Pacificação e anistia?

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Pacificação, sim; anistia não. Não há, aí, nenhuma contradição ou paradoxo, apenas uma necessária e imprescindível complementação.

Eis que temos um novo governo. Creio que o adjetivo novo, aqui, até seria desnecessário, pois o Poder Executivo nacional estava acéfalo a muito tempo – tanto que o governante de fato, há muito, era o presidente da Câmara dos Deputados. Poderíamos, assim, simplesmente dizer que agora temos um governo. Porém, formalmente, temos um novo governo.

Embora o fato do governante anterior praticamente não governar, ele mantinha muito apreço ao cargo e as benesses que o cargo lhe assegurava. Assim, a manutenção do cargo seria a garantia de que os benefícios de toda ordem seriam mantidos para o presidente de plantão e para a sua família.

Para mantê-lo, fez de tudo; mas de tudo mesmo: desde o uso jamais visto da máquina pública durante e para o processo eleitoral, como a manutenção e intensificação do discurso de ódio, provocando e incentivando seus seguidores ao enfrentamento dos adversários, inclusive com o uso da violência física, como jamais visto em um processo eleitoral.

Em que pese tudo isso, como resultado, tivemos a eleição de um novo presidente da República: Luiz Inácio Lula da Silva.

No emocionante cerimonial de posso de Lula e Alkmim, que aconteceu nesse primeiro de janeiro, não faltou simbolismo e emoção. Talvez o principal momento tenha sido a entrega da faixa presidencial que chegou ao peito do presidente apenas após passar pelas mãos de diversas pessoas, simbolizando a representação do povo brasileiro. Foi impossível não chorar – confesso.

Porém, veio da multidão presente uma pequena, porém muito significativa manifestação, que ecoou de forma muito clara e explicita durante o discurso presidencial: “SEM ANISTIA”. De forma imaginativa é possível concluir que a expressão dizia que “nós, povo brasileiro, que na sua maioria te elegemos, não queremos que sejam anistiados aqueles que nos impuseram longos anos de submissão horrenda e odiosa, sob um regime fascistóide e opressivo, que matou ou deixar morrer…”

Sem perder tempo, parte da mídia tradicional reagiu procurando identificar uma suposta contradição ou até um paradoxo entre uma busca de pacificação da nação, por parte do novo governo, com a necessidade de processamento e punição dos responsáveis pela prática de crimes praticados contra o povo, as instituições, o regime da democracia e o estado de direito, por quem quer que os tenha praticado. Tal relação, entre pacificação e uma pretensa anistia, quer fazer entender que uma não anistia seria contraria a busca pela pacificação; construindo assim, uma falsa dicotomia.

Ora, a democracia moderna, formada tanto pelo voto popular, como pela instituição de direitos e liberdades individuais e coletivos inalienáveis não subsiste com a busca de sua extinção. Dito de outra forma, não é democrático e, portanto, permitido, a busca da destruição da própria democracia; assim como não é lícito um governo agir contra o seu próprio povo. Portanto, quem agiu ou age assim, precisa ser responsabilizado.

Não se pode confundir, seja por equívoco ou má-fé, responsabilização com vingança. A vingança seria a manutenção do mesmo processo de ódio que se pretende superar; a responsabilização é necessária e indispensável para a reconstrução e manutenção da própria democracia e de um Estado em que o governante governe sob a égide das leis e para o bem de seu povo.

Também é necessário compreender que como contrabalanço para exageros e crimes que podem ser praticados por eventuais governos pretensamente totalitários, a democracia moderna criou instituições responsáveis por ajudar na proteção daqueles direitos e liberdades individuais e coletivas indisponíveis.

É preciso lembrar que os tempos de trevas que agora se pretende superar, é resultado não apenas de uma onda populista-fascista que atinge grande parte do mundo, mas também de ações e omissões de instituições inerentes de nossa democracia moderna, também chamada de democracia liberal.

Não podemos esquecer que tais instituições, como significativa parte dos meios de comunicação tradicionais, também foram responsáveis pela produção de informações falsas ou distorcidas – que atualmente se chama de fake News – produzindo um senso comum de desinformação, aversão à política e a participação das pessoas no espaço público, abrindo um enorme flanco para o ingresso e a sustentação de propostas políticas populistas-fascistas, cujos resultados são por todos conhecidos.

Diferente não é com outra instituição fundamental para a democracia, que é o Poder Judiciário. Como exemplo, basta ver o processo totalmente ilegal praticado (com o conhecimento e a conivência de todas as instâncias superiores) contra o ex e atual presidente Lula, num verdadeiro processo judicial-político, atualmente identificado por lawfare, que é o uso da justiça para a perseguição de adversários políticos.

Portanto, além da responsabilização – sem anistia – das pessoas que praticaram crimes contra a democracia, o Estado brasileiro e seu povo, também é necessário rediscutir o papel e a ação de instituições que fazem parte e que tem a responsabilidade de auxiliar na manutenção e fortalecimento da democracia, como a imprensa, o Poder Judiciário e outros.

A democracia se faz com pessoas e instituições coletivas e essas, como aquelas, precisam compreender que as grades protetoras da democracia precisam ser permanentemente observadas e reforçadas, para que não sejam voluntária ou involuntariamente fragilizadas, abrindo espaços generosos para o ingresso de propostas que, sob o argumento de salvar a nação e seu povo, tem apenas a real pretensão de se utilizar dela a qualquer custo: seja a destruição da democracia, seja em prejuízo de seu povo.   

Portanto, pacificação sim; anistia não. Não há, aí, nenhuma contradição ou paradoxo, apenas uma necessária e imprescindível complementação.

Autor: Edson Luís Kosmann

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