Família, religião e escola

1843

A escola não deveria ser sem partido.
Antes, deveria ser “escola livre e sem censura”,
possibilitando perspectivas diferentes,
reguladas por aquilo que pode garantir uma
vida mental e moral saudável: a empatia e a razão.

 

 

O que não falta são pessoas, geralmente com precário conhecimento acadêmico, mas com muito interesse político ou com vontade de poder controlador, que raramente trabalham em educação, que se metem a dizer o que os professores podem ou não podem fazer, se apresentando como portadores de uma suposta nova pedagogia, surgida do nada, vinda dos fundos das cavernas e que, agora, reivindica cidadania, nem que seja à força.

A escola necessita ser neutra e se restringir a ensinar habilidade técnicas, cabendo à família e à religião ensinar valores, dizem esses novos “gênios” da pedagogia, com ar de sabedoria acumulada por séculos, mas que não resiste aos fatos e a mínima ponderação epistemológica, por várias razões, das quais enumero três:

 

Correlação e complementaridade

Que a família e a religião sejam instâncias privilegiadas de conservação e transmissão de sabedorias e valores essenciais à vida individual e social, qualquer pessoa sensata e intérprete isento, haverá de reconhecer. O vínculo de afeto e empatia sanguíneo e espiritual são eficazes na conservação e na transmissão de valores morais e espirituais e nisso estamos todos de acordo. Há inclusive acordo na ideia de que a família colabora com a religião e a religião colabora com a família numa mútua e fecunda complementaridade colaborativa sem exclusivismos.

Acontece que disso não se deduz que a escola seja somente o lugar de aprendizagem e de capacitação de habilidades técnicas e de sociabilidade. Ela também colabora para a elevação do nível moral das pessoas. Os valores da família e da religião ainda são restritos, por mais sagrados que possam ser, ao âmbito do privado. Ao privado da autoridade paterna e materna e privado da fé religiosa que só tem validade dentro da comunidade dos que creem. Isso não significa que não possa haver abertura para a universalidade, mas a universalidade só pode ser alcançada na pluralidade de pontos de vistas legítimos em processo dialogal em um ambiente, como a escola e a universidade, em que a única autoridade aceitável é a autoridade da razão e não a razão da autoridade.

Uma razão aberta e dialogante, numa dialética de identidades e diferenças ampliadoras dos pontos de vistas particulares e preconcebidos do mundo familiar, só a escola e a universidade podem alcançar. Nesse sentido, os valores da família e da religião precisam ser complementados com os valores baseados na racionalidade comunicativa, cujo lugar preferencial de sua memória viva é a escola.

É da escola e das universidades que se pode almejar a educação moral que abre para os valores morais mais altos de uma vida societária: a justiça, a paz, o bem comum, a tolerância e a solidariedade. Só por má fé, perversão ou malícia, poderemos restringir os valores morais à propriedade, a moral sexual e a defesa da vida como sinônimo de “não ao aborto”.

É muito pobre o conceito de ética quando restrito ao âmbito das crenças privadas, ou das tradições, como é a da família e das religiões.

Um exemplo apenas. Se as tradições familiares e religiosas continuarem dizendo que a mulher merece um lugar secundário em relação ao homem e que criar animais na indústria da carne, ovos e leite não tem nada de errado e que essas crenças devem ser respeitadas, a quem cabe contestar e mostrar a limitação e o preconceito insustentável desse ponto de vista moral? Ou está tudo certo e devemos respeitar o limite moral do mundo privado, familiar e religioso, sem almejar valores com pretensão à universalidade ancorada na razão que o espaço acadêmico pode oferecer com qualidade e rigor?

 

O mito da neutralidade

Ao lado do mito da exclusividade da família e das religiões na formação moral dos indivíduos, pelo menos numa sociedade aberta e democrática, está o mito da neutralidade ou da suposta objetividade.

Não será preciso evocar os trabalhos de fôlego de grandes intelectuais, tal como um Nietzsche ou um Habermas, para concluir que sempre há um interesse no conhecimento e que a ciência opera em perspectiva e com interesses manifestos ou camuflados. Só por um resquício de positivismo ou um naturalismo metafísico, poderíamos, hoje, sustentar que as escolas e as universidades deveriam ter “professores robôs”, e que seriam melhores do que os professores de carne e osso, com suas preferências sexuais, políticas e ideológicas e até partidárias.

A escola não deve e não pode ser sem partido, mas a expressão legítima de perspectivas plurais legítimas e defensáveis racionalmente, no livre jogo do pensamento rigoroso, consequente e de boa fé. Os professores, não somos idiotas e robôs e não perdemos o bom senso para doutrinar os alunos escondendo deles as múltiplas perspectivas respeitáveis na arena dos valores do campo prático e do conhecimento. A escola não deveria ser sem partido. Antes, deveria ser “escola livre e sem censura”, possibilitando perspectivas diferentes, reguladas por aquilo que pode garantir uma vida mental e moral saudável: a empatia e a razão. Isso mesmo, no lugar do medo e do terror: empatia e razão.

 

Respeito, confiança e valorização

O ambiente acadêmico em geral, os professores em particular, não precisa e não deseja que o governo crie terror e medo, incendiando ambiente com táticas de guerra onde, naturalmente, deveria reinar a paz, a confiança, o afeto entre gestores, professores e discentes. A educação é um ambiente de racionalidade, respeito, confiança e amor. Os de fora, como são os políticos e os governos, deveriam se preocupar com uma única coisa: valorização dos profissionais e colaboração na sua formação permanente. O resto deixe que nós fazemos e nos deixe em paz. Nós não nos metemos nas profissões e vocações dos outros e muito menos incendiamos e criamos um estado de guerra e desconfiança onde não somos chamados.

Se se quer uma educação de qualidade, com alta performance técnica e com altos valores éticos que animam o espírito de cidadania, sugiro aos políticos que criem projetos de inclusão nas escolas e nas universidades e incendeiem o país com programas de leitura, de todas as matizes e tendências políticas, ideológicas e filosóficas e o resultado será bom para todos e não só para os espertos que sabem tirar proveito da ignorância alheia.

 

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