O livro infantil, o adulto e a criança: obras de artes entrelaçadas

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O mundo da criança é só dela. O adulto só entra quando é convidado. Mas não é todo adulto que é convidado para visitar esse mundo. Tem que ser um adulto especial, com espírito infantil e sábio.

O livro infantil trata de coisas que podem acontecer com qualquer um de nós na idade adulta ou infantil. Claro que a ficção está por trás de muitas situações, mas isto não impede que a criança leitora aprenda a lidar com os problemas do seu cotidiano. Ela enfrenta os problemas relacionados à vida e aos obstáculos que nela encontra de uma forma menos dolorosa.

Alguns autores defendem livros humanistas para crianças; não tenho do que reclamar dos livros surgidos no começo da nossa literatura infantil. As fábulas de Esopo e os contos de fadas têm essa característica exigida: são cheios de ideias da humanidade. Ideias que foram resgatadas dos contos populares, das histórias criadas pelo povo e para o povo. Entendo por ideias da humanidade aquelas que mostram a vida e os sentimentos do povo.

E como nos diz o filósofo Montaigne, “tudo se submeterá ao exame da criança e nada se lhe enfiará na cabeça por simples autoridade e crédito.”

Sendo assim, a criança tem o direito de escolher o que quer ler, como quer preencher seu mundo imaginário, quais personagens quer colocar dentro dele e como vão agir nesse mundo. As crianças vão saber escolher quais as melhores histórias, pois devemos considerar que toda história deixa alguma coisa no espírito infantil que cedo ou tarde florescerá. 

Afinal, gostar de ler exige uma série de situações pelas quais é preciso passar: a primeira é a descoberta do valor da leitura; a segunda é a curiosidade pelas novidades que os livros trazem; a terceira é ter livros ou impressos ao alcance das mãos. Tais fatores aparecem, principalmente, quando as bibliotecas estão por perto e são facilmente visitáveis, fornecendo livros emprestados. (Padre César Moreira). Leia mais!

No começo foi bastante difícil seguir essas palavras de Montaigne, pois tudo era imposto à criança. Hoje, já é possível ver um pequeno número de crianças nas livrarias e bibliotecas escolhendo os livros que lhes interessam para leitura. Antes, os pais aconselhados pelos educadores obrigavam seus filhos a ficarem sentados por horas e horas lendo livros sem graça e de difícil compreensão, muitas vezes com recortes que deixavam as crianças curiosas, como aconteceu com Os Lusíadas, de Luís de Camões, que nas escolas teve um grande corte para se adaptar ao pequeno mundo da infância. Esses cortes só despertavam mais ainda a imaginação das crianças. Elas ficavam curiosas para saber o porquê daquela censura. E procuravam ler às escondidas o texto completo.

Nesse aspecto que Montaigne acerta quando diz que cabe às crianças escolherem o que ler e não aos adultos. Submeter uma criança a uma leitura que ela não aprecia é como um castigo até a última página, pois para se chegar até lá o caminho é árduo e sem graça.

O adulto não consegue compreender que a criança busca até mesmo nos livros didáticos o seu mundo do faz-de-conta e o lúdico. Claro que esses dois elementos devem vir recheados com ideias coesas, palavras e expressões instrutivas e não de termos ou chavões que não se adequam aos espíritos ainda em formação.

Os livros devem ser lidos pelas crianças como um pássaro voando no céu, ou seja, com liberdade. E as crianças devem escolher a melhor posição para ler um livro, um livro que seja agradável.

O melhor livro é aquele que se torna travesseiro quando a criança cansada descansa sua cabeça sobre ele. Há crianças que gostam de ler deitadas no piso da sala ou do quarto de dormir, outras preferem se deitar na poltrona, algumas escolhem uma árvore para sentar-se embaixo dela e ficar ali se deleitando com aquele livro que está quase terminando, e o herói ainda não conseguiu vencer o mal.

O mundo da criança é só dela. O adulto só entra quando é convidado. Mas não é todo adulto que é convidado para visitar esse mundo. Tem que ser um adulto especial, com espírito infantil e sábio. A criança quando gosta de alguma coisa tende a apertar, abraçar, tocar para sentir que existe já que o seu mundo do faz-de-conta costuma criar essas coisas imaginárias e quando se depara com elas na realidade fica pasma. Mas, essa mesma criança que gosta também sabe responder aquilo que não gosta, e assim ela fecha a cara, se afasta e se cala.

Não temos o direito de invadir esse mundo, devemos respeitá-lo se quisermos ter o amor da criança, talvez o maior presente que um adulto pode receber, um presente tão raro e tão pouco valorizado.

O mundo mágico da criança é habitado por heróis, princesas, príncipes, duendes, fadas, bruxas, animais, a natureza em geral, e quando muitos desses adultos mais próximos sabem compreendê-la se transformam numa dessas figuras. Ser uma fada ou um príncipe de uma criança dá um gostinho especial à vida solitária que nós, adultos, levamos atolados no exercício das atividades cotidianas.

É na infância quando mais temos tempo e liberdade de fazer o que gostamos. A criança dispõe de tempo suficiente para todas as coisas que quiser fazer.

Sim, são nas obras obras-primas em que as crianças deveriam ser iniciadas desde a tenra idade para uma formação mais perfeita e sólida. De fato, as crianças que têm acesso aos clássicos da literatura infantil são mais abertas ao diálogo, sabem se expressar, perdem a timidez e se colocam nas apresentações escolares ou comunitárias sempre como heroínas. Isso porque sabem que é preciso entender o mundo como seus heróis das historinhas.

Um livro é uma obra de arte. A leitura de uma obra nunca é a mesma. Ela fala muitas línguas, mostra muitas imagens, apresenta muitos significados. Na verdade, a obra de arte nunca é aquilo que pensamos ser, ela é sempre mais alguma coisa. Se uso essas palavras para exemplificar um livro como uma obra de arte também me vejo em diferentes interpretações de leituras.

A hermenêutica aparece aqui distinguindo uma linguagem da outra. O que é uma coisa para mim, para um outro indivíduo pode significar outra. O sentimento que uma palavra ou imagem desperta na minha alma pode ser diferente em outra. 

Assim são os livros infantis. Eles nunca afirmam nada. Eles contam histórias. Se as crianças vão interpretá-las de um jeito ou de outro, cada uma tem o livre arbítrio para pensar o que quiser. Dá asas à imaginação e criar a sua própria interpretação. A figura que uma criança interpreta num livro só de ilustrações pode ter a interpretação completamente diferente daquilo que o ilustrador quis apresentar. Por isso, o livro se torna uma obra de arte das mais clássicas e fiéis ao seu público.   

O livro para crianças não deve ter somente caráter educativo. O livro que se propõe a ser uma obra de arte deve acima de tudo ter figuras de linguagem. As onomatopeias são as mais apreciadas pelas crianças. O livro infantil deve ter palavras de encanto, pequenas, grandes, que sejam difíceis de pronunciar e engraçadas quando se dobra a língua e não se consegue falar. Não deve ser dono da verdade, porque a verdade deve ser traçada pela criança, logo permitir que se abra espaço ao imaginário.

O dono da história não deve ser o personagem, mas a criança, por isso cada vez mais temos visto livros escritos na primeira pessoa. O eu chama a criança para dentro do livro, é como se o eu fosse a própria criança que está lendo e não o personagem.

O bom livro é aquele que o escritor fez dele a sua principal obra de arte. Criou-o com todo o cuidado e delicadeza pensando no seu leitor. Uma plurissignificação surge exatamente como a leitura de uma obra de arte, ou seja, o caráter de subjetividade de cada criança. Um bom livro não tem um só significado, mas muitos. Pode criar vários mundos diferentes no imaginário da criança.

Além do mais, assim como a obra de arte, não nos basta para termos uma única interpretação da vida, o livro que é uma boa obra de arte deve se abrir para mais de uma visão da vida. A criança deve refletir sobre os possíveis mundos ao seu redor para escolher em qual deles quer realmente habitar definitivamente, antes que cresça, ou antes, que um adulto chegue, a pegue nos braços e a jogue lá dentro de um desses mundos que ele acha ser melhor para ela.

E, para não esquecer, obra de arte lembra imagem, pensamos nos livros ilustrados, com capas duras, o miolo em papel especial. Feitos exclusivamente para chamar a atenção do pequeno leitor num primeiro olhar. Os desenhos, às vezes, falam mais do que mil palavras. Alguns livros são constituídos só por desenhos. E os escritores juntamente com os ilustradores criam suas obras de arte exatamente como pensam as crianças.

Um dos livros que mais admiro como uma verdadeira obra de arte é o livro “Adivinha quanto eu te amo” de Sam Mcbratney. Tanto as ilustrações quanto as frases curtas e a mensagem que o livro nos transmite encantam não só as crianças, mas muitos adultos que buscam a beleza do amor. O amor desprovido de interesse e contado em imagens.

Esta relação entre o livro infantil, o adulto e a criança deve ser mantida ao logo da vida para que todos se beneficiem pelo amor à literatura e aos personagens que muitas vezes nos salvam de dores e traumas que poderíamos carregar por longos anos.

O professor Eládio Weschenfelder diz que “a leitura gera, com o tempo, necessidade de imitar, escrevendo como aqueles que a gente aprendeu a ler”. Veja vídeo sobre a importância da leitura e literatura, bem como de projeto Bando e Bandinho de Letras.

Autora: Rosângela Trajano

Edição: Alex Rosset

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