Natal de 2020 marcará, de modo especial, aos que tem um coração generoso para doar alimentos e esperança, e aos que tem fome de pão e de justiça, e poderão saciar a fome de pão, pelo menos no dia em que a vida se renova. Para estes, será um Natal diferente, regado pela solidariedade, e amor à humanidade. Um Natal a não ser esquecido, porque o período dramático causado pelos problemas sociais, aprofundados pela Pandemia, terá que ser lembrado nos atos de resistência e lutas sociais, até o dia em que possamos cantar a liberdade, junto com os oprimidos. Esse eco deverá alcançar os corredores dos palácios e dos condomínios,  cercados por arames farpados, muros e seguranças humanas, que guardam aqueles/as cujo medo dos pobres  os coloca também em uma prisão, cerceados de liberdade.  

Ainda que a Pandemia tenha assustado o mundo, já havia milhares de pessoas mergulhadas na pura indiferença, no negacionismo, ensaiando a cegueira para não ver a realidade, ostentando a fartura de bens, mas sem a beleza da gratidão. Estes não dormem e nem acordam com fome em nenhum dia do ano. 

Sua insensibilidade os impossibilita de perceber as pessoas vivendo na miséria, nas praças, com fome e frio, maltrapilhos. Ao percebê-los, de longe, lhes causa amargor, raiva, porque julgam: eles não querem trabalhar, são preguiçosos! Se possível, na primeira oportunidade, alteram o trajeto, porque não os ver e negar-lhes um olhar, reafirma sua zona de conforto, Casa Comum dos indiferentes. Alterando o trajeto, adubam e regam essa indiferença, e a sua própria desumanidade. Se comportam deste modo, porque sua mesa é farta, embora não conheçam o significado do trabalho, seus palácios estão aparentemente protegidos. Por isso incapazes de olhar nos olhos daqueles cuja fome lhes dói todas as manhãs, tardes e noites, sentindo frio porque não têm agasalhos, não dormem, porque perseguidos pela polícia. Negados de ter casa, da convivência humana, de sentar-se à mesa, impossibilitados de ler o mundo e dizer a sua palavra.  

Os indiferentes se negam a admitir que a mãe terra, nas mãos de muitos trabalhadores, produz comida,  saúde, bem estar, realização e gratidão. Mas sabem eles, e admitem, que plantar em demasia, e fartar as plantas e as águas de venenos para produzir mais e exportar, é direito assegurado pelo capitalismo explorador. Por isso, não é razoável imaginarmos tantas criaturas com fome num país tão rico, e de pessoas ainda tão generosas. Não é razoável, admitir que a riqueza esteja concentrada nas mãos de menos de 10% de famílias brasileiras.  

Pois bem, disse acima, que essa missiva chegaria a vocês para anunciar, porque sabemos e conhecemos a fonte fecunda, que nos permite fazer esse anúncio. Por isso, não creio ser exageros dizer que o valor da solidariedade e da partilha estão na raiz, no embrião do MST. Quando as primeiras famílias decidiram enfrentar o latifúndio e ir acampar, para manter-se camponeses e cultivar a mãe terra, permanecendo debaixo das lonas em luta, até conquistar um assentamento, prometeram a si mesmas: arar, semear, cultivar, regar, colher, e partilhar os frutos que brotam da terra. 

E este princípio perpassa a luta dos Sem Terra, de uma geração para a outra, cruzando fronteiras, alcançando 24 estados do país. Por isso, hoje, estão indo ao encontro daqueles/as, cujo espaço onde vivem, não lhes permite cultivar sequer algum alimento. Suas moradias, pequenas e precárias dão conta apenas de viver entulhados, sem privacidade alguma, ausentes de dignidade. Vivendo nestas condições, não há como evitar a proliferação do Vírus, a violência, a morte e o luto que rodeia as periferias urbanas. Vendo-se distantes de possibilidades de trabalho e de lazer, com acesso a minguadas políticas públicas de saúde e educação, roubados de direitos e dignidade, afetados ainda mais pela Pandemia que demora passar, ficam à mercê do medo e da insegurança que atravessam suas noites. Seres humanos, invisibilizados, sujeitos a morrer de fome e de frio, de balas perdias, como vemos todos os dias. Quem os vê?  Quem os visita na prisão? 

Solidariedade é partilhar o melhor que temos em nossos assentamentos, alimentação saudável, comida de verdade6

O MST, lá da roça, vê essa realidade, ouve seu clamor e se comove. Não porque tem pena, mas porque  está do lado do pobre, com um coração que sangra todos os dias, com um estômago, cuja fome o esmaga e  humilha, levando-o à tristeza e degradação humana. Do lugar distante onde vivem, nos assentamentos e  acampamentos, ouvem seu apelo. Por isso renovam os princípios e valores de solidariedade que lhes deram origem há quatro décadas: conquistar a terra, arar, plantar, regar, admirar a lavoura, e depois, colher os frutos.  E porque a mãe terra não tem dono, mas é de quem nela trabalha e cultiva, os frutos são partilhados solidariamente com os que tem fome nas periferias das cidades. 

Há meses atrás soubemos que MST tomou uma decisão coletiva, de escolher e reservar um pedaço do lote para plantar uma diversidade de alimentos, destinados a doação para famílias carentes, no Natal. Sem dúvida, esta prática, portadora de dignidade humana, falará mais alto que muitas palavras, repetidas e  badaladas nas redes de comunicação social, de propriedade de famílias abastadas, da classe hegemônica. 

Sem dúvida, para estas mulheres e homens, o Natal começou a ser celebrado no momento exato desta decisão. Eles não se programam para doar as sobras, as migalhas que caem de suas mesas, ou esmolas, colocadas à parte, para fartar os mendigos de uma só fez, e despedi-los, rapidamente, de mãos vazias. Assentado da Reforma, Adilson testemunha que as doações feitas são de alimentos, sadios, orgânicos, coloridos, sem veneno, servidos a si mesmos, em suas próprias mesas. Estas pessoas podem celebrar e festejar o nascimento daquele que veio viver por 33 anos entre nós, para que todos tenham vida, e vida em abundância, todos os dias. Aquele que nos deu lições de vida, proferindo palavras que derrubou os poderosos de seus tronos, e exaltou os humildes. 

Gestos de solidariedade brotam das mãos de acampados, de assentados, da grande família Sem Terra. “A solidariedade, essa cadeia misteriosa e invencível que liga os homens entre si não conhece distância nem obstáculos”, nos disse Francisco Julião. 

Por isso, de forma planejada, algumas pessoas trabalham para colher e organizar a produção, outras, carregam as caixas nos caminhões. Os motoristas dirigem e circulam pelas periferias das cidades. Os jovens, com os protocolos de cuidado, entregam as cestas, marmitas e palavras de esperança, amenizando a tristeza da fome nos olhos dos humildes. E não esqueçamos. Enquanto pensam na melhor forma de celebrar o Natal, o Plano Nacional – plantar árvores e produzir alimentos saudáveis, continua seu curso.  Ao decidir plantar 100 milhões de árvores em 10 anos, o MST antecipa sua solidariedade com as crianças que ainda não nasceram. Obviamente, pensando nas novas gerações, é que se justifica plantar.

Diante do que vemos, é preciso nos perguntarmos: Porque o agronegócio, que desmata, que ostenta produção grandiosa, exportações em grande escola, não se propõe a fazer doações, já que seus lucros são exorbitantes? 

Não duvidamos de que seus próprios empregados/trabalhadores também estejam nas fileiras, à espera de uma cesta básica, que venha da pequena produção orgânica, sem venenos! Obviamente, os meios de comunicação social hegemônicos se negam a dar publicidade a gestos de solidariedade que venham deste povo. Se o fizessem, estariam contrariando a sua própria classe social, cuja Pandemia tem provocado entre eles, alguns gestos de assistencialismo relâmpago, despedindo os famintos em seguida, como se a fome fosse resolvida à luz dos holofotes de comunicação, e não retornasse no dia seguinte, e a cada dia novamente.  

Quanto a nós, se tivéssemos penas para escrever sobre os gestos de solidariedade, que trazem o diálogo do MST com o povo através do alimento, teríamos que iniciar o percurso pela nobre decisão de ocupar o latifúndio, pela escolha de roças específicas a serem plantadas, pela alegria das colheitas, e pelos atos de entregas às famílias carentes. Para tudo isso, nos faltaria folhas de papel. E se as tivéssemos, teríamos que juntar muitas penas para este registro. E depois, sentarmos, confortavelmente, para lermos o quanto de humanidade perpassa a solidariedade vinda de um Movimento organizado que luta por uma Reforma Agrária Popular há 36 anos. Uma luta que contraria e confronta diretamente o sistema capitalista, em crise, excludente e desumano.  

Sem dúvida, estes gestos de solidariedade foram aprendidos ainda nos acampamentos, quando eles mesmos recebiam doações, uma condição para continuarem acampados, com identidade camponesa. A gratidão e a solidariedade brotaram e germinaram na gênese do MST. 

Muito cedo, este Movimento entendeu que a solidariedade se faz nas lutas contra as causas estruturais da pobreza, a desigualdade, a falta de trabalho, terra e a casa para morar. Gestos de solidariedade que somente os pobres sabem seu gosto e profundo significado, porque orientados pelo Evangelho, pelo Papa Francisco, e por centenas de vidas Sem Terra, retiradas brutalmente de nosso convívio, pelo simples fato de estarem lutando pela terra partilhada, e por mesas fartas, de pão e de beleza, para toda a humanidade. 

Com abraço fraternal, Feliz Natal a quem doar. Feliz Natal a quem receber.  

Em outra publicação, já escrevemos: “com um olhar focado na atualidade, temos o Papa Francisco, cuja prática evangélica de solidariedade é viva e profundamente coerente, capaz de ser admirado também por alguns poderosos. Um Francisco, que reza sozinho na Basílica de Roma, emocionado, solidário com as famílias dos entes queridos do mundo inteiro, ceifados pela Pandemia”. Leia mais aqui.


1 Do Setor de Educação do MST.  

2JULIÃO, Francisco. Até Quarta, Isabela. Carta-Testamento (memórias, 1965). Petrópolis, Vozes, 1986.  

3 Na América Latina, não há fome por falta de alimentos, há fome por falta de renda e pela desigualdade econômica  sofrida por milhões de pessoas – Julio Berdegué, Vice-diretor-geral da FAO e representante regional para a América  Latina e o Caribe, desde 22 de abril de 2017. Revista IHU – ON-LINE, 21 de outubro de 2020 

4 Segundo a Oxfam, 12 mil pessoas podem morrer de fome a cada dia até o final de 2020. Frei Betto é Frade  dominicano, escritor, assessor da FAO e de movimentos sociais. Revista IHU – ON-LINE, 21 de outubro de 2020.  

5 BOFF. Leonardo. C0VID-19 – A Mãe Terra contra-ataca a humanidade: advertências da Pandemia. Petrópolis, Editora Vozes,  2020.

6 Adilson Apiaim, Educador e poeta, no MST/Piauí. Chat TV FONEC, dia 22/10/20 – Educação do Campo e Soberania. 

Pedagoga, mestre e doutora pela UFRGS. Do Setor de Educação do MST/RS.

DEIXE UMA RESPOSTA