“A culpa que tu carrega não é tua”: reflexões sobre a violência contra a mulher em projeto de enfrentamento

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A partir desta experiência é possível demonstrar o necessário debate sobre o papel social da mulher na luta por direitos sociais, pela equidade de gênero, no âmbito da sociedade civil e domínios institucionais e especialmente na escola.

Instituída em 2006, a Lei Maria da Penha, que trouxe maior rigidez na punição contra crimes de violência doméstica no Brasil, é considerada pelo Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher uma das leis mais avançadas do mundo, produzida e pensada junto da sociedade civil e dos movimentos sociais que já trabalhavam com o enfrentamento à esse tipo de violência.

Ao mesmo tempo, o Brasil produz dados expressivos relacionados à violência contra a mulher: tem a quinta maior taxa de feminicídio no mundo, e, segundo dados da Organização Mundial da Saúde, 4,8 a cada 100 mulheres são vítimas de violência.

O tema exige uma luta coletiva: é um grande desafio articular as políticas diversas que estão relacionadas ao combate a violência de gênero sob uma perspectiva educativa e formativa, especialmente sob a égide das novas organizações curriculares, em que as disciplinas em que há espaço para a discussão do tema têm pouco espaço.

O projeto “A culpa que tu carrega não é tua: relatos de violência e práticas de sororidade”, realizado durante o ano letivo de 2022 no Instituto Estadual Cecy Leite Costa, foi pensado como uma atividade de enfrentamento a esse contexto. Partimos da ideia da existência da naturalização da violência contra a mulher na sociedade, que se mostra tanto na banalização do tema quanto das próprias práticas de violência.

O projeto foi concebido igualmente como um espaço de resistência e produção de sentido, docente e discente. Em espaços exclusivos para o corpo discente feminino, propomos uma introdução ao tema por meio de diferentes ferramentas, como dados estatísticos e evidências presentes cotidianamente, a exemplo de notícias publicadas nas redes sociais de dois dos maiores veículos de comunicação de Passo Fundo e do Rio Grande do Sul e os comentários deixados por algumas pessoas nas postagens.

Na discussão com as estudantes, foi possível relacionar os dados estatísticos às evidências – tanto as apresentadas quanto casos trazidos pelas estudantes – que mostram um discurso perene de culpabilização das mulheres por violências que sofrem, bem como a disseminação de discurso de ódio às mulheres, de forma geral.

A intenção em tematizarmos a violência presente no dia-a-dia configurou-se como forma de introduzirmos as estudantes nas discussões do tema de forma de reforçar a presença das ideias de dominação, exploração e práticas violentas contra à mulher naturalizadas na sociedade, na perspectiva de que agem na produção, corroboração e reprodução de desigualdades, e resultam na manutenção das estruturas sociais e culturais ao longo do tempo.

A partir deste movimento inicial, os encontros focaram na viabilização de conhecimento sobre a Lei Maria da Penha, suas implicações e todas as formas de violência previstas no texto da lei; exposição e diálogo sobre experiências cotidianas, auxílio e elaboração de relatos de violência naturalizadas e direcionadas às meninas e por fim uma comparação entre os dados da violência contra a mulher, os relatos produzidos pelas estudantes e a perspectiva do corpo discente masculino a respeito do tema (que recebeu um questionário de participação voluntária).

O trabalho educativo, por meio do projeto, se caracterizou como uma atividade dialética, exigindo das professoras articulação entre a realidade, expressa não apenas nos dados estatísticos, mas nas falas das estudantes, junto da identificação dos elementos culturais e sociais que pudessem encontrar sentido junto das estudantes e colaborar na promoção de mudanças no ambiente escolar e fora dele. 

Entendemos o projeto como o início de um movimento que propõe uma cultura de responsabilidade ética, profissional e política para a formação e capacitação de meninas por professores da Educação Básica, cujo resultado seja um corpo discente capaz de compreender a realidade em que está inserido e relacionar as práticas de violência descritas na lei Maria da Penha às suas vidas e relações pessoais.

A partir dos encontros do projeto, as estudantes puderam relatar suas experiências de violência, sofridas por elas ou por mulheres de seu entorno, que nem sempre se configuram como crime, mas que estão enraizadas em uma cultura machista e misógina e as atingem por meio de discursos cotidianos. A referência para a produção dos relatos foi a hashtag “#MeuAmigoSecreto”, ação desenvolvida nas redes sociais em 2015 e que repercutiu largamente naquele contexto. Cada estudante pôde registrar sua experiência de forma anônima, com a possibilidade ou não de dividi-la com as outras participantes em voz alta, por intermédio das professoras.

A experiência possibilitou a construção de um espaço de exposição, no dia 30 de novembro, Dia Internacional da Não-Violência Contra a Mulher, com todos os relatos, que foram digitalizados, impressos e expostos em uma sala temática no contexto de um evento de mostra escolar. A exposição foi construída pelas próprias participantes, que puderam ver seus relatos divididos com toda a comunidade escolar e após replicados em outras duas exposições, em outros espaços.

A produção e exposição dos relatos ajudou no cumprimento de um dos objetivos do projeto: auxiliar na compreensão de que a violência contra as mulheres, naturalizada em discurso, é cotidiana e, infelizmente, trata-se de uma experiência que todas temos em comum.

Como contraponto, os relatos do questionário respondido pelos meninos apresentou uma perspectiva interessante. Quando questionados sobre como o machismo influenciava ou afetava suas vidas, os estudantes responderam majoritariamente que não os afetava em nada, e muitos expressaram não considerar o tema como um assunto pertinente de ser discutido.

A opressão da mulher reúne um conjunto de práticas e discursos que puderam ser observados com a experiência deste projeto, que ofereceu um ambiente de construção de instrumentos de resistência junto das estudantes. Enfatizamos, a partir desta experiência, que é possível e necessário o debate sobre o papel social da mulher na luta por direitos sociais, pela equidade de gênero, no âmbito da sociedade civil e domínios institucionais e especialmente na escola.

Não há como pensarmos em uma promover uma cultura de crítica que alcance a mudança das práticas culturais e sociais sem considerarmos a escola como um dos espaços em que a reprodução das práticas de violência contra a mulher está em plena atividade.

Conheça esta experiência também através deste vídeo postado no Instagram: https://www.instagram.com/reel/ClZ6_t-j_KH/?igshid=NDk5N2NlZjQ%3D&fbclid=IwAR3NGHH94UxzQHIDmA3YvgJhKXt4_SB15gSWsVluN9PmS5-ryCt1L9Jx7UY

Autoras: Letícia Mistura (Mestra em Educação)

Thainá Battesini Teixeira  (Mestranda em História), professoras coordenadoras do projeto.

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