Os sonhos das coisas

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Tenho medo de não saber dizer não quando o sonho das armas pedir realidade.  Melhor mesmo é ter em casa só grãos e sementes. De alimentos e de flores.

Quanto às sementes, minha mãe falava a verdade. Feijão cozido com pé de porco é um desperdício. Serve apenas para matar a fome, não cumpre seu sonho de perpetuar a espécie dos feijões. Nada adianta dar-lhe cova e adubo, apodrece e não vinga. O feijão preparado para ser alimento frustrará um de seus sonhos. Mata a fome, mas não brota. Escolhido entre pedras e carunchos, o grão vai à panela com sonho também escolhido. Os sonhos do feijão são alternativos e não aditivos. Se matar a fome, não germina. Se germinar, não mata a fome.

Minha mãe achava certo não comer sementes de flores. Inda bem, nos dizia. Flores nascem para esperar a primavera. Ela apenas se resignava a entregar algumas, de girassóis, para uma caturrita já velha.  “Compensamos com flores o voo que lhe roubamos na vida”, justificava.

Sobre o sonho das coisas e sua ânsia em realizá-los, Jorge Luis Borges conta em O Punhal. Enquanto alguns se divertem enfiando-o e tirando-o da bainha, sente-se, o punhal, frustrado e inútil. De que lhe valeu o sofrimento da têmpera e forja? Quer matar, quer sangue. “Numa gaveta da escrivaninha, entre rascunhos e cartas, interminavelmente sonha o punhal seu singelo sonho de tigre, e a mão se anima quando o rege porque o metal se anima, o metal que pressente, em cada contato, o homicida para quem o criaram os homens.

Às vezes tenho pena. Tanta dureza, tanta fé, tão dócil ou inocente soberba, e os anos passam, inúteis”.

Tem dias que habito o sonho das coisas e seu latente desejo de vir à tona.  Além do sonho das sementes, naturalmente engendrado, há coisas nascidas da imaginação do homem com seus desejos também humanos.  Natural ou inventado, todo sonho possui uma força indomável para a realidade. As batatas e as cebolas brotam na despensa, os venenos vazam dos frascos. Por trás das coisas, há um poder maior que elas, sonho para o qual foram plasmadas.

Se o sonho das coisas não se tornar realidade, sempre haverá frustração.  Um livro não lido, uma roupa esquecida, uma panela no armário, um perfume vencido. Livro fechado, uma imaginação morta. Se a roupa não foi vestida, alguma beleza ocultou-se. Se a panela não foi usada, uma ceia deixou de ser feita. Se o perfume evaporou, um cheiro cítrico se perdeu para sempre.

Enxertando uma utilidade antes inexistente, pessoas traem o sonho original das coisas. Utilidade não é sonho, não o substitui.

O livro guardando recortes, o vestido tapando uma fresta, a panela aparando goteiras e o perfume incendiando as achas de lenha. Caberá ao sonho resignar-se à espera de um tempo propício, ou à eterna frustração imposta.

Quando uma pessoa desvia o sonho das coisas, torna-se responsável pelos resultados. Porque traiu o sonho latente enxertando outro impróprio e extrínseco. É o caso de se usar um tijolo, com seu sonho de casa, para estraçalhar um ser vivo. Ou quando uma faca de cozinha, com seu sonho de cortar alimentos, transpassa átrios e ventrículos.

Por causa dos sonhos latentes nas coisas é que nunca terei armas em casa.  Na bala e na arma, como no punhal de Borges, haverá um sonho buscando alguém para realizá-lo. Tanto metal forjado e inútil.

Tenho medo de não saber dizer não quando o sonho das armas pedir realidade.  Melhor mesmo é ter em casa só grãos e sementes. De alimentos e de flores.

São Francisco de Assis pedia para ser instrumento de paz. Os cristãos de hoje preferem pedir para Deus balas e revólveres. Seria aquela história do Semeador jogando sementes a primeira fake bíblica? Teriam os tradutores trocado as balas do Semeador por sementes para mostrar um Jesus mais pacífico?

O sonho das balas é serem rosas?

Autor: Pablo Morenno

Edição: Alexsandro Rosset

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