Militarização no governo Bolsonaro?

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Esse estranho binômio, a força da influência familiar
associada à pressão dos militares, por mais iluminados
que ambos se revelem, corre o perigo de
produzir filhos abortivos em série.

Talvez seja cedo para afirmar se o governo Bolsonaro deva ser considerado um Estado militarizado ou corra o risco de sê-lo. Entre os ministros e secretários provenientes das forças armadas de um lado, e a família Bolsonaro, de outro, quem comanda a nave?

Duas sombras estranhas rondam os corredores e salas do Palácio do Planalto. Primeiro, verifica-se a crescente presença militar nos altos escalões do atual governo, o que é no mínimo preocupante. Claro que um alto representante do exército, aeronáutica ou marinha pode ter qualidades para exercer função no poder executivo. Mas é essa, em linha de princípio, a sua missão primordial?

O Brasil e o Cone Sul, entre outros tantos países ao redor do mundo, já passaram por governos de exceção em que as forças armadas tomaram o poder e o comando. Via de regra, tais experiências têm sido traumáticas, para não dizer trágicas. Conhecemos a trajetória, não raro truculenta e sangrenta, de numerosas ditaduras, oligarquias e totalitarismos. A tendência, nesses casos, é eliminar a intermediação da sociedade civil organizada, com suas associações, movimentos, igrejas, entidades, instituições e mobilizações. O mesmo ocorre com os canais, instrumentos e mecanismos de participação popular.

Nos casos mais duros, instala-se a censura aberta ou disfarçada nos meios de comunicação, na música e nas expressões artísticas em geral, chegando ao extremo de impor o recesso do Congresso Nacional, como de viu no famigerado Ato Institucional n° 5 (AI-5), de dezembro de 1968.

A outra sombra que tende a se infiltrar nas brechas do poder executivo refere-se à interferência da família Bolsonaro em momentos decisivos, como se verificou no “caso Bebianno”. O Secretário Geral da Presidência, Gustavo Bebianno, foi exonerado pelo presidente após atrito com Carlos Bolsonaro.

Aqui entra em cena um conceito que vem dos tempos da monarquia, implantado no Brasil pelos colonizadores portugueses, encontrando aqui terreno fértil para germinar. Referimo-nos ao patrimonialismo.

De acordo com a definição dos dicionários, “sua característica fundamental é a de um Estado que não possui distinções entre os limites do público e do privado. Foi comum em praticamente todos os absolutismos”.

Sérgio Buarque de Holanda (em Raízes do Brasil), Victor Nunes Leal (em Coronelismo: enxada e voto) e Raymundo Faoro (em Os donos do poder) – entre outras – foram alguns dos estudiosos brasileiros que se debruçaram sobre o tema. Retomando tal conceito da tradição monárquica portuguesa, depois transplantado para o Império colonial, historiadores e sociólogos convergem em afirmar que o patrimonialismo constitui uma chave de leitura não só para ler o passado, mas também os estigmas e impasses presentes na trajetória política brasileira. Ou seja, governa-se a rex publica como se fosse patrimônio familiar.

As necessidades básicas da nação acabam por se confundirem com os interesses privados do senhor/coronel/doutor, a tal ponto que nem o governante, e tanto menos a população, sabem onde terminam umas e começam os outros. Os rumos e o destino da nação coincidem muitas vezes com o horizonte do corporativismo que reúne os proprietários privados. Disso resulta que quando os moradores da Casa Grande decidem fazer uma obra em benefício da Senzala – para usar o título do livro de outro estudioso, Gilberto Freire – tal obra, seja ela um hospital, uma escola, uma ponte, um açude, ou qualquer outra coisa, venha batizada com o nome de Fulano ou Sicrano de Tal.

Embora construída com os recursos do orçamento público, a obra ganha o caráter de ação privada. O patrimonialismo é o berço dos currais eleitoreiros e dos apadrinhamentos, além de fonte de votos.

Se, ao patrimonialismo privado, acrescentamos a militarização do poder, forja-se um casamento de consequências imprevistas e imprevisíveis. Esse estranho binômio, a força da influência familiar associada à pressão dos militares, por mais iluminados que ambos se revelem, corre o perigo de produzir filhos abortivos em série. Restar torcer para que tais pressentimentos não passem de pesadelo e esperar pelo melhor.


“Não é democrática a sociedade que não tolera os pensamentos divergentes e que combate as diferentes formas de organização social que buscam praticar e viver as ideias coletivas. Democrática é a sociedade que permite aos homens e mulheres realizarem-se em sua dignidade, preservando seu modo de ser, pensar e agir, individual e coletivamente”. (Nei Alberto Pies)
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