Vivências de um Carioca no Sul

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Nascido numa favela carioca do Rio de Janeiro,
colega no ensino fundamental do jogador
da seleção brasileira “Romário”, Carioca revela-se
um “camarada legal, disponível, aberto e convicto
de suas opiniões e entendimentos de mundo e sociedade.


Alberto Eleutério Alves, mais conhecido como “Carioca”, faz parte de um grupo de pessoas com atuação social e política diferenciada em nossa cidade, Passo Fundo, RS. No meio político local, seja através de sua atuação na Câmara de Vereadores da cidade, na Prefeitura Municipal, nos movimentos de juventude e nos partidos políticos, é uma figura querida e estimada por muitos.

Nascido numa favela carioca do Rio de Janeiro, colega no ensino fundamental do jogador da seleção brasileira “Romário”, Carioca revela-se um “camarada legal, disponível, aberto e convicto de suas opiniões e entendimentos de mundo e sociedade”. Um cara acessível, fácil de conviver e bom de boa prosa sobre cultura, política e organização da sociedade.

Com grande prazer, entrevistamos este cidadão do país, carioca de nascimento e, hoje, gaúcho por adoção.

NEI ALBERTO PIES: Nasceste numa favela carioca, convivendo até teus 43 anos no Rio de Janeiro. Apresente-nos um pouco da tua história a partir do Rio de Janeiro.

Nasci e até os oito anos morei na Favela da Catacumba, localizada numa das áreas mais nobres do Rio de Janeiro, a Lagoa Rodrigo de Freitas. A Elite carioca vivia incomodada com aquelas casas uniformes e com os seus moradores. A ditadura Militar então decidiu atender os anseios da burguesia da cidade e começou e instituiu um processo de remoção das favelas existentes na zona sul do Rio de Janeiro.

Nos anos 1970, a produção de conjuntos habitacionais esteve associada à política de remoção de favelas. Nesse período, grande quantidade de moradores de favelas foi transferida para assentamentos distantes do núcleo, que na maioria das vezes não contava com comércio e nem com sistema de transportes coletivos que desse boas condições de deslocamento para essas pessoas.

Boa parte das áreas de onde foram removidas as favelas foi ocupada por grandes empreendimentos imobiliários que se destinavam à construção de conjuntos de edifícios de apartamentos de alto luxo.

Minha família foi jogada num desses conjuntos habitacionais que chamo de favela de cimento armado, nos confins da cidade. Conjunto do Quitungo, Vila da Penha, Zona Norte da cidade. Diante da falta de estrutura e de trabalho não é difícil entender porque os conjuntos habitacionais construídos naquela época viraram locais dominados pelo tráfico e pelas milícias.

Minha infância foi como a de milhares de jovens que moram nas periferias ou nas favelas Brasil a fora, sem luxo, com muitas dificuldades, mas talvez a diferença tenha sido a família. Naquela época era eu e uma irmã, Sandra, que mora em Cataguases Minas Gerais. Depois nasceram meu irmão, Roni e minha irmã Bárbara.

Viver numa comunidade não é fácil você tem que aprender a conviver com a violência dos chamados bandidos e com a violência daqueles que deveriam nos proteger, a polícia. Mesmo com todos os problemas eu não tenho do que reclamar da minha infância. Tudo que vi, e vivi serviram para moldar o meu caráter e a minha personalidade.


NEI ALBERTO PIES: Muito se discute e se fala da violência nos morros e favelas cariocas. Qual é a tua percepção desta realidade desde a tua existência até hoje?

A violência no Rio de janeiro não vem de hoje. Ouso muita gente dizer que na época da ditadura não tinha essa marginalidade eu afirmo com conhecimento de causa que quem diz isso não conhece a história da cidade.

Em 1970, depois que fui morar no Conjunto do Quitungo com oito anos de idade foi que conheci a morte de perto. Lembro até hoje de um ajudante do caminhão de gás que foi assaltado na entrada do conjunto e morto por que reagiu. Imagina uma criança de oito anos vendo aquela cena de violência ali na sua frente.

O comércio de droga rolava solto onde eu morava. Como diz uma música de Gabriel o Pensador. Era mais fácil conseguir um baseado ou um pino de cocaína do que um pão. O cheiro da morte vivia impregnado naquele lugar. Não havia um dia sequer que alguém não era morto. Ou pela disputa das bocas de fumo, ou por ter sido descoberto como X-9, ou pela polícia quando se recusavam a pagar a propina para não ser incomodado.

Sim, porque a paz podia até reinar nos bairros ricos da cidade, onde a polícia militar protegia o cidadão mais abastado. Mas nas periferias e favelas a violência nunca foi diferente.


NEI ALBERTO PIES: Afirmas, de forma convincente, que a sociedade brasileira, mais cedo ou mais tarde, precisa enfrentar o tema de desmilitarização. De onde vem este convencimento e quais são os alicerces desta convicção?

Essa é uma discussão que não temos como fugir. A primeira coisa a se fazer nesse processo é esclarecer que Desmilitarizar a Polícia; não é desarmá-la e, sim, trazê-la para os marcos democráticos. Permitindo assim que os policiais tenham direitos civis, os protegendo dos abusos da rígida hierarquia militar que frequentemente se transmuta em assédio moral e violência, é humanizar a formação e a atuação dos agentes.

Primeiro porque a militarização da polícia é uma herança da ditadura. O Tenente Coronel reformado da PM de São Paulo, Adilson Paes de Souza afirma que o curso de formação das policias brasileiras não atende as necessidades do que se espera de uma verdadeira em educação em direitos humanos.

Ele também afirma que em entrevista com policiais que cometeram atos criminosos, todos eles relataram que na formação nenhuma linha sequer sobre a realidade que eles iriam enfrentar. Sobre violência policial, corrupção, letalidade.

“Ao contrário a formação é centrada na virilidade: “o policial deve ser o macho, o herói, aquele que não sente dor”. Prevalecendo o mito que tem que negar a dor em si mesmo e, ao negar em si mesmo, acaba descarregando a dor em alguém”. 

Ele vai ter um comportamento agressivo porque aprendeu que ter autoridade é ser violento. Tratando o oponente como um inimigo no campo de batalha. Fazendo com que sejamos a polícia que mais mata e que mais morre no mundo. Por isso precisamos readequar a polícia para a democracia terminando com o pensamento de guerra que hoje impera. Enquanto isso não for feito continuaremos a viver numa democracia formal e não numa democracia verdadeira.

NEI ALBERTO PIES: Na tua adolescência, fostes colega de escola na quinta-série, do jogador da seleção brasileira e hoje senador da República Romário Faria. Conte-nos sobre Romário, as peladas de futebol, os poucos amigos que ainda estão vivos daquele tempo da infância.

Romário é três anos mais novo que eu. Nós morávamos uma quadra um do outro. O pai dele tinha um time de futebol chamado estrelinha. Naquela época era comum os times terem dois Quadros, ou seja, dois times.

Ele Romário como era muito novo ficava no banco do segundo time, mas quando entrava parecia que a bola o procurava. Dificilmente saia do jogo sem fazer um gol. Estudávamos juntos.

Como afirmo nas respostas acima, morávamos num lugar onde a invisibilidade social era muito gritante, muitos escolhiam o mundo do tráfico como uma forma de ter poder e se vingaram da sociedade que se fingia de cega para não os ver, outros como nós, escolhemos o futebol com a válvula de escape.

Quem é o jovem pobre que não sonha ser jogador de futebol? E nós não éramos diferente.

O clube mais perto de onde morávamos era o Olaria. A.C e foi lá que demos os primeiros os primeiros passos num clube de primeira divisão do futebol carioca.

Mas como a vida é dinâmica ele Romário, Gonçalves e Ailton se profissionalizaram e com toda justiça chegaram onde chegaram. Outros como eu ficaram pelo caminho. Mas eu nunca tive nenhuma frustração por conta de não ter conseguido o objetivo inicial de ser um jogador de futebol.

Acredito que tudo que acontece na nossa vida tem uma razão; nada acontece por acaso; se não for por uma causa, é para um ensinamento… tudo o que chega, chega sempre por algum motivo…

NEI ALBERTO PIES: Durante sua juventude, conhecestes Padre Zezinho, por intermédio de sua mãe, até hoje seguidora do catolicismo. O que levas de ensinamentos para tua vida a partir da convivência com este importante padre da Igreja Católica?

Minha relação com o Padre Zezinho não foi longa pois ele não demorou muito tempo no Rio de Janeiro. Eu nunca o chamei de Zezinho, sempre o chamei de José. Ele nunca reclamou de eu o chamar assim.

Tenho um carinho muito grande por ele. Pois foi um dos poucos padres que convivi que sempre procurou dialogar comigo. Eu hoje compreendo que era um adolescente complicado, pois sempre fui muito contestador, nunca aceitei que me impunha alguma coisa sem me convencer. E ele estava sempre aberto para tentar dirimir minhas dúvidas.

Hoje não tenho religião, não consigo acreditar em um ser superior mas agradeço muito a ele por ter me aconselhado a jamais ser desrespeitoso com a crença alheia. Um de suas músicas que mais me identifico é CANTIGA PARA UM ATEU.

Um grande amigo meu
Que a sua fé perdeu,
No dia de Natal me procurou.
Contou-me a sua vida 
Tão cheia de incertezas
Com tanta honestidade
Que me fez chorar.
E a lágrima teimosa caindo no meu rosto
Lavou meu preconceito de cristão.

Eu sei que da verdade eu não sou dono,
Eu sei que não sei tudo sobre Deus.
Às vezes, quem duvida e faz perguntas,
É muito mais honesto do que eu.



NEI ALBERTO PIES: Estás há mais de dez anos em solo gaúcho, convivendo agora com a nossa cultura gaúcha. Quais são os principais conflitos e diferenças entre a cultura gaúcha e a cultura carioca?

Olha, quando eu morava no Rio de Janeiro eu ouvia as pessoas dizerem que o Rio grande do Sul era a Europa brasileira e eu ficava pensando sobre isso. Depois que vim morar aqui descobri que o Rio grande do Sul realmente é muito belo, mas que não é diferente de nenhum outro estado brasileiro. Pois tem as mesmas mazelas sociais de ambos.

As diferenças culturais são grandes pois o gaúcho tem muito apego as tradições, a sua terra, aos seus costumes, coisas que nós no Rio não nos importamos. O carioca curte muito barzinho, samba, pagode, praia. Aqui vocês até para ir na padaria se arrumam todo, lá vamos ao shopping de chinelo e bermuda.

Mas o mais importante é que essas diferenças não impedem que o carioca e o gaúcho se entendam. Na verdade, somente duas coisas me incomodam aqui no Sul, o frio e o conservadorismo exacerbado.

NEI ALBERTO PIES: Qual é a tua relação com o Partido Comunista do Brasil (PCdoB) no Rio de Janeiro, em Passo Fundo e no restante do país?

Eu, no Rio, já tinha uma relação de admiração pelo PCdoB, mas não era filiado. Foi nas eleições de 1986 convidado pelo André amigo de trabalho e baterista de uma banda de Punk Rock que estávamos montando, me inseri na campanha a deputado e conseguimos eleger como a deputada estadual mais votada Jandira Feghali com 91.977 votos e Deputado Federal Edmilson Valentin 43. 730 votos. Nesse ano fiquei muito mais próximo do partido.

Foi só em 1989 que oficializei minha filiação ao PCdoB, que foi o primeiro e será o único partido que militarei. Já viajei para várias cidades do pais e como todo bom comunista onde a gente chega se apresenta ao partido e se coloca à disposição.

Vim para Passo Fundo em 2004, e assim o fiz, me apresentei e logo estava na luta. Me lembro que tínhamos um fusca para fazer campanha. O camarada Juliano Roso concorria reeleição, o mais engraçado é que ninguém tinha habilitação no partido aqui em Passo Fundo então eu passei três meses mais com o juliano do que a família. Mas no fim deu tudo certo.

Quando aqui cheguei o partido era pequeno, mas os camaradas se multiplicavam na hora da campanha. Eu tenho muito orgulho de fazer parte das fileiras do PCdoB, partido mais antigo do Brasil, presente nas principais batalhas e jornadas da nação e da classe trabalhadora, cumprindo uma agenda que ajudou a construir o Brasil e a formar uma consciência patriótica, nacional e popular. 

NEI ALBERTO PIES: Desde quando nutres sentimentos, curiosidades e apegos com a cidade de Passo Fundo, RS (infância, juventude e momento atual).

Bem o meu primeiro contato com a cidade de Passo Fundo se deu através da música. Sim, pois meu pai levantava cedo para trabalhar e naquela época o rádio era o principal instrumento de comunicação de massa, então ele ligava na Rádio Globo RJ e todos os dias ouvia um programa chamado a Impecável Maré Mansa, era um programa de misturava noticia e música. Tocava de tudo. Desde Luiz Gonzaga a Teixeirinha que o locutor chamava de O Cancioneiro Gaúcho.

A música que mais tocava era Coração de Luto, mas um dia tocou Gaúcho de Passo Fundo e eu deitado, com sono, ouvia aquela canção e ficava imaginando onde ficava Passo Fundo.

Passados alguns anos me casei com uma Passofundense, me separei e já em Passo Fundo conheci a minha atual companheira com quem vivo a 14 anos, ela é da fronteira, mais precisamente de São Borja. Desde que aqui cheguei sempre fui muito tratado por todos, a cidade é muito boa de se morar, as pessoas são muito receptivas.

NEI ALBERTO PIES: Qual é, na tua visão, a importância dos partidos políticos, dos sindicatos, das organizações sociais, dos grupos de juventudes para a manutenção dos direitos sociais e da própria democracia?

Na nossa experiência histórica, as noções de partidos políticos e de democracia (Governo do povo para o povo) estão intimamente ligadas, pois a divulgação, pelos partidos, de diversas doutrinas filosóficas e politicas existentes no mundo tem fomentado o debate e a busca por soluções para as diversas mazelas que afligem a nossa sociedade, favorecendo a formação de opinião sobre as principais questões que envolvem o país e o amadurecimento do eleitor para o exercício da democracia.

Nunca é demais recordar que, ao longo da história, os trabalhadores travaram uma árdua luta para legitimar o sindicato como escudo, diante da desigualdade na relação com o empregador. Quando o trabalhador se une ao sindicato, ele se fortalece, pois dá à instituição poder efetivo para defendê-lo do facão da demissão e da submissão à empresa; para negociar por ele; para ajudá-lo a resolver os problemas do trabalho etc. é preciso conscientizar os trabalhadores da importância do fortalecimento da instituição sindical.




“Neste contexto de mundo individualizado e de redução de direitos e garantias trabalhistas, nos desafiamos a avaliar o papel contemporâneo dos sindicatos de trabalhadores e trabalhadoras, uma vez que são, essencialmente, organizações de defesa de interesses coletivos”. (Nei Alberto Pies)




Como já dizia o filósofo Karl Marx “Mudanças na sociedade ocorrem a partir da ebulição dos movimentos sociais: contra o capital e o Estado”.

Os Movimentos Sociais são de extrema importância, porque cobram mudanças, reivindicam transformações, mostram quando a povo não está satisfeito com as medidas adotadas por governantes, dirigentes e gestores, além de cobrar medidas, quando necessário, porém os Movimentos Sociais perderam força com o passar do tempo. Os movimentos sociais nos anos 60/80, diferem dos ideais dos movimentos na atualidade.

O individualismo, egoísmo, concorrência desleal, inveja, ambição, alienação imposta pelo avanço tecnológico e no mundo globalizado vem impedindo que pessoas se unam para cooperar, ajudar e reivindicar o bem comum.

Em se tratando da juventude brasileira está tem se mostrado resistente aos processos antidemocráticos instaurados no país. Desde a ditadura militar, até o golpe parlamentar contra a presidente Dilma, o entusiasmo dos estudantes ocupa as ruas em defesa da democracia e pela educação pública, gratuita e de qualidade.

Entender o processo de representação da juventude ao longo de nossa história recente torna-se fundamental para compreender a conformação de novas políticas que colocam o jovem como sujeito capaz de refletir e agir sobre a própria história.

NEI ALBERTO PIES: Como a cultura e o povo carioca construíram um político tão emblemático como Jair Messias Bolsonaro, hoje, nosso presidente da República?

Bolsonaro é o extremo e a cara da elite carioca, que tem medo da democracia, porque esta tem o poder de mudar a face do país.

Porque democracia inclui os pobres, gente que a elite do Rio sempre tentou deixar de fora do jogo democrático, basta lembrarmos do Governo Garotinho que fazendo o jogo das elites começou a fazer os chamados piscinão nos bairros periféricos da cidade do Rio de Janeiro, iludindo os pobres destas comunidades de que estava lhes proporcionando lazer mais próximo de casa quando na verdade a única intenção era afastar o que os moradores da zona sul do Rio costuma chamar de suburbanos das praias de Copacabana, Ipanema, Leblon e Barra da Tijuca.

Como lembra o sociólogo Jessé de Souza: “salvo raríssimas exceções, nossa democracia é uma farsa”.

Bolsonaro sempre foi eleito pelo eleitor que vomita conceito de meritocracia sem se dar conta de que na estrutura de poder no Brasil, sempre tiveram mais oportunidades que as classes populares e sua ascensão política também se deu no vácuo do poder que a elite gerou no movimento pelo Impeachment de Dilma.

NEI ALBERTO PIES: Uma frase, um incentivo, um desafio a todos os que ainda acreditam num país mais justo, mais democrático e com mais inclusão social.

Nesses tempos difíceis não podemos deixar que a realidade corroa a alma. Precisamos de atitude, ação. Tomarmos a frente. Ter consciência do momento perigoso que vivemos e não fugir a luta. Pois não há vitória sem luta.

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