O Pavlo de Kiev

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Estamos aqui na praça central de nossa cidade, não poderão destruir tudo.  Há muita história por aqui.  Venha, vamos dormir em um canto qualquer, um novo dia virá ao nosso encontro.

Um menino atravessa a rua, vem correndo ele, tentando cantar, tentando pular, tentando ser menino.

Sua Mãe o segura firme, entretanto, não o deixa ser o que apenas é.  Ela o puxa de todas as maneiras, como que a dizer… não seja um menino, seja invisível, ou uma pedra, uma nuvem, nada há de humano em um menino nesta praça diz ela. A praça morreu.

Ele não entende, a praça é a mesma onde fora criado, somente lhe tiraram suas cores. Virou preta, branca e cinza, por que suas cores foram sugadas pelas bombas.

Por que não posso correr minha Mãe se não se vê nada, não há bombas, elas já foram embora.  Até um esquilo, acho que vi a pouco. Vamos ficar aqui mais uns minutos.  Entre as bombas que caem pode-se encontrar um fiozinho de vida.

-Venha meu filho, temos de nos abrigar, porque o céu e o seu escuro muitas mortes nos trará.


E o menino que vê e sente seus passos sobre a destruição parece entender o alerta de sua mãe, ela mesma um alvo vivo, tentando proteger seu alvo menor. Fecha-lhe os lados do rosto para que não veja mortos retorcidos pelas ruas e a paisagem de horrores, planejada em salões suntuosos que um dia fora do Ivã, o terrível.

– Por que as bombas minha Mãe?  O que foi que vocês fizeram, que eu não possa saber.  Por que tanto fogo, e as árvores da praça por que queimaram todas? O que todos vocês fizeram para que nosso irmão se voltasse a nós?

-Nada Pavlo, não precisou fazer nada, bastou existir. O ódio, por si mesmo, vai se alimentando de mais ódio, e basta uma noite para se jurar vingança, e mais bombas cairão. Sem nada a fazer ou pensar, basta tentar e viver. Mais rápido Pavlo, temos de nos abrigar, porque bombas e mísseis são como a sorte, desde que o mundo se fez mundo, caem a esmo, não escolhem onde explodir. São as armas do ódio as que nos caem sobre as cabeças. Basta existir para a morte espreitar. Somos o alvo do mundo de ódio, Pavlo, e nossas defesas estão tão frágeis como se fôssemos crisântemos em campo minado.

Enquanto corriam e quase alcançavam um portão de ferro gongórico para entrar, o som pavoroso e infernal de um míssil atravessa a praça, roçando as copas das árvores que teimavam em não tombar, e, quase os atinge.  Não os matou, por ora. Mas os enterrou de poeira e pedras, ou o que restou delas, as mesmas que enquadradas em prédios, ordenadas em fileiras perfeitas que sustentavam casas enormes, vê-se agora caindo como centelhas em uma praça sem vida.

-Levanta-se meu filho Pavlo, ainda não chegou a hora.  Vamos entrar neste porão escuro e frio por que é o que o ódio planejou a nós.  Venha meu filho, pelo menos criemos um círculo de calor com o que nos resta. Vamos dormir abraçados, não importando se conosco fiquem abraçados os que já partiram.

Estaremos seguros aqui, pela manhã vamos pensar mais em nós mesmos e renovarmos nossa fé. Os homens que nos odeiam podem ter planos, mas é o Senhor quem cuida de nossos caminhos. Rezamos tantos séculos neste país, em nosso passado, que nada nos fará mal.

Estamos aqui na praça central de nossa cidade, não poderão destruir tudo.  Há muita história por aqui.  Venha, vamos dormir em um canto qualquer, um novo dia virá ao nosso encontro.  Afinal estamos seguros neste prédio de Assuntos Exteriores e amanhã, alguém que não ouça pelas ogivas, amanhã alguém poderá nos resgatar.

Enquanto o deus da Ucrânia procura entender por que tantas crianças precisam morrer para satisfazer as metas de adultos adoecidos, no quartel general do grande irmão, soldados acéfalos e robôs confabulam, tentando traçar uma nova rota para mísseis de última geração. A geração da morte! De marte. De pedras somente, da desolação e do desamparo na nova Ucrânia.

– Camaradas, apontem este supersônico para o prédio no centro de Kiev, neste portentoso que já nos pertenceu um dia.  É a casa dos Negócios Estrangeiros. Destruam tudo!

Mas vem do porão as palavras para uma última noite de paz.  Nesta, pelo menos, Pavlo e sua Mãe dormirão até o amanhecer.

-Boa noite, meu pequeno filho! Vamos enfim dormir o sono dos que perambulam pelo mundo, o sono dos resgatados. Amanhã todos seremos esta praça.

Autor:  Nelceu Alberto Zanatta, autor do recém-lançado livro “A planta, suas folhas e um sino”.

Leia matéria sobre o livro: https://www.neipies.com/uma-potente-pegada-por-empatia-em-livro/

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