Simplificar e relativizar: uma nova forma de dominação

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Nossos conhecimentos fizeram-nos céticos; nossa inteligência, empedernidos e cruéis. Pensamos em demasia e sentimos bem pouco. Mais do que de máquinas, precisamos de humanidade. Mais do que de inteligência, precisamos de afeição e doçura. Sem essas virtudes, a vida será de violência e tudo será perdido. (O Último Discurso, do filme O Grande Ditador, de Charlie Chaplin)

Há uma tendência generalizada, no atual momento histórico, de simplificar a vida, a realidade e os processos de convivência social e de governança institucional. Ao invés de encarar a complexidade das diferentes realidades, procura-se escamotear o que acontece, utilizando-se de sofisticados meios para adaptar às narrativas que se quer contar.

Percebe-se, também, certo desprezo pela representação política de diferentes categorias sociais, quando se tenta a manipulação direta das pessoas, como se não mais precisasse de representação política e social destes.

Acontece, por exemplo, quando, através de enquetes bem direcionadas, procura-se saber da satisfação ou qualidade da gestão de um certo setor do serviço público. De forma maquiada, busca-se respostas direcionadas pelas hierarquias de poder, subordinando os sujeitos diretamente envolvidos apenas a uma consulta genérica sobre a realidade. Com a devolutiva genérica destes dados, elabora-se, então, uma narrativa de que houve consulta com ampla participação dos envolvidos, procurando demonstrar assim uma prática democrática.

Puro engodo! As consultas, as enquetes podem até servir de subsídio, como base para levantamento das realidades, mas estes dados precisam ser submetidos a uma discussão mais ampla a partir daqueles que estão diretamente envolvidos ou interessados.

Se alguém quer conhecer determinada realidade ou grau de satisfação de determinado grupo social, deve também submeter-se ao diálogo, à escuta e à participação direta ou por representação política dos sujeitos. Deste modo, ampliam-se os horizontes de compreensão da realidade, sem a pretensão de esgotar-se o entendimento das complexidades e das variáveis que nela operam.

Acontece também quando se processam discussões sobre o racismo estrutural na sociedade. A simplificação ocorre quando se diz: “os próprios negros e negras praticam racismo e discriminação”. Ou quando se diz que os próprios negros ou negras querem ser tratados de forma diferente, não querem se igualar aos brancos, uma vez que a abolição da escravatura já aconteceu faz bom tempo. Em ambos os casos, transforma-se as vítimas em pessoas culpadas. Quem assim procede, não está disposto a ouvir, a se colocar no lugar de quem sofre o preconceito racial. Não há, neste caso, predisposição de reconhecimento social e nem reconhecimento aos dados estatísticos que reforçam esta discriminação social.

As questões centrais são: como os brancos, que não conhecem discriminação pela cor da pele, irão determinar como os negros e negras deveriam agir diante de uma sociedade que lhes impõe a exclusão e lhes dificultam muito as oportunidades de vida e de realização profissional? Como tratar igualitariamente os que historicamente tratamos desiguais, sem nenhum tipo de reparação?

Acontece, ainda, a partir de afirmativas de que a maioria das pessoas mais pobres não gosta de trabalhar, não aproveita as oportunidades de trabalho que a sociedade oferece. Ou quando se interpretam, friamente, números estatísticos de busca de emprego, por exemplo. E, muitos, que já tem suas teses mesmo sem base científica e sem antes analisar a realidade na qual os mais pobres estão envolvidos historicamente, acabam fazendo afirmações sem nenhum fundamento. Por que? Por que não se precisa fundamentar, na visão destes, o que é certo, o que está visível aos olhos de quem queira ver.

Deste modo, relativiza-se a crueldade e a dramaticidade das relações sociais que, historicamente, foram e continuam sendo muito desiguais e perversas para esta imensa parcela da população. Assim, a realidade deste contingente de pessoas pobres e desassistidas socialmente, nunca é estudada e não é levada a sério para aperfeiçoamento de políticas de inclusão social, cidadania e trabalho. Ou mesmo, para muitos, erroneamente, a questão do trabalho é apenas uma questão de mérito e conquista pessoal.

O perigo maior da simplificação e da relativização ocorre quando as realidades viram apenas números, estatísticas, questionários, pesquisas quantitativas, enquetes. As ferramentas digitais podem, e devem, favorecer o conhecimento superficial das realidades sociais, mas jamais substituirão os aspectos dialógicos, de imersão e de reflexão a que as realidades devem ser submetidas.

Conhecer mais profundamente as diferentes realidades supõe uma postura de abertura, de diálogo, de escuta, de discernimento mais amplo, de comprometimento com mudanças que sejam significativas para quem está diretamente envolvido na realidade. Bem diferente de impor ou maquiar uma narrativa que serve para justificar o que penso e sobre o que pretendo realizar, diante de determinados contextos.

Nunca é recomendável autodeterminar-se democrático ou de espírito colaborativo; mais sensato é colocar-se em busca da compreensão da complexidade que envolve as relações humanas, os desejos e as realizações dos diferentes grupos sociais que compõem toda a sociedade. A democracia se faz no percurso, não é anúncio ou intencionalidade formal de ninguém.

Autor: Nei Alberto Pies

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