Carta Pedagógica: Por uma Pedagogia da Solidariedade

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Permita-se rir e conhecer outros corações.
Aprenda a viver, aprenda a amar as pessoas com solidariedade,
aprenda a fazer coisas boas, aprenda a ajudar os outros,
aprenda a viver sua própria vida.
(Mário Quintana)


Meus Caros, escrever é uma terapia extraordinária. Dispensa terapeuta, e faz bem a todos, de modo especial aos orientados a ficar em casa. Enquanto escrevemos, nos mantemos focados na construção da palavra e do pensamento que se quer comunicar às pessoas, ainda desconhecidas. Quando intercalamos a escrita com outras tarefas do cotidiano, continuamos a pensar qual a palavra adequada para formular o próximo parágrafo.

Vejam bem, nestes estágios de elaboração, as preocupações, angústias, medos, inseguranças não tem espaços, ou são minimizadas porque estamos ocupados com o ato de pensar, criar, bordar as páginas com as letras. Desta forma, ficamos bem ocupados, e intencionalmente focados. Para quem deve e pode manter-se no isolamento, eis uma sugestão, experimentada no exercício da disciplina consciente.

Se esta carta, for útil para os militantes do Movimentos Sociais, cuja tarefa, neste momento, é de organizar a prática de uma solidariedade capaz de tornar-se uma Pedagogia da Solidariedade,que venha configurar o modo humano de ser, movendo-se ao encontro das pessoas que aguardam os alimentos para saciar a fome de pão e de beleza, tanto melhor.

Pleno de sabedoria pedagógica, Paulo Freire prestava muita atenção às intuições. Quando se via movido por elas, escrevia, sem parar, com o próprio punho. Elas são o início do conhecimento que liberta, do pensar certo, dizia ele, porque inspiradas na prática. Neste momento, em que me encontro também “em casa”, sinto o dever de manter-me conectada com os que sofrem, lendo o que ocorre no mundo, construindo arte, ouvindo pessoas, preparando meu próprio alimento, orgânico, recebido dos assentamentos. Por isso também tenho tempo para vos escrever, com o propósito de dar força àqueles que buscam sair de si, da sua zona de conforto, indo ao encontro solidário do outro, porque a fome não espera.

Vamos precisar de todo mundo

Então, nossa intenção aqui é pensar sobre o grande desafio a que somos chamados a dar resposta, neste momento de Pandemia, cuja rapidez alcança 64 mil óbitos no Brasil, fora os subnotificados, deixando rastros de miséria, desemprego, fome e muita dor no mundo inteiro. Precisamos estranhar, mas procurar entender a descrença de pessoas que não entenderam ou negam a gravidade deste momento, e por isso se desobrigam de cuidar de si e dos outros.  Lamentamos, no entanto, os maus exemplos vindos de autoridades que autorizam pessoas a mergulhar na descrença, negando a gravidade gerada pela Pandemia.

As pesquisas científicas são evidentes É uma doença, cuja face é desconhecida, porque avança rapidamente para todas as direções, ceifando vidas, nos dando avisos para que repensemos os erros cometidos nas últimas décadas, tais como: Desrespeito total ao meio ambiente, agressão aos diferentes ecossistemas, desmatamento das florestas, envenenamento das águas, dos animais, e especialmente da Mãe Terra. E no meio urbano, admitindo a criação de grandes conglomerados de pessoas, sem as condições mínimas de acesso e vida digna.

Meus caros, temos ouvido falar muito de solidariedade desde que a Pandemia alcançou o mundo, levando vidas de todas as condições sociais, raças e idades, sem nos dar o direito ao menos de nos despedirmos de seus corpos. É tudo muito triste. Contudo, não podemos focar na tristeza e na desesperança. Tudo vai passar.

A vida humana clama por justiça, por solidariedade, por amor ao próximo, valores esquecidos, camuflados pelo capitalismo explorador. Mas de qual solidariedade estamos nos referindo? Obviamente, da solidariedade que brota dos pobres, tanto na capacidade de dar quanto de recebe. Da solidariedade que rompe as cercas e os muros, que abre as portas e supera divisórios entre os que tem e os que não tem.

Vejamos bem, não tratamos aqui das ações feitas por entidades e/ou pessoas físicas, que por décadas, acumularam e exploraram vidas humanas. Ou porque alcançaram profissões e cargos, cujos salários ultrapassam os limites da ética e da justa partilha. Chama nossa atenção como os Meios de Comunicação, anunciam diariamente estes feitos, omitindo ao mesmo tempo belíssimos e verdadeiros exemplos de solidariedade, cuja visibilidade multiplicaria ações semelhantes.

Sabemos, no entanto, o lado dos canais televisivos, por isso, esperam credibilidade e audiência pública, porque comprometidos com a classe dominante à qual servem. Por isso o conceito de solidariedade disputada por eles, se fundamenta na doação que pacifica, levando o outro a dependência, a acomodação, à espera da pura espera vã. Uma solidariedade que desautoriza organizar a luta coletiva, e a construir práticas sociais, conscientes e organizadas. Uma solidariedade que cega as pessoas, sem ver alguma possibilidade de libertação. Sendo assim, os MC são impelidos a dar maior divulgação, a doações e a doadores, cujo interesse subjacente deseja que a mão direita saiba o que faz a esquerda.

Exemplos temos de sobra

A Solidariedade como imensurável valor humano, é recorrente na história da humanidade. Os quatro evangelistas guardam narrativas acerca de milagres feitos por Jesus. Como exemplo trazemos a multiplicação dos pães e peixes, porque ali havia fome entre as pessoas. Assim que atenderam ao apelo de Jesus para que se organizassem em pequenos grupos, tudo mudou. O milagre realizado por Jesus não foi a magia da multiplicação, mas o ter sensibilizado as pessoas a se importarem com a fome do outro e ter desafiado as mesmas a partilhar o pouco que tinham, abençoando esse gesto e fazendo compreender a importância de organizar-se em pequenos grupos para distribuir a todos o pão e o peixe colocados em comum.  

A solidariedade humana por excelência encontramos em São Francisco de Assis/Itália, no século XIII. Ainda muito jovem, Francisco, contesta e deixa o conforto, a riqueza da casa paterna, e vai morar/viver, solidariamente com os leprosos, condenados a viver fora dos muros de Assis, porque portadores de uma doença contagiosa e incurável.

Francisco foi solidário com os mais frágeis, sabendo que o “horizonte mais próximo do leproso é a morte”, porque ela se aproxima à medida que assiste a morte do outro. Francisco lhes fazia companhia, tratava suas feridas, conversava, escutava. E de vez em quando voltava rapidamente para casa paterna, ocupando-se de buscar alimentos para levar aos leprosos. Ele mesmo diz em seu Testamento que fez misericórdia com eles, o que pode ser traduzido atualmente por praticar a solidariedade. Para Francisco de Assis, esse gesto solidário trouxe não só conforto e alivio aos leprosos, mas modificou a vida dele. Ele mesmo se tornou mais humano. Olhando hoje para a ações de partilha que os Movimentos Socias estão fazendo, é visível que a solidariedade humaniza quem a pratica e quem a recebe.

Outro exemplo de verdadeira solidariedade encontramos em Che Guevara, argentino de origem, médico de formação, que por um tempo escolheu Cuba para pensar as estratégias da revolução. Colocou sua vida a serviço da luta por justiça e liberdade, alimentou a mística e amor a humanidade de qualquer parte do mundo. Estimulou e deu exemplos de solidariedade, na construção de casas, nas colheitas, em mutirões de limpeza, prestando atenção e medicando os feridos na luta. Seus gestos foram tão fortes, que brigadas de solidariedade são organizadas até hoje no mundo inteiro. Era convicto de que se vive com mais dignidade quando se tem em mente a solidariedade.

É de Che esta frase: “Acima de tudo procurem sentir no mais profundo de vocês qualquer injustiça cometida contra qualquer pessoa em qualquer parte do mundo. É a mais bela qualidade de um revolucionário”.  E a isto eu acrescento: haverá maior injustiça cometida contra um ser humano, do que negar-lhe solidariedade na partilha do pão e no cuidado da vida?

Neste sentido, destacamos a solidariedade dos mais de mil e duzentos médicos cubanos prestando serviço em vinte e um países, buscando salvar vidas alcançadas pela Pandemia. A solidariedade destes médicos permanece ao longo dos anos, porque sua formação leva em conta a vida das pessoas. Não está ligada ao mercado, mas a sentimentos humanos. Se estivessem hoje, no Brasil, quantas vidas poderiam salvar!

Não há formas de mensurar a solidariedade encarnada na missão de Madre Tereza de Calcutá/Indiana, também chamada de Santa das Sarjetas; em Santa Dulce dos Pobres/brasileira, entre outros.

Quanta solidariedade se concretiza no encontro cotidiano de Frei David, do Pe. Júlio Lancellotti com os moradores de rua de São Paulo e Rio de Janeiro, assistindo aos donos dos hotéis se recusarem a acolher este povo em plena Pandemia. E ainda tendo que ouvir Bia Doria, esposa do governador dizer: “não se pode levar marmitas e cobertores aos moradores de rua. Eles precisam assumir alguma responsabilidade, e sair da rua. A vida para eles é cômoda, e sempre querem mais”. Sem dúvida, estas palavras revelam uma mulher de postura perversa, maldosa, que não guarda um fio sequer de compaixão pela humanidade. Pessoas que pensam deste modo, porque sua alma é corrupta, ignoram que os leprosos do século XIII estão de volta às ruas de São Paulo.

Para o capital, o valor está no lucro, como diz Guedes, Ministro da Economia, que ridiculariza a solidariedade e compaixão em suas falácias. Para estes e estas, os pobres podem morrer na rua, de fome, de frio, sem medicamentos, sem poder respirar. Sabem estes homens e mulheres que a partilha é um gesto obrigatório do ser humano e do ser cristão?

Com um olhar focado na atualidade, temos o Papa Francisco, cuja prática evangélica de solidariedade é viva e profundamente coerente, capaz de ser admirado também por alguns poderosos. Um Francisco, que reza sozinho na Basílica de Roma, emocionado, solidário com as famílias dos entes queridos do mundo inteiro, ceifados pela Pandemia.

Com coração solidário e partido de dor, se importa com as famílias amazonenses, em luto, com as vítimas de São Paulo, territórios onde a Pandemia chegou para ceifar muitas vidas, incluindo os povos indígenas, ribeirinhos, quilombolas, extrativistas, pescadores. Estas são pessoas humanas que vivem do que a floresta e as águas lhes oferecem, sem explorar e envenenar a natureza. Obviamente, é notável que nestes territórios as políticas públicas de saúde e saneamento básico estão ausentes. Por isto também se percebe o avanço rápido da contaminação da doença.  

Outra referência neste sentido para nós, é o educador Paulo Freire. Um homem sensível, aberto para o mudo, desde cedo cultivou a solidariedade, distanciada e desatrelada do assistencialismo.

Ao escrever Pedagogia do Oprimido, nos deixou um legado, regado de solidariedade para com os oprimidos, cuja miséria, machuca, fere a dignidade humana. Solidário com dor e humilhação geradas pela opressão, nos alertou para não nos iludirmos de que para sair da condição de opressão basta mover-se para o lugar do opressor. Grande engano. Trocando de papéis, nada muda, ninguém se liberta. Somente a conscientização e a consequente mudança de práxis, sem vingança, nos libertará do vírus do ódio que habita, tanto o opressor quanto o oprimido. Paulo Freire fazia tudo imbuído de amor e teimosa luta pela solidariedade. Há indícios de que a cura e o perdão vêm pelos atos solidários.

Obviamente, exemplos de solidariedade não nos faltam no decorrer de séculos da história. A Pandemia veio para nos fazer lembrar do que nossa memória deixou no esquecimento. E que não pode ser assim entre os humanos. Por isso aqui o desafio é construirmos uma Pedagogia da Solidariedade, que nos liberte da opressão, geradora de outras opressões, fome, desemprego, miséria, preconceito. Sabemos que a fome da pandemia não espera, não deixa dormir aqueles que se importam com as vidas humanas.

Sem dúvida, o medo da Pandemia vivido nos últimos meses, sem alguma certeza do tempo e espaço que vai tomar em nossas vidas, nos provoca a uma solidariedade mais radical, organizada, consciente e responsável. Para fazer frente a esta realidade, vamos precisar de todo mundo, para organizarmos uma Solidariedade fortalecedora, transformadora, de compromisso e empatia com o outro. E que não seja passageira, vulnerável, vivida apenas nestes momentos de desesperos.

Concretamente as partilhas, precisam ser transformadas em práticas sociais permanentes, de forma a evitar as relações de dependência e assistencialismo. Ou seja, uma Solidariedade que venha configurar o modo humano de ser, tal qual a relação de Francisco de Assis com os leprosos do seu tempo histórico.

Já é sabido entre nós, de que o clamor de quem sequer tem sabão para lavar as mãos para evitar o contágio, também não terá comida para saciar a fome, 3 vezes ao dia. E nem água para banhar-se e lavar suas roupas. Acredito que o sábio pensamento pode nos ajudar a avançar na reflexão: “Ninguém é tão pobre que não tenha nada a doar, e ninguém é tão rico que não tenha nada a receber”.

Quem não partilha, não aprendeu a ser cristão

Desde uma prática concreta de partilha dos frutos da terra que plantamos e colhemos em nossos assentamentos da Reforma Agrária, em todas as estações, nos desafiamos a construir uma Pedagogia da Solidariedade, que venha agregar todos aqueles e aquelas que respeitam a vida como valor a ser cuidado. Neste momento precisamos compreender que são os belos gestos de solidariedade que Deus abençoará generosamente. Contudo, o desafio é atual e urgente. De forma alguma podemos esperar para fazer amanhã, tudo aquilo que podemos fazer hoje.   

Dado o apelo da realidade emergencial, assustadora, vivenciada por todos nós a cada dia, por conta da Pandemia, é notável os gestos de solidariedade grandiosos. Estes se multiplicam, interligando pessoas que tem para doar e as que tem necessidades de receber.

Por conta da fome que se instala entre as famílias pobres, desprovidas de direitos, sem acesso a  políticas públicas, nas comunidades periféricas urbanas, o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, criado em 1984, presente em 24 estados do Brasil, com 2 milhões e quinhentos mil pessoas assentadas, está empenhado em ações de solidariedade. De forma organizada, elas incluem a elaboração teórica desta experiência prática que ser quer alimentar e forjar multidões a se engajar neste grande mutirão. Tendo presente esta realidade, alimentos colhidos nos assentamentos, como: feijão, arroz, batata, mandioca, abóbora, banana, café, açúcar, e outras, são levadas às famílias que passam fome, porque não podem sair de casa para trabalhar. Junto levam livros, porque a falta de cultura também provoca fome entre essas pessoas.

O registro em vídeo tem sido um meio de comunicação ao alcance de nossas mãos, embora ainda não ao alcance das famílias carentes. Estes circulam rapidamente, dando visibilidade a diferentes práticas coletivas, ações de solidariedade, que podem ser traduzidas como um curto filme. Um filme colorido, onde podemos ver a quantidade de alimentos coloridos, as casas, a igreja, o pavilhão, a escola, e as pessoas em movimento, colhendo, organizando e entregando as cestas básicas nas periferias. Podemos ouvir ali sua palavra e captamos sua emoção, ao dizer: nós fomos acampados, nós conquistamos a terra, plantamos, e hoje colhemos. E assim temos alimentos para doar.

Num vídeo recente – O que é solidariedade para você, ouvido por mim várias vezes, sintetizei o seguinte:  A solidariedade está nos fundamentos da nossa vida social, ela é popular. Nossas ações organizam as doações de alimentos, por isso, em poucos dias, 25 mil litros de leite, 50 mil marmitas e 22 mil cestas básicas foram partilhadas em diferentes estados do Brasil. Nestas cestas também vão livros.

Para quem viveu a morte, o luto e a dor mais profunda, vendo tantos assassinatos no campo, aprendeu a transformar o luto em luta, e fará assim quantos anos forem necessários. Mas não só isso, a luta pela Reforma Agrária Popular, emergencial, incentivando a plantação de alimentos em torno das grandes cidades, é um projeto de curto e médio prazo que o MST está propondo. Pela sua experiência de cultivar a terra para o bem de todos, o Movimento tem método, braços e força humana para fazer acontecer.

Em outro vídeo, revelador da prática da solidariedade, no Paraná, uma assentada nos diz:

Há dois anos atrás, nós fomos despejados do assentamento, perdemos tudo, ficamos sem nada. Fomos morar na casa dos outros. Hoje estamos de volta, reconstruímos nossa casinha, e toda a plantação. Temos o pão de cada dia na mesa. Temos nossa igreja, pavilhão. Por isso eu sempre digo para as autoridades: o agricultor tem que ficar na terra, e daqui tirar o alimento. Não pode ir para a cidade. Tem que ter fé e paciência, agora nós podemos ajudar a quem não tem. 

Estes assentados entenderam o valor daquele ato na presença de Jesus, que apelou para a solidariedade da partilha dos pães e peixes. Entenderam como é importante organizar a partilha, para que todos possam se alimentar.

Nesta perspectiva, partindo do pressuposto de que a Partilha vence a avareza daqueles que tem apego excessivo ao dinheiro e a riqueza, com esta experiência de partilha, os assentados abraçaram o leproso, sem medo, com todos protocolos da saúde, porque a solidariedade é maior, e as vidas precisam ser preservadas.

Sou testemunha de que diariamente, os sem-terra, se alimentam bem, com alimentos saudáveis. Muitas vezes sentei à mesa, com famílias assentadas. E tudo ali era farto. E hoje, atendendo ao apelo da fome gerada pela exclusão social, agravada com a Pandemia, seu excedente se transforma em partilha para outras pessoas que não tem. Assim exercitam a fé engajada, concretizada na solidariedade. Exercitam a paciência com os ciclos da natureza, com o tempo para preparar a terra, semear, regar, cultivar e colher. E exercitando a paciência impaciente, no dizer de Freire, pressionando as autoridades, eles reconquistaram o assentamento do qual foram despejados há dois anos atrás. Que lição de vida nos dão estes assentados! Portanto, não surpreende que venha deles estes gestos de solidariedade, porque a doação sempre vem de quem conhece o sofrimento e o valor da partilha. Esta é a matriz da solidariedade humana de que tratamos, solidariedade como princípio, como valor humano e espiritual.

Com certeza, a mulher assentada do depoimento acima, tem plena consciência da solidariedade que vai junto com os alimentos entregues às famílias, e que gestos de partilha como estes mudam o rosto de uma mãe que recebe uma sexta básica para alimentar seus filhos. Quanta alegria no rosto de uma mãe, que pode colocar alguns alimentos na sua dispensa, mesmo depois de ter ficado 24 horas na fila da CAIXA para receber 600,00? 

Naturalmente, há uma boniteza implícita nas ações pedagógicas de solidariedade de entrega de alimentos as pessoas das periferias urbanas. Quem dá, dá com alegria, com gratidão de ter colhido aquele alimento da terra conquistada. Ao saciar a fome de pão de tantas pessoas, recuperam a fome de beleza, a dignidade humana, roubada pelo capitalismo. A quem recebe, alimenta um fôlego para enfrentar esse redemoinho de horror e de perversidade governamental, pelo qual passamos neste momento. Atitudes desumanas, sem uma palavra de solidariedade a tantas famílias alcançadas pele luto e pela dor da Pandemia.

Solidariedade faz brotar valores, que o capitalismo não cultiva

Neste sentido, é da natureza dos Movimentos Sociais perceber às injustiças e as desigualdades crescentes que assolam os povos do campo e da cidade, movendo-se em direção deles. Neste caso concreto de Pandemia, a falta das mínimas condições de vida digna, incluindo a ausência de políticas públicas de saúde, educação, moradia e saneamento básico, afetam diretamente as periferias urbanas, porque as pessoas ali são obrigadas a viver em barracos que não comportam vida digna. Por isso, desde o início da Pandemia estes Movimentos Socais do campo organizaram a Campanha PERIFERIA VIVA, que inclui diferentes demandas de atenção a esta periferia dos grandes centros urbanos. Uma iniciativa que vem organizar a solidariedade tão necessária neste momento, e que ser quer consolidar e permanecer como um valor humano entre nós. 

Engajados neste projeto solidário, grupos de jovens militantes de vários Movimentos Sociais do Brasil, estão sendo preparados, formados para esta tarefa de solidariedade. Dispostos a colocar-se a caminho, sem grandes pretensões, a não ser, ir conversar com o outro, preparam sua mochila com palavras, comida, livros, expectativas, esperança, solidariedade, sensibilidade para escutar o outro. Estão indo ao encontro, provavelmente de muitas pessoas contaminadas, leprosas de Assis, século XIII, cujo rosto é visto em pleno século XXI, nas vítimas da Pandemia aqui no Brasil.

São estes acontecimentos que voltam a questionar o comportamento do capital, gerador de exclusão social. Tomando todos os cuidados e protocolos de saúde, estes jovens militantes partem ao encontro do outro, porque a vida deste outro, importa.  Saber Cuidar de si e dos outros, no aspecto físico e emocional, é condição humana para vivermos longo tempo.

Vejam o desafio desta juventude não é pequeno. Ao final de cada cotidiano, se desafiam ao registro fiel, sem julgamento, acerca do que viram, ouviram e sentiram, identificando os apelos para o dia seguinte. Ressalto aqui com veemência.

Este registro lhes guarda um viável e primoroso processo de sistematização desta experiência, germe de uma Solidariedade que se faz Pedagogia. Portanto, uma solidariedade que vem acompanhada de razões para permanecer, tornando-se uma prática social recorrente. Estas práticas concretizam a ideia de que a terra, se cultivada e cuidada, produzirá os frutos necessários para alimentar as pessoas do campo e da cidade. Por isso a terra, de forma alguma, poderia ser objetivo de comércio e de especulação pelo latifúndio. Se a terra é mãe, mãe não se troca, não se vende. Ela é mãe. Se respeitada, bem cuidada, cultivada, nos dará o alimento de que precisamos para viver.

Queridos jovens militantes. Não temos dúvidas de que vocês farão um trabalho pedagógico, formador, extraordinário. Será uma experiência singular, de aprender a amar as pessoas com solidariedade, colocando-se frente a frente, sentindo o seu cheiro, olhando nos seus olhos, já que a máscara impede de ver o rosto inteiro. Procurem ler o que os olhos deste povo vos dizem.

Escrevam no diário de campo como é olhar para o outro, e como ele olha para vocês. E qual o sentimento brota em vocês pelo fato de estar ali, com o negro, pobre, LGBT, faminto, doente, em nome de uma Organização Social. Podendo, ao final do dia, voltar para casa, sentar-se à mesa, e alimentar-se.

Sem a pretensão de me alongar, esta ida à periferia, ao encontro do outro, será para vocês uma oportunidade de formação humana, não encontrada em nenhuma escola formal, nenhum curso, muito menos a quem alcança a Universidade, ainda tão longe da vida real das pessoas. Estas instituições, viciadas e controladas, se prestam muito mais para a educação e ensino, comprometido com a hegemonia do capital.

O espaço, o lugar em que vocês irão atuar, está livre das cercas, dos muros, do controle, dos preconceitos, de cor, de gênero, de classe social. Deixem-se encharcar de vida humana, de princípios e valores que nenhum vendaval leva. E que a lama de Mariana e de Brumadinho, não enterra.   

Cora Coralina, na sua simplicidade e sabedoria nos disse certa vez:

“O saber a gente aprende com os livros. A sabedoria se aprende é com a vida, e com os humildes”.


Grande e fraterno abraço,
Porto Alegre, 07 de julho, 2020



Creditos fotos: Fotos 1 e 2, MST/divulgação. Foto 3: Diangela Menegazzi
Pedagoga, mestre e doutora pela UFRGS. Do Setor de Educação do MST/RS.

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