O Novo Normal e o Reinventar:Reflexões Desde o Horizonte da Ambivalência

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Impera o normal, e não o novo, em sua mais sórdida reinvenção para mascarar as intenções, os mesmos objetivos imperativos do sistema centralista, globalista e renovado/reinventado em sua capacidade, desejo e poder de afirmar-se como mais poder.

As limitações que se impuseram aos indivíduos, às instituições e aos coletivos por força da pandemia desencadeada pela Covid-19, pelas mutações do sagaz vírus, eficiente em sua função embalada pelas irracionais atitudes humanas, pelo retardo da ciência em enfrentar um gigante nanológico, pelas burocracias e necropoderes instalados geopoliticamente, suscitam plurais sentidos que denominamos ambivalentes.

Há quem, mais otimista ou de olhar visionário, consiga situar no horizonte incerto e aleatório do amanhã, grandes mudanças e perspectivas de rupturas com práticas e compreensões sistêmicas e individuais de individualismo, opressão, exploração, concentração de renda, fundamentalismos dogmáticos e dogmatizantes, além de reviravoltas consideráveis nas hegemonias e homogeneizações globais. Também, há os céticos ou, comumente – e problematicamente – denominados, pessimistas.

“Fico me perguntando na leitura que faço dos que se apressam com o “novo normal”, preocupados que estão com a tão “insuportável anormalidade” da pandemia: como será o “novo normal” para os/as desempregados/as, os precarizados/as, os subempregados/as, os/as “sem-direitos”, os/as de sempre, os/as de antes e os/as de agora, ainda mais precarizados em razão do impacto que a crise pandêmica produziu em suas vidas? Haveria “vidas matáveis”, “humanos descartáveis”, “humanos essenciais” no “novo normal”?” (Paulo César Carbonari). Leia mais.

Não são somente estes dois fronts. É possível, sem muito esforço, identificar outras tendências que podem assumir influências maiores ou serem anuladas dadas as condições de considerável irracionalidade e espírito de alienação – termo antigo e, talvez, fora de moda no mundo acadêmico, mas atual no mundo cotidiano – que concorre com o Covid em velocidade de expansão e contágio – ainda, também, sem vacina – por entre instituições, indivíduos, Estados, laboratórios e governos.

Como aconteceu na história da humanidade, especialmente, na dimensão sócio-política, mas igualmente, na científica, na econômica e na legal, a grosso modo, as variantes ideológicas ou de compreensão, reforçam a polarização, principalmente, até não se constituírem em novas teses com expressão.

Entre os objetivos dessa reflexão estão os sentidos dos conceitos – pretensamente inovadores e de amplo uso nesses tempos de distanciamento social ou, como compreende a Professora Maria Cristina Pansera de Araújo, “de distanciamento físico” – que transitam, tem parecido, com disfarces ideológicos, perspectivas corporativistas-personalistas, subsistem com sentidos hegemônicos e, mais grave, estão em uso sem a crítica terminológica, conceitual e de significados.

Nessa direção que se esforça e, também, desafia, a presente reflexão ao pensar o uso dos termos “novo normal” e “reinventar” e os compreende carregado de ambivalências. São termos indiscriminadamente em uso e podem legitimar o status quo, bem como, esconder continuísmos concentradores de renda, messianismos fundamentalistas, doutrinações dogmáticas, recrudescimento de poderes ditatoriais e culturais do ódio, da violência e da destruição.

Nessa compreensão, a presente reflexão, justamente por tratar-se de uma tentativa de filosofar sobre termos com vasto uso comum, parte de obras, pensadores/as e pensamentos de domínio amplo. Tais entendimentos, a característica textual e as remissões a autorias pela veiculação pública que detém, desobriga as referências ao final do texto.

“O que é isso que todos começam a chamar de “Novo Normal”? Qual era mesmo a “velha normalidade”? E a pergunta que mais deve(ria) incomodar: O que é “normal”?” (Sidinei Cruz Sobrinho) Leia mais.

O perigoso “novo normal”

Mesmo que a humanidade tenha atingido o atual estágio tecnológico, de relações e conquistas, via comunicação, muito dificilmente ela, a comunicação, tem se difundido sem um toque de racionalidade, de pensamento. Seja para emitir os sinais ou para interpretá-los, o pensar parece fazer parte desse movimento como elemento indispensável. Ainda que a questão não seja de ordem moral e maniqueísta, como sugere a moda habitual, ou indique opções entre a fronteira do bem e do mal, comunicar sugere ação natural e criadora de cultura e denota esforço, além de o exigir.

Comunicar tem uma dimensão gratuita e outra intencional. A gratuita é espontânea, acontece no cotidiano e tem significados, sentidos, expressos pelo/a emissor/a, são colhidos por quem interpreta. Na dimensão intencional, aquela que é produzida com vontade e determinada por alguma atitude – com a compreensão de ação humana com planejamento, com motivação racional – a parte emissora desenvolve sentidos e os articula num conjunto de signos para expressar a outrem, os seus desejos, demandas e intenções, embora possa ter que repeti-los, ajustá-los, ampliá-los ou simplifica-los, para tornar compreensível suas manifestações.

Essa espécie de preâmbulo, embora pareça deslocado, tem o objetivo de reafirmar o quanto a comunicação tem um horizonte democrático, ao permitir, possibilitar interpretações plurais, e, simultaneamente, apresenta uma necessária e indiscutível proposta de continuidade, de manutenção, de afirmação permanente que indicam a inesgotabilidade de seu valor. É nesta lógica que se apresenta a reflexão acerca do “novo normal”.

Muito embora possa – e deva – ser compreendido na seara da ambivalência, a terminologia novo normal pode esconder perigos como a continuidade e defesa da arqueologia das estruturas de poder historicamente instaladas e vigentes na sociedade humana. Novas adaptações a uma estrutura que, ao contrário da compreensão de vários filósofos e economistas, não cambaleia por ser anciã ou não têm pés de barro. Antes, se fortalece e ganha corpo nutrido nas explorações, dominações e expropriações das camadas de seres humanos e demais seres da rica e ampla natureza ecológica, biológica.

O novo normal pode esconder – e tudo indica para esse rumo – o fortalecimento sagaz e o apossamento de mais controle dos órgãos e instituições e indivíduos já poderosos, tanto a níveis locais, quanto regionais e mundiais. Cabe, para uma prosa ampliada, pensar em torno do que seja o “novo” e do que seja o “normal”.

Na atual conjuntura, o “novo” pode esconder a volatilização das relações, instituições – entre elas o Estado, a legislação – e, desse modo, assume a perspectiva de um engodo macabro que disfarça intenções dominantes e projetos há muito em curso.

O boicote ao Estado – inclusive defendido e tido como a salvação, por porção considerável da população mundial, brasileira e regional – que não consegue, até o momento, compreender o abismo para onde a humanidade caminha. Este “novo” é verniz em madeira carcomida e demonstra a ambivalência das terminologias.

O mundo quer, deseja, anseia e mata ou morre, pelo novo. Mas qual é o sentido que o novo, pós-pandêmico, está disposto a construir? E quem está? Do fato de a humanidade passar por mais um período de distanciamento físico – ou de necessário e científico distanciamento social e/ou físico – não decorre a novidade.

Talvez o novo resida no inusitado, para o avançado século das comunicações ou telecomunicações e era das informações recebidas em avalanches, das restrições para evitar as contaminações há, pelo menos, um ano. O perigo de ufanizar o novo é não compreendê-lo como fantasma do anciènne, da retrotopia (Bauman…), maquiado em novos palácios, laboratórios, estúdios e redes sociais, para continuar sendo o que é: mau, perverso, necrófilo.

Afirmar o novo no pós-pandemia, é antecipar a naturalização do desconhecido, do ainda-não, como compreende Ernest Bloch e não como esperança, mas como certeza. Aí reside o perigo porque a acomodação do pensar, da possibilidade do comunicar dialógico, não tem mais perspectivas. É abortada junto com a concepção.

Esta reflexão não quer explicar o óbvio, tampouco o mundo; pensa, ainda que embrionariamente, atitudes humanas que exigem racionalidade, compreensão, comunicação, implicam escolhas e podem impactar a sociedade. Esta perspectiva sugere que indicar algo novo como acontecimento decorrente – quase obrigatório – dos momentos vivenciados no presente, fragiliza tanto o conceito de novo, quanto o desautoriza enquanto tal, acomoda as expectativas e as necessidades de luta, de envolvimento e de ação dos indivíduos para definições das agendas e persecução das conquistas. Nesse ponto se encontra a normalização que parece querer comunicar com alguma intencionalidade pré-estabelecida que as coisas acontecem como têm que acontecer.

Quanto o novo é ou pode ser normal?

O novo é desconhecido, embora possa ser pré-anunciado; mas é de sua propriedade pré-ocupar e, por vezes, causar expectativa, temores, apreensões. O normal do novo implica espera, inquietude, ansiedade e, por isso, não pode ser aceitável, assimilável, simplesmente. Nem, desse modo, compreensível, porque é somente esperança gestada na ambivalência/plurivalência e exige pensar, esforço. O novo normal pode não ser tão normal como insinuam propagandismos gratuitos, voláteis e arquitetados para fazer ver apenas as certezas elaboradas antecipadamente.

Ao ampliar a reflexão, encontra-se a normalização que é padronização, a institucionalização e modos de ser, compreender e agir. Algo, ao ser padronizado entra no rol das naturalizações e, nessa lógica, sucumbe às necessidades de reflexões e possibilidades de construções.

Nessa linha de pensamento, o novo entre em contradição performática porque apresenta como objetivo último que o qualifica para ser novo a condição de normal. É ser normal, dito de outro modo, que o constitui novo.

Em chave ambivalente, o normal é acontecer o novo porque é próprio da evolução, o acontecimento da mudança, do crescimento, da construção. É normal que o novo se apresente nas experiências e nas vivências dos seres humanos como decorrências de suas iniciativas e como presença constante do aleatório, do inusitado e, também, do incontrolável das naturezas que compõe o mundo. É normal que o novo se apresente, difere em essência, potência e existência do novo como normal.

O normal não é novo e quando tende para essa formatação, já está pré-definido, pré-constituído, pré-concebido e, portanto, já arquitetado, assimilado, conhecido. É da norma do novo ter outro regramento, outro modo e isso é o seu normal até ser estudado, pensado e, de algum modo, controlado. Por isso o novo não pode ser definido aprioristicamente.

Ao ganhar força e ecoar em várias dimensões sócio-culturais e científico-econômicas, o clichê do novo normal arrasta consigo a concepção histórica reprodutivista do resgate, das re-vivências e advoga a própria impossibilidade do novo.

Alimenta-se, o poder hegemonizado, dessa impossibilidade do movimento criativo, da incapacidade humana de criar, produzir, novos caminhos, alternativas e, inclusive de pensar novas relações institucionais e entre as pessoas, de alterar as estruturas sistêmicas há muito emperradas mantenedoras do o olhar fixo no passado como o normal para acolher e seguir o novo.

O novo acaba por reforçar as mesmas estruturas e compreensões viciadas que historicamente forjaram as características, as funções e as estruturas da micros e macros vivências. O mundo – porque as pessoas – acaba por conformar-se com as imposições, com as normalizações instituídas abortivas ou, pelo menos, dificultadoras – porque domina o poder e controla o normal e, com ele, engoma o novo – das possibilidades constituintes das mudanças profundas, das metamorfoses, para pensar com Ulrich Beck.

O novo para ser novo precisa não ser normal; precisa ser pensado, conhecido, controlado/dominado, também, de um modo novo.

O novo é estranho e a estranheza é elemento importante na motivação, no despertar, para a reflexão, para o pensar e abertura para o dialógico pois começa pela provocação comunicativa de querer ser significado, justamente, na sua epifania, no seu aparecer.

A ambivalência, a plurivalência, ensina a abertura, a possibilidade e ensaia o ato criador, desperta para a novidade e estimula a empresa do conhecer, da investigação, que tem condições de descortinar multiplicidade de sentidos.

Veja-se, então, que o novo tem uma dimensão estética, mas ela está na relação com a ética e a política. Diz respeito a cada indivíduo e ao coletivo, mas, também, àquilo que transcende às fronteiras do somente ego ou alter para envolver com mais plenitude um horizonte ainda maior, tanto em amplitude, quanto em profundidade e compromisso.

O professor Mauro Cardoso Simões, da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Unicamp, explica neste bate-papo que é uma ilusão pensar que a vida é regular, estável, previsível e que isso é o “normal”. Para ele, a expressão não dá conta da catástrofe que a humanidade está experimentando. O “novo” que estaria por vir é imprevisível e pode conter tanto visões negativas, preconceituosas e segregacionistas, como algo positivo que seria uma maneira mais saudável de pensar na nossa vida em sociedade. Veja: Novo normal para quem?

Reinventar: o ancien com verniz

Inventar é arte; reinventar é adorno, uma espécie de cópia que reproduz e enverniza uma realidade teimosa em prolongar-se em função de algum poder que, de certa forma hegemônico, não quer perder o status. Essa chave sócio-filosófica de compreensão sugere a continuidade ou, de modo mais radical, um continuísmo que esconde objetivos, critérios, interesses dominantes sem uma preocupação de alteração substancial de procedimentos, de estruturas, de compreensões.

Nesse sentido, o reinventar é atualizar algo existente e apresentar como solução. Fazer adaptações. Não contempla mudanças substanciais o que não quer, necessariamente, significar algo ruim, menos valioso. Contudo é revestimento de material, práticas e concepções em uso ou cimentadas. Conota um certo temor, medo, receio, do novo, da mudança, de novas posturas, além de transitar em perigoso lugar-comum e aziado discurso elitista.

Nesse sentido, o reinventar não é profundo, mas superficial e não enfrenta a possibilidade com multiplicidade e pluralidade. Por isso não tem condições de colocar-se no diálogo equânime, além de falhar no compromisso com o espírito criador que avança, em agenda ética, na direção da solidariedade, das pesquisas por alternativas preocupadas com a vida.

Reinventar é tomar o ancien, adornar e apresenta-lo como novidade. Alterar aquilo que já esteve ou ainda está de posse e sob controle e ajeitar para dar conta de suprir os objetivos, as necessidades, do presente.

A ambivalência, nessas cercanias, pode ser vista em confabulação com os poderes antigos. No chá da tarde, são definidos os cardápios para os jantares da ceia nos quais são reapresentados menus com paladares de outrora, elaborados sempre por gourmets protegidos em grandes e poucos palácios.

Reinventar, nesse sentido, parece denotar uma saída tangenciada para não encarar o problema em grave estrutura, peso e consequências. Assim, não contribui para transformar, mudar, a realidade e abrir espaços para a criatividade, a alternativa, a possibilidade; contenta-se em manter a essência da conservação em reacionária marinada, apimentar o futuro da grande maioria massiva da população e despejar sal grosso e ácido nas estruturais chagas que prolongam e aprofundam as diferenças e injustiças. 

Algumas reflexões para continuar a pensar no horizonte da ambivalência

As adaptações, readaptações, mudanças, transformações, as reflexões, provocadas pela pandemia, alterações comportamentais, de hábitos e relações, são fortes em demasia para limitar o novo a reinvenções, apenas e a conformações de um novo normal. Esse novo normal pode ser a reinvenção daquele historicamente constituído e instituído com a supremacia das forças hegemônicas e hegemonizantes, exclusivas nas pretensões de absolutas verdades e definições do bem e do mal.

Reinventar é saudosismo conformador que pode inibir a força da mudança que o momento indica e a necessidade de rupturas que se evidenciam. Algumas já em curso como novas polarizações e contradições.

A afirmação pode ser ilustrada com a elevação da China ao patamar de enfrentamento à grande potência norte-americana, ao pioneirismo dessa mesma China e da Rússia, nos desenvolvimentos dos antídotos à Covid-19 – e, possivelmente, de suas variantes –, a capacidade de regulação social interna da China.

Mas há ainda outras questões que demonstram alguns processos equivocados e assumidos por nações poderosas ou nem tanto: Cuba, a eterna nação relegada pelas centralidades econômico-militares do ocidente, parece não ter enfrentado colapsos hospitalares e faltas de oxigênio. Algumas nações latino-americanas, vizinhas ao Brasil, também indicam enfrentamento racional à pandemia. Entre algumas contradições pode-se ver a Índia com a maior capacidade mundial instalada para produzir vacina enquanto sua população sofre consequências de pesada estrutura cultural.

Incorporar, simplesmente e superficialmente, as ondas modísticas das linguagens clichês, favorece a reprodução de valores fundamentalistas e estranhos ou contraproducentes às possibilidades de aprimoramento humano, das qualificações de relações e alargamento das compreensões que favorecem diálogos, estimulam a solidariedade e gestam novidades, criatividades interessantes para a humanidade em sua caminhada pela harmonia e realização individual e coletiva.

Ao invocar a ambivalência que subsiste na linguagem e nas ações humanas, é possível apresentar a nada normal e nada nova constatação de que as camadas mais empobrecidas da população, com a pandemia, continuarão, ainda, a não participar dos benefícios da ciência, a não usufruir das riquezas acumuladas às custas de suas dificuldades, da miséria, da fome, da exclusão. Por outro lado, as camadas mais enriquecidas não voltarão o olhar e, sequer, os sentidos, para a mudança, a transformação, a metamorfose da estrutura sócio-econômica e histórico-cultural que oprime e desumaniza.

Paira, nesta reflexão, o indicativo da retomada de uma racionalidade não limitada ao estético, mas ao político e ao ético com invenção, pensar, alternativas, novidades, originalidades para além da estrutura solidificada da história do homem branco, rico, autorizado a desenhar os destinos.

Não se trata de jogar fora a tradição mas, também, de não incorporá-la como uma atitude sine qua non. Isto significa que a grande tradição precisa considerar a razoabilidade, na compreensão do Professor Paulo Evaldo Fensterseifer, e uma ponderada racionalidade que não seja dogmaticamente legislativa e alinhada aos ditames do estado jardineiro, temas de Zygmunt Bauman.

Não pode, não tem espaço, por isso, e, tampouco, sentido, um novo normal que não seja aquele do prolongamento das viciadas e retrógradas vicissitudes há muito em curso. Impera, desse modo, o normal, e não o novo, em sua mais sórdida reinvenção para mascarar as intenções, os mesmos objetivos imperativos do sistema centralista, globalista e renovado/reinventado em sua capacidade, desejo e poder de afirmar-se como mais poder.

Autor: Claudionei Vicente Cassol

Edição: Alex Rosset

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